Ruy Belo: poesia que vive da morte

Foto

Um colóquio internacional e a edição de vários livros marcam o cinquentenário da estreia poética de Ruy Belo. O que poderia ser mera confirmação ritual do estatuto canónico do poeta de “Boca Bilingue” talvez venha a mostrar, afinal, que o enquadramento desta obra na poesia portuguesa do seu tempo é ainda um problema em aberto

Termina hoje na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, um colóquio internacional de dois dias dedicado a Ruy Belo, a pretexto dos 50 anos decorridos sobre a primeira edição do seu livro de estreia: "Aquele Grande Rio Eufrates". A fechar o primeiro dia de trabalhos - se tudo se passou consoante estava programado, já que a escrita deste texto é anterior ao início do colóquio - foram ontem lançadas três edições, todas com a chancela da Assírio & Alvim: uma reedição de "Homem de Palavra[s]", o quarto livro de Ruy Belo, originalmente publicado em 1970, uma antologia da sua poesia, "Na Margem da Alegria", organizada e prefaciada por Manuel Gusmão, e a obra "O Núcleo da Claridade", do fotógrafo Duarte Belo, filho do poeta, que nela prossegue o trabalho que iniciara em 2000 com "Ruy Belo - Coisas de Silêncio".

A par de fotografias do poeta, sozinho ou com familiares e amigos, e de imagens de lugares que este habitou - a aldeia natal, S. João da Ribeira, em Rio Maior, as cidades que percorreu na sua formação académica (Santarém, Coimbra, Lisboa, Roma), Madrid, onde foi leitor, Vila do Conde e Peniche, destinos estivais, e finalmente Queluz, onde veio a morrer, no dia 8 de Agosto de 1978 -, o livro de Duarte Belo inclui ainda um notável conjunto de fotografias que nos mostra a panóplia de objectos que o seu pai conservou, das máquinas de escrever e dos óculos de mergulho a bonecos de cerâmica ou bilhetes de ingresso em espectáculos. Na vasta secção dedicada aos manuscritos e a outros papéis de Ruy Belo, destaquem-se as imagens das anotações que o poeta fez num exemplar de "Aquele Grande Rio Eufrates", quase sempre elucidando os referentes que estão por detrás de alguns versos. Ficamos assim a saber, por exemplo, que o célebre final do poema que abre o livro - "É terrível ter o destino/ da onda anónima morta na praia" - lhe terá sido sugerido pelas concretas ondas do mar de "Cascais no Outono". Ou que a "cidade sonhada/ dominicalmente aberta ao mar", do poema "Compreensão da Árvore", é "o porto de Galway, na costa ocidental da Irlanda".

A realização deste colóquio poderia resumir-se a uma respeitável efeméride cultural, uma celebração mais ou menos ritual de um poeta canónico a propósito do cinquentenário da publicação do seu livro de estreia. No entanto, parece haver bons motivos para se admitir que dele venha a resultar uma imagem de Ruy Belo um pouco menos consensual do que seria previsível, tratando-se de um poeta que morreu há mais de 30 anos e em cuja obra já se detiveram várias gerações de críticos e historiadores da literatura.

Ditas as coisas de maneira simples, a posição que Ruy Belo ocupa na poesia portuguesa da segunda metade do século XX parece ainda ser, em boa medida, um problema em aberto. E essa é desde logo uma das suas singularidades, já que o mesmo dificilmente se poderia dizer de outros poetas que, na prática, se revelaram também nesse prolífico ano de 1961 (ainda que alguns deles já então estivessem publicados em livro), como Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge ou Gastão Cruz. Daí que este colóquio, organizado por Paula Morão, Nuno Júdice e Teresa Belo, ganhe uma pertinência particular, já que permitirá o confronto directo de diferentes visões da obra beliana que até agora só vinham dialogando através de livros e artigos.

A morte em preparação

Lendo o que escreveram ensaístas (alguns deles também poetas) de várias gerações, como Eduardo Lourenço, Gastão Cruz, Manuel Gusmão ou Pedro Serra, presentes neste colóquio, ou ainda Joaquim Manuel Magalhães, previsivelmente ausente, percebe-se que há amplas zonas de consenso, e desde logo no comum reconhecimento da inequívoca relevância da poesia de Ruy Belo. Todos realçam também a singularidade de uma obra poética sem antecessores, companheiros de jornada ou sucessores demasiado óbvios, algo que não é evidentemente incompatível com o que Ruy Belo ostensivamente deve a vários poetas, e antes de todos a Fernando Pessoa. "Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais", diz um verso de "Homem de Palavra[s]".

A dimensão barroca desta poesia, o seu assombroso virtuosismo versificatório - que o torna de tradução quase impossível, o que pode ajudar a explicar que este "colóquio internacional" seja, no essencial, um colóquio luso-brasileiro -, a sua atenção ao real quotidiano, ou ainda as suas preocupações políticas, especialmente óbvias no período que vai de "Boca Bilingue" (1966) à antologia "País Possível" (1973), são, inventariando-as um pouco ao acaso, outras características que os sucessivos leitores de Ruy Belo não puderam deixar de notar. E falta ainda referir o mais óbvio ponto de acordo: esta é uma poesia cujo motor é a morte. "Tenho uma vasta obra publicada/ e tenho a morte em preparação", escreve o poeta, também em "Homem de Palavra[s]".

As divergências começam no modo como estas e outras marcas da poesia de Ruy Belo, razoavelmente indiscutíveis em si próprias, foram sendo diversamente lidas ao longo das últimas décadas. E estas variações, que parecem por vezes resumir-se a questões de detalhe, tiveram o efeito de fazer da obra de Ruy Belo uma espécie de reino flutuante na geografia da poesia portuguesa do século XX, que, por acção de diferentes correntes, tanto se encosta a alguns dos seus vizinhos geracionais dos anos 60, como desliza ao encontro dos poetas que se revelaram nos anos 70, e chega mesmo a entrever a linha de costa desse outro mundo a que se chamará pós-modernidade.

Pedro Serra, num livro que reúne vários ensaios sobre Ruy Belo - "Um Nome para Isto" (2004) -, nota que "o influxo de Ruy Belo nas décadas subsequentes não pressupõe escrever contra ele". E poderia acrescentar-se que isto é verdade não apenas no sentido de que autores com poéticas aparentemente tão divergentes como Gastão Cruz ou Joaquim Manuel Magalhães puderam senti-lo como genuinamente próximo, mas também no sentido em que a sua poesia não é, como as de Pessoa ou Herberto Helder, dessas que podem assombrar um poeta mais novo a ponto de o fazer recear pela originalidade da sua própria voz.

Oscilações canónicas

Num artigo recente, Gastão Cruz insere Ruy Belo entre os poetas que, tal como ele e os seus companheiros de Poesia 61, mas também, por exemplo, Ramos Rosa ou Carlos de Oliveira, davam prioridade à "pesquisa no domínio da linguagem poética" e, nos anos 60, procuraram "levar o mais longe possível o ímpeto inovador (...) das ainda muito influentes linhas modernista e surrealista". Gastão nota ainda que, num contexto de repressão política, Ruy Belo faz questão de dar o seu testemunho, mas "sem jamais alienar a condição de artista da linguagem". Joaquim Manuel Magalhães, num texto do livro "Os Dois Crepúsculos" (1981), diz algo bastante semelhante, sublinhando que "a contínua atenção política" da sua poesia dispensa "qualquer demagogia verbal, qualquer concessão, seja de que espécie for, a qualquer panfletarismo".

Mas onde Gastão Cruz parece ver um poeta de quase exclusiva filiação modernista, já Magalhães lhe atribui uma genealogia mais complexa, situando-o numa linha de poetas que, "no Romantismo, inclui Wordsworth, no Modernismo, Eliot, no Pós-modernismo, Dylan Thomas". E que na poesia portuguesa, acrescenta, "passa por Cesário Verde, António Nobre e Alberto Caeiro".

Publicado em "Um Pouco da Morte", de 1989, este ensaio de Magalhães é provavelmente o primeiro texto em que o pós-modernismo é evocado a propósito de Ruy Belo. Apenas quatro anos mais tarde, em 1993, Américo António Lindeza Diogo já não terá dúvidas em reconhecer em Ruy Belo "a figura paradigmática" daquilo a que chama "um primeiro tempo" do pós-modernismo literário em Portugal.

Se Magalhães foi, ao longo dos anos 80, o principal reponsável, ainda que não o único, pelo facto de a atenção pública à obra de Ruy Belo não ter esmorecido, quer através dos muitos textos que lhe dedicou, quer pela edição que organizou da sua obra poética e crítica, essa tarefa irá ser assumida, a partir da década seguinte, por uma geração de ensaístas universitários que inclui, além do já referido Lindeza Diogo, Osvaldo Silvestre ou Pedro Serra.

Quando a Presença, a partir de 1996, reedita autonomamente todos os livros de poemas de Ruy Belo, acrescentando a cada um deles um novo prefácio, Silvestre é convidado a apresentar "Boca Bilingue" (1966). Logo no primeiro parágrafo, afirma: "(...) a obra de Ruy Belo aparece-nos hoje como uma das mais convincentes evidências do esgotamento dos imperativos do modernismo."

Em 2002, o mesmo Silvestre e Pedro Serra organizam a ambiciosa antologia "Século de Ouro". Ruy Belo é, a par de Álvaro de Campos, o poeta mais representado. A edição deste volume constituiu um momento forte desse movimento de revitalização canónica do autor que se vinha desenvolvendo desde a segunda metade dos anos 90. Na introdução ao livro, os dois organizadores afirmam que "o século, que terá começado por prestar culto a Pascoaes nas duas primeiras décadas, terá sido pessoano entre 1930 e meados de 60, herbertiano entre esses meados de 60 e os de 80, para por fim, com especial ênfase na década de 90, atribuir tal posição a Ruy Belo".

Uma poética híbrida

O século, digamos assim, foi levado a concordar com Silvestre e Serra, mas, curiosamente, também terá acabado por dar razão a Gastão Cruz, que afirmou ao Ípsilon considerar Ruy Belo "o maior poeta português da segunda metade do século XX, aquele que faz ‘pendant' com o Pessoa da primeira metade do século".

Sem ir tão longe, Nuno Júdice também lhe atribui "uma das obras centrais da segunda metade do século XX", acrescentando que Ruy Belo, com a sua revitalização do poema longo e a "base filosófica e reflexiva" da sua poesia, foi "marcante" para os poetas da sua própria geração. Já Paula Morão, ainda antes de apreciar Ruy Belo com o seu olhar especializado de professora e ensaísta, tinha sido cativada pela "impressão de identificação pessoal" que sentira ao ler, "por volta de 1971", "Homem de Palavra[s]", o seu primeiro confronto com a poesia de Belo.

A diferença que se esconde sob este aparente consenso é que o Ruy Belo de Gastão e Júdice, ou mesmo o de Magalhães, não é exactamente o poeta pré-pós-modernista proposto por esta nova geração de críticos. E não é decerto por acaso que Pedro Serra dedica as primeiras páginas do seu já referido livro sobre Ruy Belo a inventariar e rebater as sucessivas leituras anteriores da obra beliana.

Um dos obstáculos evidentes nesta tentativa de descolar Ruy Belo de uma linhagem estritamente modernista, mesmo admitindo o que diversamente deve a um T. S. Eliot ou a um Pessoa, é a própria obra crítica de Ruy Belo, reunida em 1969 no volume "Na Senda de Poesia", que veio a ser postumamente reeditado com grande acréscimo de textos dispersos. Quer nas suas refelexões mais gerais sobre a poesia, quer nas suas abordagens de obras concretas, o Ruy Belo crítico é manifestamente um homem de convencionais convicções modernistas.

A ensaísta Rosa Maria Martelo, que participa também neste colóquio, adianta uma hipótese que contribuiria para atenuar estas contradições, e que passa por se assumir que a contradição, por assim dizer, está no próprio Ruy Belo. Martelo vê de algum modo três fases distintas nesta poesia: a primeira iniciar-se-ia e esgotar-se-ia com "Aquele Grande Rio Eufrates"; a segunda, que atravessaria os restantes livros dos anos 60 e os primeiros da década seguinte, seria aquela em que esta obra se aproxima mais das revisitações do modernismo próprias da época; a terceira, coincidente com a opção definitiva pelo poema longo, vê-a Martelo como uma fase algo híbrida, em que a herança modernista está apenas presente à escala do verso ou do segmento, mas já não ao nível da estrutura do poema. Essa característica expansiva dos últimos poemas longos de Ruy Belo, que em rigor poderiam prosseguir indefinidamente para lá do ponto em que o poeta decidiu terminá-los - e que, nota ainda Martelo, são constituídos por uma acumulação de segmentos cuja ordenação poderia ser permutada sem danos irremediáveis ao nível do sentido -, é justamente um dos pontos em que o poeta se afasta da tradição modernista do poema longo, seja ela a de Eliot, seja a da hiper-estruturada "Ode Marítima" de Álvaro de Campos.

Uma certeza inabalável

A outro participante no colóquio, o ensaísta Gustavo Rubim, o que mais o impressionou na sua releitura desta poesia foi a constatação de que "Ruy Belo é o último poeta português a estrear-se com um nome forte". E esta "certeza inabalável na sua natureza de poeta", argumenta Rubim, coloca-o nos antípodas dos "poetas sem qualidades, dos poetas sem uma convicção forte de que são poetas".

Seria interessante perceber como é que esta figura do poeta forte joga, em Ruy Belo, com uma aguda consciência de que a poesia é um valor declinante no mundo em que lhe foi dado viver, dilema que não parece angustiar excessivamente outro poeta da sua geração: Herberto Helder.

Mas, ao usar, decerto não inocentemente, a expressão "poetas sem qualidades" - título, como se sabe, de uma antologia organizada em 2002 por Manuel de Freitas -, Rubim parece estar ainda a sugerir que o tipo de poeta que Belo é o opõe naturalmente a Freitas e a outros poetas recentes com os quais este mantém reconhecidas afinidades.

A hipótese parece encontrar alguma confirmação no facto de Freitas não ter incluído Ruy Belo na sua antologia "A Perspectiva da Morte", editada pela Assírio & Alvim em 2009. Sendo óbvio que "a perspectiva da morte" não é propriamente uma questão menor na poesia de Ruy Belo, e não parecendo provável que essa circunstância tenha escapado ao antologiador, é lícito presumir que esta é uma dessas ausências que Freitas justifica na introdução com o recurso a uma célebre frase de Rilke: "Je n'ai pas d'organe pour Goethe."

Quem for seguindo os blogues de alguns poetas da mesma geração, e as polémicas por vezes bastante aguerridas que se travam nas respectivas caixas de comentários, confirmará que Freitas não é caso único, e que Ruy Belo parece não ser, de facto, uma referência consensual para os poetas da nova geração, ainda que nela tenha também admiradores incondicionais, como se depreende, por exemplo, do destaque que lhe é dado na antologia "Poemas Portugueses", de Rui Lage e Jorge Reis-Sá, onde ocupa um espaço significativamente superior ao de Mário Cesariny ou de Herberto Helder.

Se levarmos a hipótese de Rubim para terrenos mais especulativos, pode ainda perguntar-se se não haverá relação entre esse investimento radical de Ruy Belo na sua condição de poeta, que parece inegável, e a sua "aventura mística" de dez anos, que refere no prefácio à segunda edição de "Aquele Grande Rio Eufrates". Como se tivesse tentado encontrar, não exactamente na poesia, mas no ser poeta, uma substituição para a intensidade dessa entrega absoluta que deixara para trás.

Leia-se este excerto de um texto que publicou, em 1972, na revista "Crítica", dirigida por Jorge Silva Melo: "O poeta, sensível e até mais sensível que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a vida privada. Ai dele, se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas do seu tempo, mais ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo (...)." Num texto que poderia ser lido como uma espécie de Imitação de Cristo "ad usum poetae", o poeta que Ruy Belo nos descreve não parece andar muito longe da figura do mártir.

Sugerir correcção
Comentar