Memórias de um arquivo multicultural

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A evocação da pintura romântica alemã: “Mnemosy”

Filme que entrecruza imagens de arquivo com paisagens contemporâneas, “Mneomsyne”, do cineasta e artista John Akomfrah, é um formidável ensaio audiovisual que resgata uma história pouco contada. A do negro britânico depois e durante as migrações do pós-guerra

Já não falta muito para que "Mnemosyne" desapareça da sala escura do espaço Carpe Diem, na Rua de O Século, ao Bairro Alto. Exactamente, a partir de hoje, oito dias. Porquê este aviso? Porque é uma obra que anseia pelo olhar dos espectadores, que se oferece à partilha. Ousamos dizer: que interessa particularmente aos espectadores portugueses.

O seu autor chama-se John Akomfrah, proeminente artista e cineasta, negro e britânico, co-fundador do Black Audio Film Collective. E a sua apresentação, em Lisboa, surge no âmbito do programa "O Barulhamento do Mundo", organizado pelo África.cont. Acrescentamos ainda que se trata de uma instalação, cuja versão cinematográfica ("The Nine Muses") teve honras de exibição, em Outubro, no Museum of Modern Art, em Nova Iorque.

E o que mostra "Mnemosyne"? Podemos dizer que mostra duas histórias. A primeira é a da migração em massa para a Inglaterra entre 1949 e 1959, que descobrimos nas imagens de arquivo, de indianos e negros das Antilhas e da África Ocidental. Vêmo-los nos cais e aeroportos ingleses, apreensivos, curiosos e cansados da viagem; depois, a percorrer as ruas, a trabalhar, a dançar, a rezar. A segunda, feita de imagens, não documentais, produzidas com tecnologia digital, é a de um homem de impermeável amarelo que percorre e contempla uma paisagem gélida, inóspita e bela.

"Procurei trazer um diálogo entre o público e o privado", revela o cineasta em conversa com o Ípsilon. "A neve e o vento têm a ver com a ideia de viagem emocional. Falei com muito migrantes e todos recordam o frio da Inglaterra e a solidão das suas viagens, mesmo quando as fizeram acompanhados. Mas também me disseram que sentiam que vinham colorir uma paisagem monocromática. Tentei representar, mostrar esse tipo de sentimento". As imagens de arquivo constroem o outro lado do diálogo: "Revelam o sentimento público do migrante, em casa, na rua, no trabalho. Vemos a sua face, ela mostra-se ao mundo exterior. E eu confronto-a com um mundo interior. Sugiro, com as imagens da travessia da neve, uma paisagem subjectiva".

Os planos da travessia solitária evocam a pintura romântica alemã, observação que merece a anuência do cineasta: "Sim, são inspirados em obras de pintores como o Caspar David Friedrich. Tentei perpetuar essa tradição na forma como compus as imagens da natureza, das montanhas".

Mas regressemos ao arquivo e às memórias de uma certa Inglaterra. No recreio de uma escola, miúdos (negros, brancos, indianos) empurram-se entre gargalhadas, procurando captar a atenção da objectiva. Apetece perguntar: e as (nossas) imagens dos nossos (i)migrantes das ex-colónias? Onde estão? Quem as fez? John Akomfrah acode-nos: "Portugal neste período ainda lidava com Salazar, mas há um aspecto do pós-guerra britânico que explica a existência destes documentos e que é o papel da televisão pública britânica. A BBC filmou extensivamente a vida dos migrantes. Aliás, a própria BBC e o Arts Council, que apoiaram Mnemosyne, têm vindo a alertar as pessoas para a existência desses arquivos, para que se confrontem com a história e a memória."

A arte é a filha da memória

Nas décadas de 1940 e 1950, uma boa parte dos migrantes das Antilhas e da África Ocidental eram ainda cidadãos britânicos. São eles os protagonistas centrais da instalação. "As imagens de arquivo permitem construir uma representação do negro britânico que curiosamente não vem da periferia, dos países colonizados, mas do centro. Há um efeito duplo. São, ao mesmo tempo, registos oficiais e contam uma história não oficial. Por isso, os monumentos e memoriais dessas pessoas encontram-se nestas imagens em movimento, como repositórios de uma memória popular".

A ideia de memória popular assoma nos registos de actuações musicais, como as dos Gundecha Brothers ou de Leontyne Price, soprano americano, que interpreta "Sometimes I Feel Like a Motherless Child": "Foi uma cantora muito famosa que passou pela Inglaterra. A televisão pública transmitia muitos concertos e actuações de artistas negros. É uma longa história que quis recordar, pois vai saindo da memória das pessoas".

Da banda sonora de "Mnemosyne" fazem parte outros nomes, de outros universos musicais, como Mozart, Schubert, Gavin Bryars ou Arvo Pärt, compondo um mosaico de ruídos e vozes, melodia e dissonância, momentos bombásticos e elegíacos. E, em diálogo com as imagens, citações e declamações de textos de James Joyce, John Milton, Samuel Beckett ou T.S Eliot. "Lidam com a questão do devir humano. Uma obra que se debruça sobre a identidade e o devir do migrante e do negro britânico deve contar com esse contributo. Houve quem me questionasse sobre a necessidade de incluir autores brancos. Achei que era importante, pelo que podiam dizer à experiência do negro na Inglaterra. Fazem parte da minha cultura, foram-me ensinados na escola".

O mesmo se poderia dizer da cultura e literaturas gregas. "Odisseia", de Homero é uma referência tal como a figura mitológica que dá o nome à instalação. "Os mitos gregos têm um importante valor alegórico. Oferecem-nos um espelho onde nos podemos olhar de uma forma diferente", considera o cineasta. "Porque as pessoas não são apenas indivíduos. Materializam uma série de temas, como o destino, o futuro, a sorte, a redenção. No caso da Mnemosyne e das suas noves filhas, achei interessante o facto de estas, sendo musas da criação, sugerirem narrativas com as quais as nossas vidas podem ser estruturadas. A música, a dança, a poesia. A a arte é a filha de memória."

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