A quimera do euro

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Nunca nenhuma aliança monetária sobreviveu à estagnação económica dos seus membros

Este foi o título que escolhi para um artigo que escrevi há cerca de dez anos e que foi publicado nas páginas do Jornal de Letras, Artes e Ideias em 13 de Junho de 2001. O título brinca com o do belíssimo filme de Chaplin The Gold Rush (de 1925) que para o público português foi apelidado de A Quimera do Ouro. A moral da história é a de que a maior riqueza não está no que possuímos mas no que comunicamos (paixões, razões, percepções...). Pensei na altura que o título se adequava à "corrida" que foi a instituição do euro. Se tiver gosto e acesso a ideias do passado recomendo uma releitura. Poderá inclusivamente ajuizar sobre o meu estado de lucidez então (e agora).

Relembrava em primeiro lugar no artigo que o dinheiro era um instrumento do poder, quer dizer, é o poder que cria a moeda e não a moeda que cria o poder. Na realidade, muitas sociedades e economias existiram antes de o dinheiro ter surgido há dois mil e setecentos anos sobre a face da Terra. Mal acabada de nascer, a moeda tornou-se logo num modo muito eficiente de se avaliar um dado produto para troca comercial, sem ter de se recorrer aos complicados juízos que a troca directa requer. A emissão de moeda foi ciosamente resguardada pelo poder, pelo benefício que daí lhe advinha (um valor superior ao do custo do material) bem como pela necessidade de criar confiança no seu uso.

Em segundo lugar, recordava que nos últimos trinta anos o sector da economia mundial que mais partido tirou da enorme transformação que as novas tecnologias da informação representaram foi o financeiro. E isto porque o dinheiro, a moeda, as finanças, têm uma natureza imaterial, convencional, isto é, a sua operação repousa sobre princípios convencionados socialmente, consentidos e aceites. A base material da moeda é um acessório para a tornar mais credível: a moeda é um artefacto comunicacional. E, por isso, a finança pôde beneficiar em pleno das novas redes electrónicas da informação: exactamente pelas suas características informacionais, intangíveis. A informação financeira circula pelo mundo à velocidade da luz. A rentabilidade do capital financeiro passou a ser o principal critério da actividade económica. A importância do sector cresceu de tal modo que provocou a separação (auto-separação, melhor dizendo) da finança do resto da economia. A opinião dos financeiros começou a dominar a tomada de decisões políticas.

Dez anos depois, o que há a dizer em relação à quimera do euro?

Primeiro, que os europeus não aprenderam nada com o passado, nem quiseram apreender durante estes dez anos trágicos para o projecto de construção europeia. Nunca nenhuma aliança monetária sobreviveu à estagnação económica dos seus membros. Se não há um poder forte que expanda a capacidade da sua organização económica é impossível nesse quadro acumular as riquezas adquiridas nas trocas comerciais com outros países distantes. O espaço de predação encolhe perigosamente para muito perto das próprias fronteiras e os processos económicos de diferenciação fazem-se sentir sobretudo internamente, intensificando as divergências. Que iniciativas tomou a Europa nesta década? Que objectivos para o mundo definiu? Bem sabemos que a navegar à vista da costa não se chega ao Oriente.

Em segundo lugar, que nunca nenhuma moeda foi criada sem um tesouro, sem uma reserva política que a defenda e a torne aceitável. O Banco Central Europeu não é a Reserva Federal americana. O BCE apenas se preocupa com o nível de inflação na zona euro, ao passo que a Fed americana tem de ter em conta tanto a inflação como o desemprego. Não há um Ministério das Finanças (um órgão de controlo político) europeu. Nem a finança internacional deixa! Tendo levado os europeus à certa com a criação à pressa do euro (uma necessidade alemã para "branquear" o marco ocidental nos territórios da antiga RDA - que a França "engoliu"), a alta finança vai continuar a dividir os europeus até ao limite, jogando nas diferenças entre culturas para tornar a predação dos recursos de cada nação ainda mais completa. Talvez o euro sobreviva como a moeda da Alemanha e dos seus satélites. E a sede do BCE acabe em Berlim...

Finalmente, que a nossa adesão à Europa representou o fim do isolamento pacóvio, do condicionamento sabujo, da ignorância arrogante, da superstição autoritária. Para quê, agora, correr somente para reduzir as nossas aspirações? Para ter medo do dia de amanhã? Para não querer o futuro?

Que haja a coragem de dizer NÃO! Que se corra, sim, mas para um mundo novo onde se veja imperar a democracia, a justiça social e a igualdade. É que a riqueza tem apenas que ver com a apropriação; o crescimento económico implica igualdade. O futuro dos europeus joga-se no campo da igualdade: porque a liberdade é ingénua e, sozinha, deixa-se capturar com facilidade pelos vendedores de quimeras. Esta é a lição que se tira das alegrias e dos desmandos do século XX. Professor catedrático

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