Primavera árabe, íntima e abstracta

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Le Cri entre jogo de luz

Le Cri (2008) e Les Sentinelles (2010), de e com Nacera Belaza e Dalila Belaza

Teatro Maria Matos, Lisboa Sala a um sexto 28 de Outubro, 21h30

Já efeito da crise, ou da muita oferta cultural lisboeta do fim-de-semana (Doc Lisboa, Paulo Ribeiro na CNB, Materiais Diversos, etc.), poucos aproveitaram a oportunidade para assistir a este distinto regresso a Lisboa da coreógrafa franco-argelina Nacera Belaza. Descendente de emigrantes magrebinos em França, os impedimentos de uma comunidade defensivamente redobrada sobre si retardaram uma vocação de infância e um percurso autodidacta na dança, após estudos de literatura e cinema. Todavia, em 1989, Belaza (n. 1969) funda a sua própria companhia; o modesto score de apenas 11 criações é reflexo de uma profunda e solitária pesquisa em torno da conciliação possível entre o seu gosto pelo movimento e a fé muçulmana.

Le Cri (2008, prémio revelação da crítica francesa nesse ano) e Les Sentinelles (2010) formam um interessantíssimo díptico, onde vai mais longe na proposta enunciada em Un an aprés... (2006; exibido no Alkantara 2008): não se trata de construir um espaço de "representação" coreográfica, mas de expor uma exploração ritualística do movimento como meio de instigar outros patamares mentais.

Sob jogos de luz acentuados ou desvanecidos, em Le Cri, duas figuras femininas emergem da penumbra. De pés bem fincados no chão, contínuos movimentos giratórios do tronco e dos braços sugerem os cerimoniais hipnóticos dos dervixes sufis. O movimento acelera, num uníssono feroz, com o volume crescente da banda sonora (o murmúrio do vozear de crianças dará lugar a Callas, Nina Simone e Amy Winehouse, mesclados com sons a evocar o chamamento dos muezzin para a oração). O paroxismo impelirá à volatilização das intérpretes numa outra dimensão, e as suas figuras assomarão, multiplicadas, num vídeo, abruptamente interrompido no final, enquanto a batida sonora prossegue. Les Sentinelles acresce em despojamento: da imobilidade aparente irrompem gestos súbitos e inopinadas strobe lights, e os corpos avançam imperceptivelmente para a boca de cena, sob a toada contínua de sons disco fundidos a cânticos adhan.

Os dois duetos (a própria e a irmã, Dalila), apostos, intensificam a percepção de um contínuo repetitivo, com subtis variações, sobre uma única acção motora; como um mantra a induzir, entre a plateia e o palco, um efeito de transe. A rigorosíssima dramaturgia, organizada por linhas energéticas abstractas de luz, movimento e som, desprendia uma poética atemporal e intensa, simultaneamente minimalista e expansiva, a exortar devaneios de eternidade e de comunhão. No final, a face transfigurada das duas irmãs dava conta, sob a aparente simplicidade, da concentração exigida por um poderoso desempenho.

A qualidade intrínseca das peças adquire um outro alcance quando inscrita na trajectória da criadora. São, de certo modo, réplica do princípio islâmico que atribui à prece conjunta um reforço da devoção. O auto-apagamento dos corpos femininos subtraídos ao ruído da exposição, concentrava o seu papel de mediadores de uma ascese espiritual. Não estamos, porém, perante uma declaração política, mas da enunciação do itinerário íntimo, repleto de paradoxos e bifurcações, de quem lida com a força de referentes culturais distintos dentro de si. A dança de Belaza materializa o pluritópico mundo contemporâneo. E, nesse caminho, atinge, certeira, o ponto onde a religião e a arte comungam da mesma essência.

Luísa Roubaud

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