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Cavaco acusa "directório" sem mandato

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O Presidente foi claro nas críticas aos encontros entre Merkel e Sarkozy ENRIC VIVES-RUBIO

Naquele que foi até agora o discurso mais completo e crítico sobre a forma como a União está a lidar com a crise do euro, o Presidente diz que a culpa não é só dos países em dificuldades

Cavaco Silva manifestou ontem, em Florença, a sua preocupação com a emergência na União Europeia de "um directório, não reconhecido nem mandatado, que se sobrepõe às instituições comunitárias e limita a sua margem de manobra" e considerou que este é um caminho "errado" e "perigoso" para enfrentar a crise europeia.

O Presidente da República já tinha dado alguns sinais anteriores da sua visão muito crítica da forma como está a ser gerida a crise do euro. Nunca fora, no entanto, tão longe como o fez ontem, numa conferência proferida no Instituto Europeu de Florença no âmbito de um ciclo dedicado a debater a Europa, de que foi o segundo orador convidado.

O Presidente português começou por rejeitar a tese que atribuiu apenas aos países da periferia em grandes dificuldades financeiras as culpas desta crise, lembrando que não foram eles os primeiros a violar as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). "É bom lembrar a quebra de credibilidade do PEC, provocada pelo próprio Conselho, ao tudo fazer para que passasse incólume a violação dos limites do défice orçamental por parte da Alemanha e da França, nos primeiros anos deste século. (...) Não se atribua, portanto, a culpa da crise da zona euro ao Tratado e apenas aos estados membros financeiramente indisciplinados", disse Cavaco Silva.

Imediatamente antes, tinha lembrado que também não são as deficiências atribuídas ao Tratado de Maastricht (que ele próprio negociou e assinou enquanto primeiro-ministro português em 1991 e 1992 em circunstâncias muito diferentes das actuais) as únicas responsáveis pela situação que hoje se vive na zona euro, para sublinhar a responsabilidade compartilhada entre os estados-membros e as instituições europeias, prontos a "renunciar ao rigor dos critérios [de convergência definidos em Maastricht], em favor de considerações e circunstâncias políticas impostas por interesses nacionais."

A segunda grande crítica de Cavaco dirige-se à gestão da própria crise e à forma como a União tardou em reconhecer "a sua natureza e a sua escala" e a dar-lhe a resposta adequada. "Enredada numa retórica política de recriminações mútuas, evitando reconhecer a responsabilidade partilhada, ignorando a evidência dos riscos de contágio, hesitando na solidariedade, oscilando nos instrumentos a usar, promovendo a deriva intergovernamental, a União deu guarida a uma crescente especulação sobre a zona euro, alimentando as incertezas sobre o próprio futuro da moeda única", disse o Presidente.

Cavaco Silva dedicou a segunda parte da sua intervenção àquilo que, em seu entender, é preciso fazer urgentemente. Considerou que a UE tem recursos, instrumentos e meios institucionais para o fazer e a única coisa que lhe falta é a "vontade política." As suas propostas não divergem, no essencial, daquelas que estão hoje sobre a mesa, à espera de uma decisão alemã. O reforço do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), cuja "dimensão tem de estar à altura dos riscos especulativos". Uma intervenção mais forte e mais "previsível" do BCE no mercado da dívida soberana dos países solventes com problemas de liquidez, que vá até à "disponibilidade para uma intervenção ilimitada no mercado secundário".

Neste papel central que atribui o BCE, e que não é consensual, Cavaco Silva invoca em seu abono Paule de Grauwe, o professor de Lovaina que foi um dos teorizadores da moeda única e cuja opinião o Presidente sempre valorizou. A recapitalização e financiamento dos bancos europeus, que deve ser feita de forma concertada, designadamente "através do BCE e do FEEF".

Sobre os eurobonds (títulos de dívida pública emitidos pela União), o Presidente começou por afirmar que poderiam constituir uma "poderosa resposta" a esta crise e que, portanto, devem manter-se na agenda europeia. Mas admitiu que a sua adopção exige uma maior transferência de soberania dos estados para a União e, mesmo, alterações da arquitectura institucional da União Económica e Monetária (UEM) e, a prazo, a revisão dos próprios tratados.

Como é que isto tudo se faz? Através do "aprofundamento da governação económica europeia", que não pode ser feito através de "novas estruturas concorrendo com as actuais". É aqui que Cavaco tece as mais duras críticas à deriva intergovernamental alimentada pelo "directório" sem mandato (numa referência clara à chanceler alemã, Angela Merkel, e ao Presidente francês, Nicolas Sarkozy), adverte para os seus riscos e insiste em que o reforço da governação económica e financeira da zona euro tem de passar pelo reforço do método comunitário e ter a Comissão como a "charneira institucional" para realizar esta missão.

Finalmente, o Presidente lembra a outra dimensão do combate à crise financeira, que é uma agenda europeia voltada para a promoção do crescimento económico e a criação de emprego. Sem isso, diz o Presidente, "o saneamento das finanças públicas terá resultados socialmente insuportáveis." Recomenda políticas "voluntaristas" promovidas pela União e "políticas expansionistas por parte dos países superavitários". Como a Alemanha.

Cavaco Silva dedica apenas dois breves parágrafos da sua intervenção à situação portuguesa. Para dizer, basicamente, que o país honrará os seus compromissos, mas que para isso também é necessário que a União tome, também ela, as "decisões sistémicas" necessárias para estabilizar o euro, fortalecer os sistemas financeiros e promover o crescimento.

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