Jorge Palma Ajustar contas com o mundo

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O título do disco nasceu antes das gravações, “com uma carga sarcástica”, diz Jorge Palma Isabel Pinto

O novo disco de Jorge Palma já está aí, saído de uma página em branco, para falar da morte e do amor e fazer um ajuste de contas com o mundo. Nele há canções sarcásticas e outras saídas de memórias pessoais ou de apostas com Zeca Baleiro. Com todo o respeito.

É irresistível imaginar Jorge Palma numa crise de inspiração quando se ouve "Página em branco", o primeiro tema do novo disco ("Com Todo o Respeito"). O papel vazio, a guitarra na mão, os cinzeiros cheios, o piano surdo, o copo de vinho que talvez "pudesse vir a ajudar". É verdade, em parte, houve momentos assim, mas a canção, diz o músico, é uma "brincadeira com esse estado de espírito". Que, aliás, o assalta muitas vezes. "Desde sempre. Não sou como outros músicos que têm método, que escrevem todos os dias, nem que seja para deitar fora. Eu escrevo mais de impulso. Escrevo, não gosto e fico à espera, não fico ansioso."

Desta vez, quando começou a fazer este disco, tinha apenas um título na cabeça e três canções prontas, todas elas feitas de encomenda: "Tudo por um beijo", banda sonora do filme "A Bela e o Papparazzo", de António-Pedro Vasconcelos; e "Imperdoável" e "O mundo e a casa", escritas para o grupo de teatro A Barraca, para a peça "A Balada da Margem Sul", de Hélder Costa, e que "vivem por si próprias, fora do contexto da peça". "Essa última brinca com ‘A Casa e o Mundo', do Tagore, enquanto a outra remete para o filme do Clint Eastwood. Gosto dessas brincadeiras." Há outras, neste disco: "Quando eu digo ‘nunca olhes p'ra trás' a referência é o ‘don't look back' do Dylan, enquanto os ‘Anjos de Berlim' remetem para o filme ‘As Asas do Desejo', do Wenders."

Uma carga sarcástica

O título do disco nasceu antes das gravações, já "com uma carga sarcástica". "Nem sei porquê, pensei logo em ‘Com Todo o Respeito'. Cheguei a escrever uma estrofe ou duas, que foram para o lixo. Foi a última canção que escrevi, em Maio ou Junho, já com o resto pronto." É uma canção irónica, de crítica social, mas que repega no final o tema do amor presente noutras canções do disco, mas pelo avesso: "Dizias meu amor, que eu era tudo p'ra ti/ mas nunca me falaste do teu amante/ só p'ra me evitares o desgosto com todo o respeito." Não é autobiográfica, diz Palma: "Lembrei-me da ‘Chanson des vieux amants", do Jacques Brel. ‘Bien sûr tu pris quelques amants/ Il fallait bien passer le temps/ Il faut bien que le corps exulte...' Achei piada, para mudar de ambiente."

Este "ambiente" era já o da crise económica mundial, que acabou por influenciar o rumo que a canção seguiu. E, de certo modo, uma parte do próprio disco. O arranque alinha quatro canções de amor servidas por um rock batido e, a partir daí, em canções mais reflexivas ou mordazes sobre o estado da sociedade e do mundo, "vai mais para o folk, o country, o bluegrass". Ou o blues, como no caso de "Uma alma caridosa", com letra de Carlos Tê. "As letras dele já trazem música, a das próprias palavras. O resultado é que depende de quem as musica." O mesmo se passou com "Pensámos em nada", de José Luís Peixoto, a segunda letra em 13 que não foi escrita pelo próprio Palma. "Também parecia já vir musicada, apesar de não ter métrica nem rima. Ele atirou-me para cima do piano cinco coisas e eu peguei nessa. Começa tipo folk e vai para o Nashville, mas eu suavizei um bocadinho com o contrabaixo do Carlos Bica, com arco."

Carlos Bica é um dos convidados que se juntam, neste disco, ao grupo Os demitidos, que acompanha Jorge Palma há vários anos. Ele e outro notável contrabaixista, Carlos Barretto. E também Gabriel Gomes, que tocou acordeão nos Sétima Legião e Madredeus. E há, nos coros, Vicente Palma (filho do cantor, e também músico) e Bruno Vasconcelos ("um miúdo cheio de talento que também toca vibrafone e guitarras acústicas") e, em dueto vocal com Palma, Cristina Branco, numa parceria iniciada com o seu disco "Kronos".

Paixão e hipocrisia

Recuperada para junto dos originais foi "Mais um comboio", escrita há mais de 15 anos. "Foi uma canção que o Flak tinha a música e eu escrevi a letra em casa dele, numa noite. Foi escrita para o disco [colectivo] ‘Espanta Espíritos' [1995], está perfeitamente actual." Flak, que volta a produzir este disco como produzira "Voo Nocturno", de 2007 ("Norte", de 2004, foi produzido por Mário Barreiros), canta com ele nesta faixa.

No final do disco, alinham-se o amor, a morte e um ajuste de contas com o mundo. O amor primeiro, em "Soltos do chão": "Tem a ver com a minha fase de grande paixão com a minha actual mulher [Rita Tomé, com quem casou em 2008]. Chegámos a percorrer andaimes, colados, mas claro que não íamos do Castelo ao Rossio. Mas fazíamos essas maluquices, dançar na rua, beber uma cerveja já ao nascer do sol..."

Depois a morte. "O nome veio de uma aposta que fiz com o Zeca Baleiro, no meio das jantaradas do Rock in Rio, em Lisboa. ‘Agora não, ainda não': cada um de nós tinha que escrever uma canção com este mote. Acho que fui o primeiro. Assumi que estou a conversar com a morte. E digo ‘recuso-me a viajar agora'." A morte pode esperar...

Por fim, o ajuste de contas, em "Com todo o respeito": "Com todo o respeitinho, que vem muito do Estado Novo e de muita subserviência, de muita pancadinha nas costas, muito medo e hipocrisia. Não tem nada a ver com o respeito, é uma ironia. ‘Entre o caos e o desassossego, eixos do mal', tinha isto muito presente, ainda dos tempos do Bush."

De qualquer modo, é a "Página em branco" (já preenchida) que iremos ouvir nas rádios. "Se calhar acabou por se tornar um rock muito ligeiro", diz Palma, mas foi a escolhida para servir de "cartão de visita" ao disco. Por ele, gosta muito de "O mundo e a casa", "A chuva cai", "Soltos do chão". Mas, diz, "temos que deixar passar algum tempo". O tempo para que o disco se ouça e se entranhe, com "todo o respeito" que conquistar.

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