Sida, aquela doença que não acontece só aos outros

Na carrinha do CAD fazem-se testes ao VIH e tenta-se mudar comportamentos. O número de casos positivos sobe todos os anos

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Fernando Veludo/nFactos

João Rodrigues já viu de tudo. Di-lo com o olhar distante de quem recorda todas as notícias que já teve de dar, mensagens de vidas interrompidas, suspensas, estragadas - “Tudo o que conseguir imaginar já passou por aqui”.

São dez da noite. A carrinha do CAD – Centro de Aconselhamento e Detecção Precoce do VIH está estacionada na Praça Parada Leitão, no Porto. Lá dentro, uma jovem conversa com o psicólogo. Cá fora, há gente à espera para fazer o teste, muitos outros passam e ignoram. No ano passado, o CAD fez cerca de oito mil testes. Cem deram positivo. A cada ano que passa há mais testes positivos – “o número tem crescido. Devagar, mas cresce”.

No próximo ano, este serviço assinala uma década de actividade. E muita coisa mudou – até 2006, os testes eram feitos com recolha de sangue; hoje, o teste é uma picada no dedo e o resultado é conhecido em cerca de 10 minutos. Uma realidade que alterou a forma como enfermeiros e psicólogos trabalham. O teste reage à frente dos técnicos – nunca à frente da pessoa que a ele se submete (“ver o nosso teste reagir, mesmo tendo a percepção de que será negativo, é muito difícil”, justifica o enfermeiro João Rodrigues) – e é aos profissionais do CAD que cabe dar a notícia.

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O enfermeiro João Rodrigues e o psicólogo Raul Manarte trabalham na carrinha do CAD Fernando Veludo/nFactos

“A primeira vez que dei um reactivo [é esta a designação correcta para “positivo”] arrepiei-me todo”, lembra João Rodrigues. Continua a arrepiar-se. Mais com uns casos do que com outros. Por ali há de tudo – “Há quem venha fazer o teste, periodicamente, porque tem comportamentos de risco frequentemente e não está disposto a mudar”, admite. E há quem vá “porque sim” e saia com medo do futuro. Há quem chegue com a ideia de que está infectado e não está. Há quem berre, quem congele, quem chore sem som, há quem não se importe.

Não há grupos de risco, há comportamentos

O trabalho do CAD, centros disponíveis em vários pontos do país, é muito mais do que picar um dedo e ansiar resultados negativos. Ali faz-se aconselhamento, tenta-se mudar comportamentos. E é essa a parte complicada. “Continuamos com a ideia de que não somos um grupo de risco”, lamenta João Rodrigues.

O enfermeiro sonha com o dia em que se consiga desmontar esse mito: “Toda a pessoa que tenha uma relação sexual desprotegida está exposta ao risco”. Tão simples como isto: não há grupos de risco, há comportamentos de risco. E, nas carrinhas do CAD, os casos positivos são “quase todos” de transmissão por via sexual e raramente por comportamentos de risco associados ao consumo injectável de drogas.

A mudança de comportamentos – missão hercúlea que o CAD assume – só será possível no dia em que a aposta na “educação primária” for maior. Por ali, não se defende a obrigatoriedade do teste, apenas se exige mais informação. Em 1994, João Rodrigues já fazia palestras nas escolas.

“Na altura, achávamos que valia a pena, mas não servem para nada”. Os “bombeiros” do CAD não podem apagar fogos na escola – “é preciso um plano sério, assumido pelos professores”, defende o enfermeiro. É preciso que a educação sexual esteja nos programas “de forma transversal e em vários momentos”.

João Rodrigues tem uma certeza em forma de lamento: “A sida ainda é uma coisa de que se pode falar mas que não pode existir no nosso mundo. Continua a ser o que não nos acontece a nós nem perto de nós”.

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