Torne-se perito

Cortes nos salários e subida dos impostos para evitar o "colapso do Estado social"

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Passos disse que estava em risco "o colapso do Estado social" PEDRO CUNHA

Passos Coelho justificou medidas "custosas" com desvio orçamental de três mil milhões de euros. Mais horas de trabalho, menos feriados, taxas do IVA revistas e menos reembolsos no IRS

Poucos minutos antes de falar aos portugueses, Passos Coelho apareceu por instantes na sala onde ia falar, tal como José Sócrates fizera no dia em que anunciou a demissão do Governo. "Só para ver como estava", atirou aos jornalistas que o receberam surpreendidos. Pouco depois surgiu, sério, de óculos e discurso na mão, para anunciar de que forma tencionava evitar o "colapso do Estado social" e contrariar a "espiral económica descendente" no país.

O primeiro Orçamento de Passos Coelho avança com o corte nos subsídios de férias e Natal aos funcionários públicos e a todos os pensionistas com vencimento superior a mil euros, "durante a vigência do Programa de Assistência". Era a "bomba" de que se falava horas antes nos corredores do Parlamento.

"Temos de salvaguardar o emprego" justificou antes de precisar que aos que ganhavam entre o salário mínimo e os mil euros seria retirado apenas "em média, um só destes benefícios". Caso não o fizesse, acrescentou, "o Estado seria forçado, em desespero, a proceder a medidas intoleráveis como despedimentos indiscriminados de funcionários públicos ou medidas comparáveis".

Afinal, era "preciso evitar o colapso da estrutura básica do estado social" colocado em risco pelos "desvios na execução orçamental de 2011" que estimou serem "superiores a três mil milhões de euros". Um ponto a que os socialistas não deixariam de reagir depois da comunicação.

Mas as medidas orçamentais não se limitariam aos funcionários públicos. Para travar a "espiral económica descendente" que arriscava a "contracção profunda e prolongada do nosso produto e tecido empresarial", Passos anunciou também que o Governo decidira "permitir a expansão do horário de trabalho no sector privado em meia hora por dia durante os próximos dois anos e ajustar o calendário dos feriados".

Uma medida que serviu também para fechar a porta à descida da Taxa Social Única. Apesar de estar prevista no memorando, o primeiro-ministro justificou o seu abandono com o facto de exigir "condições orçamentais que neste momento o país não reúne"

E se na TSU Passos Coelho fugiu à troika, no IVA foi "mais além", como prometera. Precisava de "mais receitas do que o que estava desenhado no memorando" e por isso anunciou que iria reduzir, "consideravelmente, o âmbito de bens da taxa intermédia", deixando apenas de fora "um conjunto limitado de bens essenciais para sectores de produção nacional, como a vinicultura, agricultura e pescas". Prometeu manter "os bens essenciais na taxa reduzida" e não mexer na taxa normal do IVA. Teve em conta, precisou o chefe de Governo, "a preocupação de proteger os mais vulneráveis".

Quanto aos mais abastados, garantiu, era diferente. Anunciou a eliminação das "deduções fiscais em sede de IRS para os dois escalões mais elevados" reduzindo os limites para os restantes. Mas prometeu majorações "por cada filho do agregado familiar". Em nome do "rigor no respeito pela lei e pelo Estado de direito" assegurou que seria "implacável com a evasão fiscal". "E agravaremos a tributação das transferências para off-shores e paraísos fiscais", rematou.

"Nunca nos deveríamos ter permitido chegar a este ponto. Tivemos tantas oportunidades para inverter o rumo e limitámo-nos a encolher os ombros", desabafava Passos Coelho depois de enumerar as "custosas" medidas do Orçamento.

Uma crítica implícita aos socialistas depois de os ter acusado de terem "esgotado" na sua metade anual de execução do actual Orçamento, "70% do défice permitido". E, contudo, Passos estendeu a mão ao sucessor de José Sócrates no PS. Quando falava do "contributo de todos" focou-se no "maior partido da oposição". Numa das escassas vezes em que se desviou do discurso escrito, foi para "anotar as declarações públicas do líder do PS" sobre a votação do OE. Seguro disse terça-feira que as possibilidades de os socialistas chumbarem o OE eram de "0,001 %".

Mas, a algumas centenas de metros de distância, no Parlamento, o socialista Carlos Zorrinho manifestou "muitas dúvidas sobre a natureza do desvio" num orçamento que, afinal, fora socialista até meados da sua execução. Depois, pura e simplesmente, demarcou-se das medidas anunciadas: "É um Orçamento da responsabilidade de maioria. O PS não se envolveu."

Os restantes partidos da esquerda foram mais duros. O comunista Bernardino Soares chamou ao pacote "um roubo aos trabalhadores", que, ainda por cima, "não vai tirar o país do buraco". O deputado do BE Pedro Filipe Soares viu na comunicação a declaração do "estado de guerra aos trabalhadores, sem nenhuma medida para o crescimento económico".

A direita tentava o discurso da inevitabilidade. O social-democrata Miguel Frasquilho justificava a austeridade com a "trajectória insustentável" que tinha sido seguida pelo anterior Governo. O centrista Nuno Magalhães assumiu que nada mais se podia fazer tendo em conta "situação em que o país se encontra, em que dependemos do estrangeiro para pagar salários a polícias, médicos".

Minutos antes da comunicação, o ministro dos Assuntos Parlamentares subia a custo as escadas de acesso à residência oficial. Nem sequer foi capaz da sua habitual resposta pronta quando alguém lhe perguntou se devia ouvir o primeiro-ministro de pé ou sentado. Miguel Relvas apenas suspirou e trepou, devagar, as escadas com um ar abatido. A partir de agora vai ser a doer.

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