Os Evangelhos segundo José Rodrigues dos Santos

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PIERRE-PHILIPPE MARCOU/AFP

Maria não era virgem. Jesus Cristo era irmão de Judas, nunca ressuscitou e nunca, mas mesmo nunca, lhe passou pela cabeça fundar uma nova religião, segundo Rodrigues dos Santos. A Igreja reagiu intempestivamente. Desenganem-se os mais leigos: não foram afirmações como estas que indispuseram a Igreja, que até as admite como verosímeis; o que irritou no livro O Último Segredo é que tais teorias surjam como verdades inegociáveis

A história de que Jesus Cristo nasceu em Belém é completamente inventada. A Virgem Maria não era virgem. Jesus tinha vários irmãos. Entre estes, Judas. O Novo Testamento não passa de uma colagem fraudulenta ao antigo. A narrativa da ressurreição também é uma fraude e Cristo, que afinal era um pregador apocalíptico desprezado pelos seus parentes, nunca quis fundar o cristianismo. Parece que estas teses, que podem surpreender os cristãos com conhecimentos mais rarefeitos sobre teologia (a maior parte de nós), são de há muito conhecidas dos teólogos e a Igreja Católica é a primeira a reconhecer a verosimilhança de algumas delas, apesar de a doutrina oficial pregada a partir dos altares insistir no contrário.

Vêm todas embrulhadas na trama detectivesca de O Último Segredo, do jornalista José Rodrigues dos Santos. Duas semanas depois de ter sido lançado, o livro já vendeu 90 mil exemplares e está a ser reimpresso pela editora Gradiva. Mas o que irritou a Igreja Católica não foi que tais revelações fossem transportadas para as estantes dos milhares de portugueses que compraram o livro. O que irritou a Igreja Católica foi que José Rodrigues dos Santos as tenha travestido de verdades absolutas e inegociáveis. Chega-se à página 11 das 563 que compõem o livro e lá está: "Todas as citações de fontes religiosas e todas as informações históricas e científicas incluídas neste romance são verdadeiras". Na contracapa a editora anuncia que do que ali se trata é de revelar "a verdadeira identidade de Jesus Cristo".

Temos então que, diz o teólogo de literatura bíblica Joaquim Carreira das Neves, o pivot da RTP descobriu a verdade última sobre um tema que há centenas de anos divide milhares de teólogos. "Eu estive em bibliotecas em Jerusalém que têm 400 mil livros sobre isto. Em Roma, estive noutra biblioteca que tem 300 mil livros. Na minha pequena biblioteca tenho três mil livros sobre isto. Há milhares e milhares de exegetas como eu que passaram a vida toda à volta disto e, que eu saiba, ninguém chegou a estas conclusões lapidares de José Rodrigues dos Santos que leu 18 livros e que ficou a saber tudo", desabafa, já agastado com tantos telefonemas, tantas cartas, tantos emails a perguntar: "Então, afinal, como é que é?...".

"Se José Rodrigues dos Santos realmente descobriu a verdade sobre Jesus Cristo, que até é a figura mais estudada da história", ironiza o padre e professor de Filosofia Anselmo Borges, "então que escreva um artigo científico ou uma tese e se deixe confrontar pelos seus pares para ficar na história das ciências bíblicas como um nome inapagável". Para Anselmo Borges, que até aceitou apresentar o livro a convite da Gradiva, o problema está em que o autor "quis jogar nos registos ficcional e histórico-teológico ao mesmo tempo e isso não é intelectualmente honesto, porque o leitor não tem a capacidade de destrinçar o que é ficcional e o que não o é". Para Anselmo Borges, "Jesus é uma figura em aberto e, portanto, existe toda a liberdade ficcional". "Não se pode é", insiste, "jogar nos dois tabuleiros ao mesmo tempo".

Nada de novo

Tivesse o autor prescindido da tal nota da página 11 e o assunto estaria enterrado. Talvez o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, dirigido pelo padre e poeta José Tolentino de Mendonça, nem se tivesse dado ao trabalho de publicar a nota em que criticou o "tom de intolerância desabrida" com que o livro entra "na história da formação da Bíblia" e na "fiabilidade das verdades de Fé em que os católicos acreditam".

Na resposta, José Rodrigues dos Santos repete que o livro não contém efectivamente nada de novo. Mas a verdade, acrescenta, é que "o cidadão comum nunca ouviu ninguém dizer que Cristo não era cristão e que há indícios no Novo Testamento que questionam seriamente a virgindade de Maria e que existem textos fraudulentos na Bíblia". No final, o desafio: "A Igreja está com medo de quê? Que os seus fiéis descubram a verdade sobre Jesus e a Bíblia? O Último Segredo abriu uma janela de oportunidade para se explicar a verdade aos crentes".

É assim, Joaquim Carreira das Neves? "A Igreja não está a esconder nada, nós discutimos isso tudo nas aulas de Teologia, eu dei centenas de conferências sobre esse assunto, agora não me vou pôr no altar a falar, sem mais nem menos, das diferentes teses que existem. Não é lugar. O lugar para isso são as universidades, as conferências, os livros publicados. E, de resto, são questões em aberto. Está tudo em aberto".

Ao padre Anselmo Borges não custa admitir que a Igreja "deve formar melhor os seus fiéis e promover um maior esclarecimento sobre a figura de Jesus Cristo". "Como em Portugal a Teologia se vai mantendo longe da universidade pública, os fiéis ficam-se pela catequese quando são crianças e depois criam-se embaraços como este", reconhece.

O que responder então a quem cresceu a acreditar que Jesus nasceu em Belém, que era o único filho de José e Maria e concebido sem pecado e que ressuscitou ao terceiro dia? "Se eu penso que Jesus teve irmãos? É muito provável que tenha tido. Se eu penso que Maria foi virgem? Para já, não me faz diferença. E volto a lembrar que o credo não é um tratado de biologia, portanto a virgindade pode querer dizer outra coisa qualquer e, efectivamente, S. Paulo não faz nenhuma referência à virgindade. Agora, isso para mim não constitui escândalo nenhum. São teses em aberto. Quanto às aparições pós-ressurreição, há ali um pressuposto que estas não se deram, claro, mas os crentes que sabem o que isto quer dizer não afirmam que a ressurreição é um acontecimento da história empírica: é uma experiência radical de fé, e, portanto, uns acreditam e outros não", adianta Anselmo Borges, para repetir que a sua divergência fundamental em relação ao livro não se prende com estes episódios, mas com o método. É o método "envenena o livro todo".

Desde logo por causa do número de vezes em que as palavras fraude e intrujice surgem a qualificar os textos do Novo Testamento. A tese do romance é que nem Marcos, nem Lucas, nem Mateus, nem João escreveram qualquer linha e, portanto, os evangelhos cuja autoria lhes é imputada mais não são do que falsificações. Não é que isso seja completamente errado, contextualiza Teresa Toldy, doutorada em Teologia e uma das consultoras do livro. "O facto de muitos destes textos do Novo Testamento não terem sido escritos pelas pessoas a quem a autoria foi atribuída é pacífico, mas a conclusão de que por isso são fraudulentos já não". Explique-se melhor: "Naquela época, quando um texto era escrito para um grupo, colocar nele o nome de uma figura de referência para esse grupo era conferir autoridade ao texto e não se tratava de nenhuma fraude. Há uma tradição oral que depois se fixa num texto com um dado autor. E o principal problema do livro está nesse curto-circuito da compreensão do que era a noção de autoria naquela época e a noção de autoria actual. Ou seja, uma prática que na época conferia maior autoridade ao texto é no romance interpretada como uma fraude. Portanto, está correcta a assunção de que os textos não foram escritos pelos autores, mas é abusiva e anacrónica a conclusão de que, por isso, são textos fraudulentos".

Teresa Toldy não partilha, assim, das conclusões que José Rodrigues dos Santos põe na boca do criptanalista Tomás de Noronha, o herói do seu livro. "Tive oportunidade de lhe dizer isso, mas, se ele prescindisse dessa abordagem, o livro desmanchava-se e penso que por isso a terá mantido", adiantou ao P2.

Virgem ou não?

José Tolentino Mendonça escreveu a nota e sobre este assunto não tem "mais nada a acrescentar". O que se pode é ir ao romance buscar a explicação para a tese de que Maria não era virgem como nos habituámos a ler nos evangelhos de Lucas e Mateus. Nas profecias de Isaías escritas em hebraico a palavra que este usou para se referir à mãe do Messias foi "mulher jovem" e não "virgem". Na tradução para grego, o autor enganou-se neste versículo e em vez de "mulher jovem" a palavra que usou foi phartenos, ou seja, "virgem".

"Acontece que os autores dos dois evangelhos, Lucas e Mateus, leram a profecia de Isaías na sua tradução grega, e não no original em hebraico. Querendo associar Jesus às profecias das Escrituras, para o legitimar enquanto Messias e Filho de Deus, escreveram que Maria era virgem, coisa que aliás Marcos, João e Paulo nunca referiram", atira Tomás de Noronha, na página 107. O padre Carreira das Neves confirma que "São Paulo, que escreveu uns 20 anos depois da morte de Jesus, fala de Maria apenas uma vez e para dizer que Jesus nasceu de uma mulher".

Umas linhas adiante e eis Tomás de Noronha a citar S. Marcos, versículo 6:3 ("Não é ele o carpinteiro filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e Simão? E as Suas irmãs não estão aqui entre nós?") para sustentar: "Se a mãe de Jesus era de facto virgem, como pretendem Lucas e Mateus, como concebeu ela essa filharada toda? Também por obra e graça do Espírito Santo? Foram todas imaculadas concepções?". Foram, padre Carreira das Neves? "Está tudo em aberto. Há uma teoria que diz que são irmãos de sangue e há outra que diz que são irmãos de cultura e esta é a tese que a Igreja seguiu a partir dos séculos II e III, com São Jerónimo". Anselmo Borges também se refere à existência de uma teoria que defende que na altura "a expressão irmãos era muito abrangente e podia ser aplicada a companheiros". E a uma outra teoria dos que defendem tratar-se "não de irmãos, mas de primos". O criptanalista Tomás de Noronha não tem dúvidas. "A frase de Marcos (...) torna evidente pelo seu contexto que se está a referir a irmãos de sangue. O resto não passa de esforços desesperados para adaptar os factos à teologia".

Por afirmações como esta é que Carreira das Neves se mostra incompatibilizado com o romance. "Um romance é um romance, ponto. Mas ele diz que aquilo está tudo provado, destrói e reconstrói tudo à sua maneira, sustenta que o que se diz nas missas é uma intrujice. Para mim, o problema é ele transformar-se nesta Pitonisa de Delfos que detém a verdade e a última palavra e que chama erros, fraude e falsificações às variantes que há, seja no Velho como no Novo Testamento, porque a Bíblia fez-se assim mesmo, através de variantes e de releituras de leituras ", desabafa, para se demarcar igualmente da visão de um Jesus Cristo apocalíptico, género versão antiga daqueles malucos que vemos nas ruas com cartazes e barbas por aparar a apregoar o fim do mundo, a quem nunca terá passado pela cabeça criar uma nova religião. "É uma posição que ele pode defender, mas que não me parece que seja verdadeira".

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