Fogo que arde sem se ver

“Incendies” vem aureolado com a fama de ser um dos mais bem sucedidos filmes canadianos de tempos recentes. Internamente, ganhou vários “genies” (os prémios canadianos de cinema); externamente, foi nomeado para o oscar de melhor filme em língua estrangeira (é oriundo do Quebec, portanto falado em “língua estrangeira”), que não ganhou.


Ninguém por estas bandas pode conhecer muito do cinema canadiano corrente, que fora os autores consagrados (por todos, Cronenberg) pouco circula pelos ecrãs portugueses. Mas quem costuma ler a “CinemaScope”, uma revista canadiana de cinema que é das melhores da actualidade, sabe que eles não são muito entusiastas deste dito “cinema canadiano corrente”. Tomado como exemplo, “Incendies” serve para perceber um pouco melhor essa embirração.

É uma história de “inquérito”: à morte da mãe, imigrante árabe cristã (depois tudo será relativamente insituado, mas andar-se-á à volta da história recente do Líbano e da Palestina), dois irmãos ficam a saber, por testamento, as suas últimas disposições. Devem ir procurar o pai, que supunham morto, e encontrar um terceiro irmão, que não sabiam que existia. Partem, primeiro a irmã, depois o irmão, para o Médio Oriente, seguindo a pista da história pessoal da mãe. Os tempos sobrepõem-se, e as cenas da investigação alternam com “flash backs” que reconstituem as desventuras da progenitora (Lubna Azabal, actriz bem conhecida).

Como dispositivo narrativo, importado de uma peça teatral de Wajdi Mouwad, autor canadiano de origem árabe, que o argumento adapta, não é isento de méritos, focando os eternos conflitos do Médio Oriente debaixo de uma luz (ou de um negrume) fratricida - árabes cristãos contra árabes muçulmanos, portanto será sobretudo a questão libanesa a estar em causa - que não é muito comum.

O problema é o que Villeneuve faz com isso. Já vimos (na “Cinema Scope”, justamente...) “Incendies” ser comparado a Iñarritu. Não seríamos tão ofensivos, mas a lógica é semelhante em vários aspectos, nomeadamente na propensão de Villeneuve para transformar a miséria e o sofrimento num teledisco. Logo a abrir, por exemplo. Um (belo) plano de natureza filmado a partir de uma janela, e um movimento de câmara que se desvia para o interior, onde a um grupo de miúdos árabes está a ser rapada a cabeça. Na banda sonora, uma canção dos Radiohead (que voltará mais tarde, para outro momento “clipesco”), a “colar” os vários planos com os miúdos a serem rapados, para terminar com um grande plano de um deles, que fita directamente a câmara.

O desconforto suscitado por esta sucessão de “efeitos” fica e nunca mais se desvanece, mesmo quando o filme se revela austero (uma austeridade académica, à base de campos/contracampos, pouco interessante, mas pelo menos é um despojamento), para voltar à superfície em todos os momentos em que se torna histérico (quase todas as sequências de “reconstituição”). Como se Villeneuve só soubesse trabalhar em dois registos opostos, e a um cinema do mais absoluto tédio não tivesse para contrapor se não um cinema da mais absoluta (e razoavelmente oportunista) histeria.

Apesar do título, portanto, há aqui bem pouca coisa capaz de pegar fogo...

Sugerir correcção
Comentar