Bichos numa terra em transe

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A ligação à terra é um elemento incontornável do universo transmontano - a tal ponto, diz a coreógrafa, que os transmon-tanos "quase se tornaram bichos" PAULO PIMENTA

Depois de "Mão na Boca", o seu encontro com Paula Rego, a coreógrafa Joana Providência passou agora para o outro lado da pintura de Graça Morais. "Terra Quente Terra Fria", que ontem chegou ao Porto vinda de Bragança, tem Trás-os-Montes no corpo. Inês Nadais

O ranger da madeira nas casas, as segadas comunitárias, as botas do presidente da junta, a fazenda grossa das saias, a ondulação das searas ao vento, os "chs" e os "boh!" que transformam aquele português numa espécie de estrangeiro, a maneira como ali se vai andando com a cabeça entre as orelhas, uma batata para três, o peso da terra em cima dos ombros: há marcas disso tudo em cada gesto dos cinco intérpretes de "Terra Quente Terra Fria", a peça que a coreógrafa Joana Providência criou a partir do imaginário transmontano (e, mais particularmente, da pintura de Graça Morais) e que ontem chegou ao Teatro do Bolhão, no Porto, vinda de Bragança. Ao longo de 70 minutos, é como se eles tivessem Trás-os-Montes no corpo - o vento de Trás-os-Montes, a chuva de Trás-os-Montes, o isolamento de Trás-os-Montes, a pobreza de Trás-os-Montes, a dureza de Trás-os-Montes. Como se fossem, diz Joana Providência, "bichos" daquela terra em transe onde os três meses que não são de Inverno são de inferno.

Por momentos, eles foram de facto de lá: "Terra Quente Terra Fria", que resulta de um convite feito pela directora do Teatro Municipal de Bragança, Helena Genésio, para uma aproximação à obra de Graça Morais e àquilo que nela é de Trás-os-Montes, começou a construir-se em Carrazeda de Ansiães, onde os actores e bailarinos de Joana Providência tiveram um primeiro embate com a paisagem e com as mulheres que atravessam os trabalhos da pintora, e já do outro lado desse espelho, com as histórias do tempo em que só havia um par de botas em Rio de Onor (e eram do presidente da junta). A equipa voltou a Trás-os-Montes meses depois para participar na segada comunitária que a aldeia de Palácios promove anualmente, e, já em Setembro, para acabar de levantar o espectáculo, que teve a sua estreia em Bragança e agora fica no Porto até dia 23. Tinha de ser o espírito do lugar a indicar o caminho de "Terra Quente Terra Fria", argumenta a coreógrafa: "Quase todo o material da peça resulta das improvisações que fizemos depois de termos lá estado e de termos registado a paisagem com o nosso próprio corpo. O movimento é directamente influenciado por essa impressão do lugar, vem de uma memória pessoal dos intérpretes, do facto de terem, por exemplo, passado por todo o processo do centeio, ou subido às fragas e apanhado com uma trovoada mesmo no cimo de um monte. O meu trabalho parte sempre dos materiais propostos pelos intérpretes, e para isso acho fundamental que eles experimentem as coisas: torna a peça muito mais consistente".

Outra era

Ir ter com Trás-os-Montes foi, acredita Joana Providência, a maneira certa de ir ter com Graça Morais. Depois da visita guiada, pela própria artista, ao Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, parceiro do projecto, a equipa sentiu "a necessidade de materializar aquele universo em contacto com a paisagem". As residências serviram não só para perceber o modo como uma paisagem impositiva ("léguas e léguas de chão raivoso e contorcido (...), tudo parado e mudo", como escreve Miguel Torga em "Um Reino Maravilhoso") configura o corpo, mas também "para que as pessoas do lugar contassem as suas histórias": "Queríamos saber da vida destas pessoas, e impressionou-nos muito perceber que é uma vida duríssima de trabalho na terra, desde muito cedo, num contexto de pobreza imensa. Era mesmo trabalhar para ter um caldo para comer. Partimos dessas experiências de vida que nos foram contadas por pessoas de outra era - fomos à procura das mulheres de Graça Morais, que hoje em dia têm 80, 90 anos", conta a coreógrafa.

Mulheres de saias compridas e cabeça baixa, quase rente ao chão, que cruzam a paisagem em rebanho, ou farejando quem vem lá como cães raivososo. Mulheres "que quase se tornaram bichos, tão forte é a sua ligação à terra", e que também aparecem transfiguradas nos quadros de Graça Morais: "Ela tem muito estas mulheres-gafanhoto, da série "Metamorfose". Quisemos que isso passasse para a peça, também porque o gafanhoto é um importante símbolo de fertilidade".

Outra história que passou para a peça foi a do primeiro par de botas alguma vez visto em Rio de Onor. "Diz-se que quando o [Michel] Giacometti lá andou a fazer as suas recolhas só havia um par de botas nas redondezas, que eram as que o presidente da junta usava quando tinha de ir à aldeia. Quando estreámos o "Terra Quente Terra Fria" em Bragança, uma senhora que estava sentada atrás de mim disse logo: "São as botas do presidente da junta". Foi fantástico sentir que as pessoas se identificaram. Receava que a nossa aproximação não tivesse sido suficientemente forte", confessa Joana Providência. De resto, a experiência anterior de aproximação à obra de Paula Rego, de que resultou o espectáculo "Mão na Boca", encomenda da Fundação de Serralves no ano da grande retrospectiva da artista no Porto, em 2004, não foi propriamente uma bengala: "Foi um processo completamente diferente, porque a obra da Paula Rego também é completamente diferente. Cada obra traz uma direcção, leva-nos por um caminho. A Paula Rego levou-me para questões políticas, para temáticas literárias. A Graça Morais trouxe uma outra coisa, sem dúvida".

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