Djerassi Contrabandista de ideias e provocador

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Cenas da peça a Manuel Roberto

Carl Djerassi é conhecido como "o pai da pílula" contraceptivamas preferia que o apelidassem de "mãe". Está no Porto para a estreia de uma peça de teatro da sua autoria. Falácia aborda, entre outras coisas, as diferenças entre os mundos da ciência e da arte. Vai receber o título de honoris causa.

O mundo apresenta-o como o "pai da pílula". Ele, sinceramente, preferia ser conhecido como a "mãe" do contraceptivo que sintetizou em 1951. Está seguro que é disso que vão falar no seu obituário. Mas preferia que não o fizessem. Gostava de ser lembrado como se vê: um contrabandista de ideias, um provocador e, como lhe dizia a sua ex-mulher, alguém que nunca é aborrecido. Após mais de uma hora de conversa, é assim que vemos também Carl Djerassi, o químico e também o escritor.

Tem cabelos brancos e barba farta a condizer. Um rosto surpreendentemente jovem com um riso a condizer. Mas tem as mãos de pele fina coberta de manchas da velhice. Já tem 87 anos (faz 88 amanhã). Debaixo da mesa, há um pequeno banco que, como se fosse um guarda-chuva, se arruma num saco e que serve para apoiar a frágil perna esquerda. Mais nada remete para a idade cronológica. Confirma-se o aviso que já tinha sido feito ao P2: "Ele tem uma energia impressionante para um homem de 40 anos. Principalmente quando nos lembramos que tem quase 88".

Carl Djerassi colocou apenas uma condição para a entrevista. Que o P2 se informasse previamente a seu respeito. Cumprida essa obrigação, parecia haver pouca margem para surpresas com tudo o que já foi dito e escrito sobre o cientista. Pai da pílula, nascido na Áustria, instalado nos EUA muito jovem para fugir aos nazis, professor na prestigiada Universidade de Stanford, galardoado com vários prémios científicos, autor de poesia, romances e peças de teatro, coleccionador de arte (com um especial fascínio por Paul Klee), defensor dos direitos da mulher, os seus três casamentos, as suas três autobiografias, o suicídio da sua filha e até o seu problema no joelho. Mas, claro, Carl Djerassi mantém a característica detectada por quem o conheceu bem e não consegue ser entediante.

Falámos sobretudo das peças de teatro que hoje são a sua principal actividade. Porque é aí que o encontramos. "Escrevo ficção como forma de autopsicanálise", explica.

Falámos sobre as mulheres, o futuro da concepção, a pílula masculina, a masturbação feminina, as batas sujas dos cientistas, Fernando Pessoa, os seus poemas mais duros, que espera lançar no próximo ano, e a quarta e derradeira autobiografia que está a escrever onde, segundo garante, vai tentar "dizer tudo".

Quase todos os temas que tocamos vão dar a algo que já esteve ou podia estar numa cena do palco ou de um livro. Fernando Pessoa e os seus heterónimos, por exemplo, é o primeiro assunto que traz para a conversa. A sua visão de Pessoa encontra-se na peça chamada Ego e que, curiosamente, ainda não foi apresentada em Portugal. Por cá, tivemos Esse espermatozóide é meu!, Oxigénio e, agora, Falácia.

Em Ego, há três personagens, um deles é um escritor que está obcecado em descobrir o que vão escrever no seu obituário e, para isso, simula a sua morte. O que espera Djerassi encontrar no seu obituário? "Provavelmente, vão escrever sobre o "pai da pílula"", diz, pouco entusiasmado. Se assim for, reclama, ao menos que lhe chamem a "mãe da pílula". "Na invenção de qualquer droga médica, precisamos de três disciplinas. A Química, a Biologia e a Medicina. O químico traz a substância e assim fornece os óvulos assumindo o papel de mãe; o biologista faz as experiências que testam a substância, contribuindo com o que seria o espermatozóide e torna-se o pai; e, por fim, o clínico que o leva até às pessoas é a parteira".

Parto da pílula

A história do "parto da pílula" remonta a 1951. Carl Djerassi está surpreendido - se calhar, até desapontado - pela sobrevivência da "criança" até hoje. "Nunca me passou pela cabeça que milhões de mulheres ainda usassem este contraceptivo, passados tantos anos. Seria de esperar que já se tivesse criado outra coisa qualquer", justifica.

Uma pílula masculina por exemplo? "Do lado da ciência, sabemos exactamente como fazer uma pílula masculina. Mas não há nenhuma empresa farmacêutica no mundo a trabalhar na pílula masculina". Além das questões que isso colocaria sobre os eventuais efeitos nos homens, não há interesse comercial nisso, argumenta. Mas, acredita, os dias da pílula estão perto do fim.

O futuro, diz, passará pela procura da concepção e não da contracepção. Passa por deixar a pílula de lado e recorrer aos bancos onde os óvulos e o esperma são depositados para, um dia, serem concebidos. "A média da natalidade na Europa é de 1,5 crianças [por mulher em idade fértil]. Mesmo nos países católicos, temos taxas muito baixas. Por outro lado, estamos a ficar cada vez mais velhos", justifica. "Se pusermos os óvulos e o esperma num banco quando somos novos, podemos fazer uma esterilização e não precisamos mais de contraceptivos", resume, revelando que nos EUA o método anticoncepcional mais usado pelas pessoas casadas não é a pílula nem o preservativo, mas a esterilização (da mulher, sobretudo).

Há cerca de 15 anos, o químico Djerassi parou de fazer ciência e passou só a escrever. Nada relacionado com os mais de 1200 artigos científicos publicados. No campo da fertilidade, gosta de dizer que abandonou o hardware, a pílula, para entrar no complexo mundo do software onde vivem os complexos elementos socioculturais. Começou por apostar num género que chama "ciência em ficção" (e não ficção científica), mas hoje, nos seus livros, nem tudo gira à volta da ciência, mas tudo continua a girar à volta de si. De quem é, de quem gostaria de ser, de quem tem vergonha de ser, de quem foi...

"Na ficção, posso colocar-me em qualquer personagem. Muitas vezes, sou a mulher". Sente-se confortável nesse papel. Qual é o melhor e mais controverso exemplo? O livro Menachems Seed. Sorri com as críticas de metade de um coro feminino que o censura por ousar enveredar pelo tema da masturbação feminina, sobre o qual nada poderia saber, e com os elogios da outra metade surpreendida pela forma fiel como conseguiu captar esse acto tão íntimo. Uma das suas mais recentes peças - Foreplay, que, em português, podia ser traduzido como "preliminares" - trata de muitos temas e toca no ciúme. Djerassi é ciumento? "Sim. Sou alguém muito sexual. Não vejo razão para me envergonhar disso. Mas sou discreto. Não me gabo disso. Não falo disso com outras pessoas. Mas num romance posso fazê-lo".

O sexo, consumado ou não, está nas suas obras. "Todos os meus livros têm, de alguma forma, um contributo sexual. Mas de uma forma elegante. Não uso a palavra de quatro letras, fuck".

O valor de uma estátua

No Porto, vai assistir hoje à estreia de Falácia, levada a cena pela Seiva Trupe, traduzida por Manuel João Monte, como aconteceu há seis anos com a peça Oxigénio.

Falácia leva o espectador para um museu onde o valor de uma estátua de bronze é debatido entre uma historiadora de arte e um químico. Uma história baseada num caso verídico. "Djerassi é um génio. E o teatro Djerassi é excepcional", revela o encenador Júlio Cardoso. No caso de Falácia, Djerassi parece ter colocado a arte e a ciência em guerra. "Ninguém ganha, há um empate técnico. A verdade e a beleza são fundamentais", defende o encenador. Já o autor nota: "É a mulher que tem a última palavra".

Djerassi veio a Portugal também para falar sobre arte e ciência, a convite da Universidade do Porto, que comemora o seu centenário e o Ano Internacional da Química e que lhe atribui hoje um honoris causa.

A associação entre os dois mundos está na sua vida, mas, para ele, é algo "sem qualquer relação para além do impacto que uma coisa ou outra pode ter num indivíduo". Os milhares de discussões e a "moda" de unir estes dois campos "têm pouca profundidade" para Djerassi. Ainda que seja um exemplo dessa união. "Sou um coleccionador de arte há muitos anos. Fundei uma comunidade de artistas. No entanto, não acredito que haja tanto assim em comum entre arte e ciência. Acho que isso tem sido grosseiramente romantizado e trivializado. A arte tem um enorme impacto em mim, como ser humano. Em mim, que sou cientista, mas não na minha ciência".

Quando já se dedicava à escrita, Djerassi anunciava que os seus livros também desvendavam o que se passa nos laboratórios dos cientistas e que não estava à vista de todos. Ou seja, numa espécie de lavagem das batas sujas dos investigadores, usou a arte para falar da ciência. Neste campo, cabem vários temas como a influência do dinheiro, a perseguição cega de uma hipótese ou mesmo a relação académica entre mentor/discípulo, onde se mostra o imenso trabalho dos auxiliares quando os méritos vão para o líder. "As batas estão tão sujas hoje como estavam há uns anos atrás", insiste.

Actualmente, o seu trabalho não tem essa marca científica tão evidente. "Sou um poligâmico intelectual. E muitas vezes ainda sou o químico que está a tentar intrometer-se no mundo artístico e vice-versa. No fundo, sento-me entre essas duas cadeiras. Antes, perguntava-me o que gostava que escrevessem no meu obituário - e sei que não o vão fazer -, era talvez algo que a minha ex-mulher dizia e que era "ele nunca me aborrece"". E, pensando um pouco melhor no assunto, acrescenta ainda: "Gosto de me ver como um contrabandista e provocador. Contrabandista porque gosto de levar informação para a cabeça das pessoas sem que elas se apercebam. E gosto de fazer perguntas provocadoras".

Que perguntas? "As duas disciplinas mais dominadas pelo homem são a ciência e a religião. Nesses casos, todas as regras, todo o jogo, começou com homens. Isso está a mudar, mais rapidamente na ciência do que na religião. As mulheres estão a assumir poder na ciência. Como se vão safar estas mulheres? O que vai mudar com isto? Como é que elas vão conciliar a maternidade com esse lado profissional?"

Djerassi assume-se como um workaholic. Escreve o dia inteiro, sete dias por semana, e sai à noite para o teatro ou jantar. "Não é bom", constata. "Estou sempre insatisfeito. Sou suficientemente realista para saber que me resta um número limitado de anos e ainda há muita coisa que quero fazer".

Em 2013, Carl Djerassi fará 90 anos. Para assinalar a data, será publicada a sua quarta e última autobiografia. Uma versão muito diferente daquilo que foi escrito há 20 anos. Uma das partes que serão radicalmente transformadas, garante, é o capítulo dedicado à pílula.

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