A natureza contra o petróleo

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Uma garça-real nas margens do rio Napo a levantar voo. Há-as das mais diversas cores e tamanhos, enric vives-rubio

O Equador quer salvar um canto da Amazónia onde ainda se sente o frémito de um coração selvagem a bater. Para isso, pede ajuda ao mundo - e a cada um de nós.

É de manhã, mas o Sol brilha, forte, apesar da humidade que nos faz suar mesmo estando parados. É um tempo bem diferente do que faz em Quito, a cidade no alto dos Andes. Foi aqui, pelo imenso verde atravessado pelo rio Napo, o maior afluente do Amazonas, que os conquistadores espanhóis andaram à procura do famigerado El Dorado. Mas se Francisco de Orellana não descobriu o ouro de que andava à procura com Gonzalo Pizarro no século XVI, conseguiu levar notícia para o rei de Espanha de um rio gigante que desaguava no Atlântico. Também ele iniciou a sua viagem aqui, na zona da cidade de Coca, onde entrámos na canoa a motor que nos levará para o coração da selva - o refúgio verde que a exploração de petróleo ainda não tocou e que o Equador quer salvar do abraço mortal da indústria petrolífera. Para isso, pede uma ajuda ao resto do mundo.

O petróleo, que no Equador e no Peru começou a ser explorado nos anos 1920 - embora o verdadeiro boom tenha começado na década de 1970 -, deixou marcas na floresta, na paisagem e na vida das cerca de 100 mil pessoas que vivem na Amazónia equatoriana.

A partir do rio, só se distinguem uns fumos que não se deviam ver nas margens, uns camiões a viajar em balsas. Mas percebe-se, ao aterrar em Coca, a última cidade antes de entrar na floresta na região de Orellana, no chamado Oriente equatoriano, que entram na Amazónia as muitas máquinas pesadas, camiões e homens com malas de viagem com nomes de companhias petrolíferas ligadas à exploração de petróleo, como a Repsol ou a Halliburton. E que todas estas pessoas exercem um peso feroz sobre a selva: "O avanço de um país também se mede pela forma como trata os seus animais", lê-se num dos muitos cartazes que a organização não governamental Finding Species espalhou por Coca, incentivando os cidadãos a deixarem de comer animais selvagens. Vendedores de rua, prédios baixos com a lepra da humidade e outros novos em várias fases de construção - Coca mais parece uma cidade de fronteira do Faroeste americano.

Na viagem de canoa, longe da confusão da cidade, chega-se a um certo ponto em que se deixa o rio largo e se vira por onde a vegetação se estreita, formando como que um túnel - e as águas dali vêm negras, misturando-se com as barrentas, por onde vínhamos. É como uma maré de chá preto a encontrar uma onda rasteira de café com leite.

O reino das águas negras

A partir dali, tudo muda. Entra-se mesmo no Yasuní - o refúgio amazónico que o Equador quer salvar do toque pastoso do petróleo e para o qual está a apelar à generosidade do mundo.

É o silêncio que primeiro nos surpreende na selva - mas apanha-nos como uma ave escondida e que de repente levanta voo, mostrando a mancha vermelha das penas sob as asas pardas. Mas há um contraponto para o silêncio: está cheio dos barulhos da floresta, uma música feita pelos cantos mais inesperados de aves, rãs, sapos, macacos, insectos grandes e pequenos a zunir - espera, esta ave não parecia mesmo a musiquinha que o Windows faz quando falha uma operação? E este som, parece música electrónica, são aves? "Não, são rãs arbóreas", responde Juan Carlos Narvaez, 32 anos, um dos guias da natureza que acompanham na descoberta da vida da Amazónia quem visita o Napo Wildlife Center, um resort ecológico explorado por uma comunidade de índios Kichwa.

Juan Carlos vai à frente na canoa a remos para onde mudamos no pequeno porto de madeira onde se entra nas terras da comunidade Añangu - formiga cortadora, na língua kichwa. E é quando se entra numa canoa a remos para navegar pelas águas negras do rio Napo que se descobre este silêncio povoado de ruídos, da vida animal escondida da selva - do Parque Yasuní, uma Reserva da Biosfera da UNESCO no Equador e provavelmente o local com maior biodiversidade do planeta.

Usa-se o condicional porque ainda não se fizeram estudos suficientes para conhecer a fundo toda a riqueza de plantas, mamíferos, aves, peixes e insectos naquela área de 9820 quilómetros quadrados. "A colecção de artrópodes [como insectos} feita nos últimos cinco anos no Yasuní produziu uma enorme quantidade de potenciais novas espécies. Para as descrever científicamente, continuando com o número de especialistas actualmente disponíveis, precisaríamos de 400 anos!", exemplifica David Romo, co-director da Estação de Biodiversidade de Tiputini, da Universidade de San Francisco de Quito, uma das duas instalações de investigação científica que existem no parque.

Estima-se que ali existam 100 mil espécies de insectos, que o Yasuní seja sem dúvida alguma o local com mais espécies do planeta. "Mas a maioria dos insectos que recolhemos são muito pequeninos, caberiam na cabeça de um alfinete", explica Romo, para ilustrar a dificuldade, num encontro em Quito, na sede da organização não governamental norte-americana Finding Species, que tem um programa internacional no Equador e é uma das muitas entidades que está a tentar salvar este local da riqueza negra que há debaixo do solo - o petróleo, que abunda na Amazónia ocidental, num convívio difícil com a enorme diversidade de fauna e flora.

Quando se está mesmo lá, é como ter um pequenino coração verde a pulsar na nossa mão. Ou então, pelo contrário, sentimo-nos engolidos, na barriga da selva. Há libélulas vermelho-fogo a rasar a água, grandes e carnudas, como se fossem faúlhas de um grande incêndio.

Avançando de canoa a remos, quase rente à água, sem fazer barulho, a vegetação cobre-nos, como uma arcada de renda verde e negra. É tão alta e com uma tecedura tão espessa que a luz do Sol não consegue chegar até lá abaixo, onde se avança pela rede de estradas da selva amazónica - as linhas de água. Parece que a noite cai e a temperatura desce vários graus. Em certos locais, somos bombardeados com borboletas - brancas, laranja, azuis enormes! Parecem pétalas a cair sobre nós, a dar um ar festivo ao rio, que parece chá preto com vegetação seca e grande a boiar.

Helicónias laranja ou vermelhas, flores que parecem pinhas achatadas e muito compridas debruçam-se languidamente sobre as águas - toda a vegetação se debruça sobre as águas, em vénias e contorções de um bailado assombrado. Isto quando não cresce directamente a partir da água, como acontece nas zonas do bosque alagado, onde a vegetação é diferente, os próprios animais são diferentes - são plantas que nascem e vivem dentro de água. Aqueles molhos de bolinhas grandes, cor-de-rosa? "São ovos de caracol marinho", explica Juan Carlos Narvaez. "São bons para comer" Os ovos? Pelo tamanho até parece possível "Não, os caracóis!", responde.

Sentimo-nos como que sentados na água escura, a deslizar. "É negra porque a vegetação aqui tem muitos taninos, os químicos que tornam o café negro, e dão cor ao vinho tinto. Mas também tornam a água mais ácida, e há menos nutrientes, por isso há menos mosquitos nesta zona", explica Juan Carlos.

Esta negrura nada tem a ver com poluição ou com o petróleo - um recurso natural que tem contribuído fortemente para a destruição da floresta, não só com a poluição directamente relacionada com a sua extracção e os derrames inevitáveis, mas também pela desflorestação para construir estradas de acesso, estruturas de perfuração e oleodutos ou gasodutos e pela expansão da actividade humana que acompanha tudo isto.

A floresta quadriculada

Já 65% dos 120 mil quilómetros quadrados da floresta amazónica equatoriana foi loteada para exploração petrolífera, embora algumas zonas ainda não tenham sido exploradas. Agora a actividade petrolífera está a ameaçar chegar às zonas mais remotas da reserva natural Yasuní, e sob a forma mais poluente. No canto nordeste do parque, na fronteira com o Peru, estão 19% das reservas comprovadas de petróleo do Equador, num bloco petrolífero denominado ITT (as iniciais de Ishpingo, Tampococha e Tiputin). Dali poderão extrair-se 846 milhões de barris de petróleo, mas estes lotes não foram ainda colocados no mercado.

O que existe ali é crude pesado: petróleo espesso, que não flui facilmente, e cuja exploração é mais poluente. "É preciso processar o petróleo no local, antes de poder ser transportado, partir as moléculas do petróleo. Só para ter energia para isso é preciso consumir 20 por cento do crude extraído", explica Carlos Larrea, economista da Universidade Andina Simón Bolívar e membro da Iniciativa Yasuní ITT - um órgão governamental, criado em 2007 para coordenar as acções que tentam pôr em prática uma ideia lançada pela sociedade civil e pelo Governo para tentar virar do avesso o desenvolvimento do país e, ao mesmo tempo, salvar um canto da Amazónia onde ainda se sente o frémito de um coração selvagem a bater.

O bloco petrolífero Yasuní ITT, na ponta nordeste do parque, junto ao Peru, foi traçado a régua e esquadro pelo Governo do Equador já há muitos anos. Vários outros países da região ocidental do Amazonas, como a Bolívia, Colômbia, Peru e Brasil o fizeram, traçando padrões quadriculados na selva para criar lotes de extracção de hidrocarbonetos.

Um artigo publicado na revista científica onlinePublic Library of Science One em 2008 estimava que existiriam 180 destes blocos no Ocidente do Amazonas, cobrindo cerca de 688 mil quilómetros quadrados - e coincidindo com as regiões mais ricas em biodiversidade.

Em muitos casos, passam por cima de territórios indígenas, por vezes reservas reconhecidas pelos estados, outras vezes áreas utilizadas por povos que vivem em isolamento voluntário - e no parque Yasuní existem dois, os Tagaeri e os Taromenane, cujo território, a chamada Zona Intangível, fica no Sul do parque. Não estão a brincar quando dizem que não querem ser contactados - matam os brancos que tentam levar a civilização até eles, com lanças, muitas lanças.

Se começasse a ser extraído do solo o petróleo que está na zona ITT - a segunda maior reserva de hidrocarbonetos do país -, aconteceria uma catástrofe ecológica. "O Equador é um dos 17 países megadiversos em termos biológicos", explica Carlos Larrea. "Não é como no Médio Oriente, em que o petróleo é extraído do deserto - aqui é extraído de uma área muito sensível, o Amazonas."

O documentário Yasuni - Two Seconds of Life faz algumas contas: para explorar este lote petrolífero, seria necessário perfurar uns 214 poços. Isto produziria cerca de 100 mil metros cúbicos de resíduos sólidos e cerca de 500 mil de líquidos (água, sobretudo) altamente tóxicos, para além dos produtos químicos usados na perfuração, que seriam trazidos do exterior. Teriam de ser construídas estradas para levar todos estes resíduos e para construir estas instalações (estima-se uma circulação de 15 mil camiões), mesmo que muito material fosse transportado de helicóptero.

Quando a exploração petrolífera chega, a vida muda. E não é para melhor, recorda Luis García, um guia da natureza de 47 anos. Passa-lhe uma nuvem negra pelo rosto quando começa a recordar o dia em que a sua vida mudou, quando voltou ao local na Amazónia onde tinha vivido até aos 11 anos. Era para ser só umas férias, estava nos Estados Unidos, a estudar em Baltimore. "Vi que tudo tinha mudado - e para pior. Muita gente tinha morrido, muitos tinham doenças de pele. Parte da povoação tinha desaparecido e tinha-se transformado em exploração petrolífera. A partir daí tornou-se um objectivo da minha vida mostrar às pessoas que o petróleo não é a forma de apostar no futuro, que há alternativas", conta.

A ideia

A alternativa em que o Governo do Presidente Rafael Correa apostou está no Parque Yasuní, mais concretamente na iniciativa Yasuní ITT, que propõe ao mundo manter o petróleo na terra - e poupar a emissão de 407 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) de gases com efeito de estufa, com petróleo que não será queimado, e outras 800 milhões de toneladas de CO2 em floresta que não será abatida para arrancar o ouro negro do solo.

Em troca, o que pede então o Equador? A preços de 2007 - ainda antes do pico da crise financeira e económica -, os 846 milhões barris de petróleo do lote ITT do Parque Yasuní valiam 7,2 mil milhões de dólares. O Equador assume a perda de metade desta soma. O que pede é que a comunidade internacional assuma os restantes 3,6 mil milhões.

Esse valor teria de ser angariado ao longo de pelo menos dez anos, e colocado num fundo, gerido pelo Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD). O dinheiro seria utilizado principalmente para desenvolver projectos de energias alternativas ao petróleo - sobretudo hidroeléctricas, de grandes dimensões (ver http://mdtf.undp.org/yasuni). Alguma da verba ria reinvestida, para ser aplicado em projectos de desenvolvimento social na Amazónia.

"É notável que um país em desenvolvimento esteja disposto a abdicar de 20 por cento das suas reservas petrolíferas", sublinha José Manuel Hermida, o diplomata espanhol que é coordenador residente das Nações Unidas no Equador. O petróleo representa 53 por cento das exportações equatorianas e garante hoje 47 por cento da sua geração de electricidade.

Portugal é um dos países que expressaram interesse em participar - mas isto foi no tempo do governo de José Sócrates. "Houve um bom contacto há um ano em Nova Iorque com o ministro dos Negócios Estrangeiros [Luís Amado], na anterior Assembleia Geral das Nações Unidas. Claro que compreendemos que houve mudança de governo, e há a crise económica. Ainda não houve contactos com o novo Executivo. Mas em breve nomearemos um novo embaixador, e já estou a dar-lhe instruções", assegurou a ministra do Património do Equador, Maria Fernanda Espinosa, que tem sob sua alçada a Iniciativa Yasuní ITT.

Quatro vezes diverso

Mas o que tem realmente de tão especial o Parque Yasuní para que o mundo possa estar a considerar um bom negócio pagar ao Equador para preservar o negro sob o verde?

Uma análise feita em 2010 por cientistas norte-americanos e do Equador concluiu que o Yasuní é tão especial porque ali se sobrepõem quatro zonas de biodiversidade recorde em termos mundiais: de anfíbios, aves, mamíferos e plantas vasculares (árvores e outras plantas com leninha, como as lianas).

Os cientistas expuseram a importância desta zona num artigo publicado na revista Public Library of Science One em Janeiro de 2010. Em 0,5 por cento da bacia Amazónica concentra-se grande parte da variedade de espécies da floresta: 137 de anfíbios, 211 de mamíferos, 601 de aves e mais de 4000 espécies de plantas vasculares. Um hectare de floresta de terra firme no Yasuní deverá ter mais de 655 espécies de árvores e mais de 900 espécies de plantas vasculares.

"O Yasuní tem tantas espécies de árvores e arbustos em 25 hectares como todas as que existem em todo o território continental dos Estados Unidos", comentou Gorky Villa em Quito, botânico que trabalha na estação científica da Universidade Católica do Equador e da Universidade de Aarhus (Dinamarca).

Na lagoa onde fica o resort Napo Wildlife Center, vive uma espécie de morcegos pequeninos - na palma da mão caberiam dois ou três - que se deixam ficar em troncos caídos na água durante o dia, camuflados, quase idênticos ao cinzento do tronco. Mas são apenas um exemplo da variedade destes mamíferos alados existente no Parque Yasuní. "Num único local do Yasuní vivem mais de 100 espécies de morcegos. Isto é um recorde para a América Central e para os Andes", sublinhou Thomas Kunz, do Centro de Ecologia e Biologia da Conservação da Universidade de Boston (EUA), num recente alerta a favor da urgência em manter o parque livre das empresas petrolíferas.

Ali existem "28 espécies em risco de extinção da Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza, incluindo grandes primatas e mamíferos marinhos, e várias espécies endémicas regionais que não se encontram noutros locais do planeta", disse Christian Voigt, do Instituto Leibniz para Investigação da Vida Selvagem (Alemanha). O boto, por exemplo, que no Equador é descrito como um animal de conto de fadas: um golfinho cor-de-rosa.

"No Yasuní, temos uma maior percentagem de biodiversidade do que em qualquer outro local do planeta. A única coisa próxima de nós ficará no Congo. O entomólogo Terry Erwin estimou que um único hectare da floresta Yasuní possa ter 100 mil espécies de insectos", contou David Romo.

Trapezistas suicidas

Se der um passeio de canoa de noite, com uma lanterna acesa, facilmente dará razão a Romo, mesmo sem fazer cálculos matemáticos ou expressar uma opinião informada. Zzz, bzzz, vrumm, zás, mmmmm. Os ruídos à sua volta - quando não impactos - são testemunhos da quantidade e variedade de insectos que existem no parque Yasuní. Chega a meter medo. O caimão que avistámos, um dos colónia que existe na lagoa do hotel, e que brilha de forma fantasmagórica na água negra, de noite, mete menos medo do que os insectos que vibram sem parar junto à orelha esquerda, sem dar descanso. Parece enorme (o insecto, não o caimão; o primo do crocodilo parece grandinho, mas mantém-se quieto e sem fazer barulho).

Macacos-esquilo (uma espécie não ameaçada) são comuns a acompanhar um passeio de canoa: uma gritaria desenfreada, folhas a serem maltratadas e uns mergulhos no vazio destes pequeninos primatas amantes do perigo, que se atiram de um ramo sem calcular lá muito bem se chegam ao próximo ramo, tipo trapezista suicida - só falta a banda sonora. "Iaaaaaaaaaaá! Paf!" Isto quando os imaginamos a cair na água, o que não deve ser assim tão incomum. Focinho branco, mãos cor de laranja, como se tivessem elegantes luvas compridas, chegam quase ao pé de nós, sempre pendurados em periclitantes ramos.

Os capuchinhos, maiores e mais ariscos, ficam-se lá por cima, perto da copa das árvores. Os macacos gritadores não se vêem; mas ouvem-se, oh como se ouvem, parecem assombrações! Ou o vento, quando sopra e assobia como uma alma penada... "São os animais mais barulhentos do mundo...", diz Juan Carlos Narvaez.

"Quando se encontra tanta diversidade. Começamos a precisar de explicações. O facto de o Yasuní se encontrar na proximidade dos Andes ajuda a explicar por que razão funciona como um refúgio para as espécies", acrescentou, na sede, em Quito, da Finding Species. E por isso os cientistas acreditam também que, com as alterações climáticas, continuará a funcionar como um refúgio, quando outras partes da Amazónia secarem - mais um ponto a favor da importância de preservar aquela zona.

Críticas e ideologia

Esta ideia de salvar uma área da Amazónia especialmente rica em biodiversidade - que, a ouvir os cientistas, seria um crime destruir -, com o apadrinhamento das Nações Unidas e a emissão de certificados de garantia para doações acima de 50 mil dólares que implicam a devolução do dinheiro, se o projecto não for adiante - é um emblema ideológico de Rafael Correa.

O Presidente equatoriano faz parte do grupo de governantes populistas de esquerda da América Latina, embora com origens bem diferentes, por exemplo, do venezuelano Hugo Chávez: economista com formação avançada na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica) e na do Illinois (EUA), a sua governação caracteriza-se por confrontos com os media, por exemplo, como a de Chávez. A sua Revolução Cidadã trouxe o Plano Nacional para Viver Bem ou "Sumak Kawsay", inspirado nas comunidades indígenas Abya Yala, que em vez de defender o crescimento económico contínuo, levando em conta apenas o crescimento do produto interno bruto, busca outras políticas para criar uma economia social e solidária, fazendo uma crítica ao capitalismo.

É fácil lançar-lhe a ele e à iniciativa Yasuní ITT a crítica de que estamos a pagar-lhe para não fazer uma coisa qualquer - é uma espécie de chantagem, ministra Fernanda Espinosa? A governante reage com paixão.

"Somos um país em desenvolvimento com necessidades tremendas e temos direito a extrair este petróleo. Não é como se a Arábia Saudita dissesse de repente que não extrairia mais petróleo se não lhe pagassem um resgate! Extrair este petróleo prejudicar-nos-á a todos. Mantê-lo no solo terá um impacto importante, mas não para o mercado mundial", defende.

O prazo-limite de Correa

A Constituição em vigor, de 2008, além de reconhecer várias nacionalidades (indígenas) resgatou a visão indígena da natureza - ou Pachamama (Mãe Natureza) - como um sujeito que se protege e com o qual se vive em harmonia, porque os seres humanos fazem parte dela. E foi o Presidente que apresentou a ideia para preservar o bloco ITT do Yasuní nas Nações Unidas, em 2007.

Mas, paradoxalmente, o Presidente não deixa de dizer que existe sempre um plano B: a concessão de licenças de exploração petrolífera naquele local da floresta, porque o Equador é um país pobre, que não pode permitir-se desperdiçar recursos. E estabeleceu um prazo-limite para demonstrar a viabilidade da iniciativa: até ao fim deste ano, 31 de Dezembro de 2011, terão de ser recolhidos 100 milhões de dólares de dadores internacionais. Só que não se atingiu os 60 milhões, com o ano a chegar ao fim. E nos media fala-se na possibilidade de realizar uma exploração petrolífera "horizontal", com a perfuração a ser feita a partir de um ponto mais distante até ali - algo que muito inquieta os ambientalistas e pessoas empenhadas em defender o parque.

"Fazer ameaças não é uma boa maneira de conquistar confiança. Diria que ele está mal aconselhado, ou então pensa que esta é a melhor maneira de conseguir o que quer. Não sei", diz Natalia Greene, a directora da Fundação Pachamama, uma organização ambientalista que esteve na origem do lançamento da ideia para preservar o parque Yasuní.

"A mensagem que tentamos fazer passar é que a verdadeira garantia somos nós, o povo, e não o Presidente", afirma Natalia Greene, em Quito. Está vestida de verde, a condizer com as suas convicções políticas (e os seus olhos).

Todos os habitantes do parque Yasuní estão empenhados em salvar a sua casa, a sua jóia verde. E não é que lá não exista exploração petrolífera - existe, sim, em alguns blocos atribuídos a empresas petrolíferas anteriormente, embora a Constituição de 2008 exija um referendo para permitir iniciar novas extracções de petróleo nos parques naturais. "Mas a lei não tem efeitos retroactivos, e a Repsol tem direito a explorar o bloco petrolífero 16 até 2018", explica Carlos Larrea. Mas isso não quer dizer que a presença das petroleras seja bem vista pelos cerca de 5000 habitantes do Yasuní.

Se alguns chegaram a acordo com as companhias petrolíferas, outros começaram a organizar-se para resistir - viram a destruição do ambiente, como na região de Lago Agrio, que há anos está envolvida num processo judicial contra a Chevron norte-americana, por causa dos danos produzidos pela Texaco (empresa que entretanto a Chevron comprou). Em Setembro, os queixosos equatorianos conseguiram uma vitória num tribunal de Nova Iorque, quando estavam prestes a ser impedidos de apresentar o seu processo em qualquer tribunal do mundo (assim tinha determinado um juiz em primeira instância, a contento da Chevron).

"O processo da Chevron foi mesmo David contra Golias. Nunca conseguiremos recuperar as vidas que se perderam, mas abalou realmente a sociedade civil. Há muito ressentimento, as pessoas estão à procura de mudança - e aí surgiu a iniciativa Yasuní", diz Natalia Greene.

Jiovanny Ribadaneira, o kichwa que dirige o Napo Wildlife Center, resume este descontentamento numa frase: "Deus deu-nos esta riqueza. O Equador é um país de petróleo, mas a comunidade indígena não sentiu os benefícios da sua exploração." A ideia de base é simples, diz Natalia Greene: "Apesar de todo o valor que o petróleo possa ter, o que está acima do solo vale muito mais."

cbarata@publico.pt

A Pública viajou a convite da Presidência do Equador

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