Torne-se perito

"Não há dinheiro nenhum que pague ter um filho perfeito"

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Maria dos Anjos em casa com o filho Pedro, hoje com 16 anos ADRIANO MIRANDA

Pedro é o centro da vida de Maria dos Anjos há 16 anos, quando um erro no parto o deixou 100% incapacitado. E isso nenhuma indemnização mudará

A porta abre-se com um desabafo: "Eu não contava com nada disto". "Isto" é a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que condenou na semana passada o Hospital de São Marcos a pagar uma indemnização recorde à família de uma criança por causa de actos de negligência durante o parto. Essa decisão fez com que a mãe, Maria dos Anjos Afonso, abrisse a porta, uma e outra vez, aos jornalistas durante o dia de ontem. É uma interrupção na rotina que se instalou há 16 anos devido à incapacidade total do filho Pedro. Desde então, ele é o centro da vida naquela casa.

Maria dos Anjos era costureira quando, em 1994, deu entrada no Hospital de S. Marcos para o parto do seu segundo filho. O que aconteceu obrigou-a a largar o emprego, porque cuidar de uma criança com uma incapacidade de 100% é trabalho de sobra para as 24 horas do dia. "Há noites em que nem sei se durmo. Nem a minha cama desfaço", conta. É sempre assim, quando Pedro tem uma noite mais agitada. "Vivo em função do Pedro": quando consegue dormir, a primeira coisa que faz ao acordar é tratar do filho. A vida passa-a entre "fazer a vida de casa e cuidar dele". "Acabaram-se as saídas, acabou-se tudo", comenta a mãe. De casa sai apenas para ir às compras, deixando o filho a dormir ou pedindo a algum familiar para cuidar dele. "Nunca mais de uma hora."

Uma doença tirou também o trabalho ao marido, que há dois anos deixou de poder continuar a trazer da construção civil o sustento da família. O dinheiro do orçamento familiar é escasso e vai valendo a ajuda da família para fazer face às despesas, porque Pedro precisa de medicamentos, fraldas e vários cuidados diários.

O filho padece de uma incapacidade permanente total: não reage a estímulos visuais ou sonoros e precisa de acompanhamento a todas as horas do dia. Pedro tem hoje 16 anos, mas o caso só chegou à Justiça quase dez anos depois do seu nascimento. "Nós não sabíamos os direitos que tínhamos. Ainda por cima tivemos sempre poucas posses e não havia como pagar a um advogado", explica Maria dos Anjos Afonso. A 19 de Dezembro de 1994, depois da cesariana a que foi sujeita, ninguém lhe disse o que tinha acontecido com o filho. "Falaram-me em gemidos e nada mais. Só no outro hospital é que me começaram a explicar." O outro hospital é o de Vila Nova de Gaia, para onde foi transferida a criança, duas horas após o seu nascimento. O diagnóstico era então mais claro: "Asfixia perinatal, sofrimento fetal, convulsões e apneias".

Hospital recorre

Só meses depois, quando passou a ser acompanhada na consulta de neuropediatria, começou a entender melhor a situação. Os exames que o rapaz fez mostraram "alterações compatíveis com paralisia cerebral", lê-se na sentença, e apontavam para erro humano na causa do problema. Foi então que ganhou força a hipótese de recorrer a um advogado, que deu andamento ao processo judicial. Seguiram-se várias perícias de especialistas, muitas sessões de julgamento e um ano de espera pela decisão proferida no passado dia 12 de Outubro pelo Tribunal de Braga.

A sentença condena o Hospital de S. Marcos a pagar à família 450 mil euros de indemnização, para que estes possam proporcionar ao filho "uma qualidade de vida diferente da que possui", conforme se lê no acórdão. A verba será acrescida de juros, que neste momento vão já nos 118 mil euros. O tribunal considerou que o serviço prestado pelo hospital "não é compatível com uma regular e sã prática de nascimentos" e sublinha "a existência de culpa do serviço".

A decisão vai, porém, merecer recursos do hospital. A advogada da unidade de saúde - que actualmente se encontra em processo de liquidação (ver caixa) - afirma que "não existe qualquer responsabilidade extracontratual" que justifique a decisão da primeira instância. Alexandra Brandão considera também que o processo "foi mal julgado", sustentando que "o procedimento do hospital e dos seus profissionais respeitou todas as regras da leges artis", isto é, seguindo os melhores procedimentos oferecidos pela ciência médica

Em Pico S. Cristovão, Vila Verde, a notícia da decisão do tribunal foi recebida com surpresa. "Não sei se estou com esperança. Nem sei se devo estar", afirma Maria dos Anjos Afonso."Não contava", repete. A indemnização "seria uma grande ajuda" para cuidar do Pedro, "mas não há dinheiro nenhum que pague ter um filho perfeito".

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