Na Ágora de Bruxelas, a descascar batatas e a regar o jardim

Interior da Ágora de Bruxelas onde se concentram muitos dos indignados que chegaram de toda a Europa
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Bruxelas é palco de uma concentração internacional de “indignados”. Chegaram de vários pontos da Europa. Falam várias línguas. O objectivo é comum: revoltarem-se contra o actual sistema político, o capitalismo, a desigualdade, a falta de liberdade e a falta de esperança.

Damien está sentado a descascar batatas. No centro da mesa está um enorme recipiente de metal. É lá que vão aterrando as batatas já descascadas. A pilha vai aumentando à medida que mais pessoas se juntam à tarefa. Damien vai perdendo ritmo. A conversa com o PÚBLICO atrasa-lhe os movimentos.

Estamos no refeitório de um edifício universitário que alberga os indignados que desde o fim-de-semana passado começaram a chegar à capital belga. As línguas mais ouvidas são francês, espanhol e inglês. Damien vai alternando os idiomas. No espaço de dez minutos expressa-se perfeitamente em francês, inglês e neerlandês. Explica que cresceu em França mas estudou no Reino Unido e agora vive na Holanda. É um cidadão europeu. Apesar de só ter 23 anos, vai buscar à História do século XX a explicação para o que está a passar actualmente no mundo: “Isto foi exactamente o que se passou antes das duas guerras mundiais. Os conflitos começaram em consequência de enormes crises financeiras”.

Damien, que estudou lei pública internacional, une os pontos históricos. “Podemos ver já alguns sinais de fascismo e assistir a uma retórica nacionalista dos países do norte contra os países do sul da Europa. Anota as minhas palavras: no espaço de dez anos a Europa estará em guerra”.

Como é que chegámos aqui? Damien fornece várias explicações. A primeira tem a ver com a falência do actual sistema democrático. “Já não há nenhum partido político que represente verdadeiramente o povo. Quem ganha 10 mil euros por mês já não representa ninguém. Esta crise só veio provar aquilo que já sabíamos: o quão desadequados se tornaram os partidos políticos”.

Outra explicação pode ir buscar-se à geração dos baby boomers, a que nasceu depois da II Guerra Mundial. “Essa geração é politicamente amorfa e está anestesiada com a sua média de quatro horas de televisão por dia. Estão fechados num ciclo de produção e consumo”.

Opinião semelhante tem um outro indignado belga, de 30 anos, que prefere não dar o nome. “A minha mãe diz-me que os gregos estão assim porque não trabalham. Eu fico muito irritado porque ela está só a repetir aquilo que ouve nos media. Os nossos pais ainda têm segurança, ainda vão ter reformas, passaram a vida toda a acumular riqueza... Nós não teremos nada disso. O que é que temos a perder? Nada!”

Ágora Bruxelas

À entrada do edifício universitário cedido pelas autoridades locais pode ler-se a mensagem “Bem-vindos” escrita em oito línguas. Por cima da porta está o mantra: “Pessoas antes do lucro”. Os indignados mudaram-se para aqui depois de a polícia ter detido alguns manifestantes no sábado e ter deixado claro que ninguém podia acampar no adjacente Parque Elisabeth, o centro de operações ao ar livre, no noroeste de Bruxelas

No edifício da Hogeschool-Universiteit Brussel estão instaladas entre 300 e 800 pessoas. Ninguém consegue dizer exactamente quantos são. E também ninguém quer adivinhar quantas mais pessoas chegarão nos próximos dias, antes da manifestação que está agendada para o próximo dia 15 de Outubro, sábado.

Vai ser um protesto global. A convocatória nasceu em Espanha, ainda antes do Verão, tendo logo nessa altura sido escolhido o dia 15 de Outubro como a jornada de revolução (http://15october.net/). Nos EUA, o movimento Occupy Wall Street é uma espécie de “indignação” americana e tem ganho força nas últimas semanas.

Em toda a Europa, os protestos marcados para Bruxelas são especiais porque é na capital belga que estão sedeadas as instituições europeias. A escassos quilómetros do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia e do Conselho levantou-se a Ágora Bruxelas. Nas paredes podem ler-se mensagens como “Tudo muda quando olhas com o coração” e “Sê a mudança que queres ver no mundo”.

No átrio do edifício que acolhe os indignados há informação espalhada pelas paredes. Aqui não há líderes. Estamos no mundo da horizontalidade. Cada pessoa propõe, pede a palavra, fala, vota, discorda, concorda e fabrica a sua própria opinião. Os indignados são contra a “ditadura do consenso absoluto”. No auditório onde todos os dias se celebra uma assembleia-geral está afixado na parede um grande papel onde se explica qual a sinalética a usar durante os debates. Se não se concorda com o que alguém está a dizer, basta cruzar os braços em X. Em caso de anuência basta levantar os braços e agitar as mãos.

Paris-Bruxelas a pé

É no átrio que encontramos Ben, um jovem inglês que vive com a mãe numa comunidade espanhola e que fez o caminho Paris-Bruxelas a pé. Demorou 15 dias. Dormiu ao ar livre e em pavilhões desportivos. O acolhimento que recebia variava em função da cor da autarquia. “Uma vez ficámos numa localidade em que a presidente da câmara era socialista e até pizzas nos deu”, recorda. Ben está aqui porque acredita na igualdade e desaprova o actual sistema político. “Quando o sistema de horizontalidade for contagioso o suficiente para se espalhar [pela sociedade], poderemos finalmente resolver os problemas criados pelo sistema”, argumenta.

Durante o dia os indignados percorrem o edifício atarefados. Afixam escalas, participam em grupos de trabalho, participam em ateliês (de desobediência cívica e canto xamânico, por exemplo) e cumprem as inevitáveis tarefas em prol da comunidade, como descascar batatas para as refeições e limpar as casas de banho.

São um corpo atarefado e organizado, pacífico e comunicativo. Damien prefere chamar-lhe uma quimera. “Temos vários nomes. Indignados, movimento 15M, movimento Occupy... Não importa como nos chamam. Somos uma quimera, temos uma aparência híbrida, mas queremos o mesmo: mudar o sistema”.

Atarefado a regar o jardim encontramos Paulo, um português de 29 anos que emigrou para a Bélgica quando tinha apenas cinco anos. Licenciou-se em arquitectura está num momento de viragem na sua carreira: quer construir casas através de um método de carpintaria tradicional. Paulo resolveu juntar-se à Ágora Bruxelas porque quer ajudar a construir “um novo modelo de decisão política” mas também porque se sente próximo das causas ecologistas. Os indignados contestam a energia nuclear e durante estes dias tem debatido os seus perigos, nomeadamente a situação em Fukushima (Japão).

O francês Damien, que ainda descasca batatas, reforça a mensagem ecologista: “As preocupações ambientais de há 20 anos centravam-se em torno do buraco do ozono. As preocupações dos próximos 50 anos não serão essas. Nessa altura teremos dois mil milhões de pessoas deslocadas por causa das alterações climáticas e as temperaturas médias terão subido 3,5ºC”.

No exterior do edifício, o mesmo belga que não quer dar o nome e que encontramos a distribuir fotocópias aos transeuntes está tão preocupado com esta visão apocalíptica que está empenhado em comprar um pedaço de terra e começar a cultivá-la. “Eu gostava de ter filhos, mas como é que eu os posso trazer para este mundo? Se algum dia tiver filhos gostaria que crescessem num mundo pacífico, onde possam decidir e fazer coisas em liberdade. Num planeta verde, onde não sejam obrigados a comer porcarias nem pesticidas para sobreviver”.

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