Torne-se perito

Inspecção de Finanças aponta erros tanto ao Estado como a Berardo

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A IGF alerta que não há uma avaliação das obras que ateste o seu valor Enric Vives-Rubio

Se são apontadas falhas à gestão da Fundação Berardo também o Estado não sai incólume, acusado de se demitir de acompanhar o seu próprio investimento

A Inspecção-Geral de Finanças aponta irregularidades na gestão da Fundação Berardo entre 2007 e 2009 por falta de transparência e inventário desadequado. O relatório a que o PÚBLICO teve acesso aponta também erros de coordenação entre o Estado e os seus representantes na fundação.

Cinco anos depois, reinstala-se a polémica. José Berardo e a Fundação Centro Cultural de Belém (FCCB), presidida por António Mega Ferreira, voltaram a confrontar-se. O empresário acusou-a de ter um "saco azul" para investimentos no estrangeiro e pelo meio atribuiu à Secretaria de Estado da Cultura (SEC) atrasos na transferência de verbas para os cofres da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea, criada em 2006 com o objectivo de pôr a funcionar naquele centro cultural de Lisboa o Museu Colecção Berardo, inaugurado em Junho do ano seguinte.

As duas entidades reagiram às acusações: em comunicado, Mega Ferreira remeteu Berardo para os relatórios e contas da fundação que dirige para que o comendador pudesse constatar que tudo é claro e transparente e que as aplicações da FCCB são feitas em Portugal e no estrangeiro; Francisco José Viegas, secretário de Estado da Cultura, manifestou "estranheza" com o atraso anunciado, provou que tem as contas em dia e, no rescaldo, garantiu que está a ponderar reavaliar a Colecção Berardo que, ao abrigo de um protocolo, foi cedida ao Estado português em regime de comodato (gratuitamente) por um período de dez anos num processo que levantou um coro de protestos à direita e à esquerda (até o Presidente da República manifestou reservas).

Para os que em 2006 defenderam nos jornais e nas televisões que o Estado estava a fazer um mau negócio, que o protocolo que se preparava para celebrar com Joe Berardo se baseava numa sobreavaliação da colecção e era contrário ao interesse público, parece ter chegado a hora da confirmação. Segundo o relatório da Inspecção-Geral de Finanças a que o PÚBLICO teve acesso (requisitado à SEC, nos termos da lei), relativo à actividade da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea (FAMC) - Colecção Berardo no triénio 2007-2009, falta transparência à instituição, nomeadamente nas compras para o acervo, e um maior respeito pelos seus próprios estatutos, sobretudo no que toca ao fundo de aquisições em que o empresário, à semelhança do Estado, deveria investir 500 mil euros por ano.

A comparticipação de Berardo para o fundo de aquisições em 2008 e 2009 foi feita em espécie através da entrega de obras da sua colecção particular, "procedimento que não está em consonância com os termos estabelecidos no protocolo instituidor da fundação e no diploma legal da sua criação", lê-se neste documento da IGF de Outubro do ano passado, que aponta ainda irregularidades à inventariação da colecção (não está conforme as disposições da Lei-Quadro dos Museus Portugueses).

Mas se a Fundação Berardo é alvo de críticas, o Estado também não sai isento desta análise da IGF, que o responsabiliza pela falta de articulação entre a tutela (Ministério da Cultura) e os seus representantes no conselho de administração da fundação, e pela inexistência de uma "avaliação de impacto dos auxílios concedidos à FAMC (13,6 milhões no último triénio)", capaz de produzir "dados sobre os benefícios sociais resultantes da aplicação dos dinheiros públicos". Ou seja, para as Finanças, o Estado demitiu-se de acompanhar o seu próprio investimento, apesar de ter representantes na Fundação Berardo.

Sem avaliação prévia

O financiamento público à FAMC ascende hoje, segundo a SEC, a 26 milhões de euros (fundos da Cultura, da Economia, através do Turismo de Portugal, e do próprio CCB, que paga os custos de manutenção da FAMC, entre outros). É esta dependência do apoio estatal (78% das receitas em 2009) que, para a IGF, representa um risco para a sustentabilidade da instituição, sobretudo num cenário em que se prevê um corte na despesa pública.

"A concessão do subsídio anual do Estado/Ministério da Cultura à FAMC tem sido efectuada de forma casuística/discricionária, não assentando em pressupostos previamente estabelecidos", garante o documento, referindo-se à inexistência de um montante definido e de condições associadas ao pagamento.

Até 31 de Dezembro de 2016, a Colecção Berardo poderá passar para as mãos do Estado mediante o pagamento do montante pelo qual foi avaliada pela leiloeira Christie"s em 2006 - 316 milhões de euros. A SEC poderá, no entanto, pedir uma reavaliação. Mas com que objectivo, se o protocolo é claro em relação ao valor pelo qual estará à venda daqui a cinco anos? "A SEC decidiu ponderar as condições em que uma nova avaliação das obras da colecção poderá vir a ser feita por uma entidade idónea e reconhecida no mercado", respondeu o gabinete de Francisco José Viegas, por email. "O objectivo principal dessa avaliação, a realizar-se, será o de apurar o valor actual das obras a preços de mercado, para conhecimento pelo Estado e pelos contribuintes do valor desse mesmo património, de forma a dotar com a devida transparência a situação difusa actualmente existente no que respeita à FAMC."

Uma vez mais, a questão da transparência que era já levantada em relação às compras feitas para a fundação até 2009, último ano em que o Ministério da Cultura (MC) e Joe Berardo contribuíram para o fundo de aquisições: o MC sempre em dinheiro (dois milhões de euros), o empresário em obras em 2008 e 2009.

"Não há evidência de que a aquisição de obras de arte tenha sido precedida da exigida decisão da comissão de aquisições que, pelo menos formalmente, não chegou a ser nomeada", escreve a IGF, alertando para o facto de não haver uma avaliação das obras de arte que ateste o seu valor de mercado (nos últimos anos, a fundação comprou obras de William Kentridge, William de Kooning, Julião Sarmento ou Lourdes Castro). "E nem sempre as compras foram levadas ao conhecimento dos membros do conselho de administração", em que têm assento dois representantes nomeados pelo empresário madeirense, dois pelo Estado (Margarida Veiga, pelo CCB, e Fernando José Freire de Sousa) e um de comum acordo (o ex-ministro e comissário europeu António Vitorino).

"Falam de falta de transparência, mas isso é ridículo. Há uma comissão de compras e é o director artístico do museu que sugere as obras que quer, não sou eu. Depois, é tudo levado à administração para aprovar", reage Joe Berardo, ao telefone do Canadá. "Mas alguém acha que sou eu que me sento a decidir o que vai ser? Isso é um disparate. Estão lá muitas pessoas competentes na administração. Eu no museu nem um cheque assino, não mando nada."

Berardo explicou porque não fez a transferência de 500 mil euros em dinheiro ou em obras de arte para o fundo de aquisições, nem em 2010 nem este ano: "A economia está má e eu compreendo que o Estado não tenha dinheiro para pôr no fundo. Quando ele investir, eu faço o mesmo, como mandam os estatutos. Tenho honrado os meus compromissos até aqui."

Ao que o PÚBLICO apurou, antes de sair do MC, Gabriela Canavilhas, que já manifestara o seu desagrado por Berardo fazer as suas contribuições para o fundo em obras de arte, deixou um despacho que diz que, num cenário de contenção, o Estado só voltará a investir 500 mil euros por ano em novas aquisições para a fundação se aumentarem as receitas do jogo afectas à Cultura.

Reavaliação

Quanto à nova avaliação da colecção que a SEC poderá vir a pedir, o empresário diz apenas: "O Estado tem opção de compra e só tem de se preocupar em 2016. Até lá decide se quer ou não quer. E depois logo se vê."

Isabel Pires de Lima, ministra da Cultura à data da celebração do protocolo entre Joe Berardo e o Estado, não tem acompanhado de perto os desenvolvimentos, mas garante que ficará muito surpreendida se se chegar à conclusão de que o acervo vale hoje menos do que em 2006. "Se a Secretaria de Estado acha que tem condições para tentar renegociar o acordo, muito bem, que o faça. Mas posso garantir que em 2006 a avaliação foi feita em baixa", disse ao PÚBLICO. "Consultámos muitos especialistas na altura e todos explicaram que a Christie"s tinha subavaliado a colecção porque esperava que o acordo com o Estado não fosse para a frente e era uma das potenciais interessadas caso o comendador pusesse tudo à venda."

Surpreendida ficará outra fonte, que prefere o anonimato, se a reavaliação atingir os actuais 316 milhões de euros. "O mundo mudou. Se em 2006 a colecção já ficou sobreavaliada, imagine-se agora. Para as coisas serem sérias devia haver uma avaliação cruzada: o comendador pedia uma e o Estado pedia duas, para garantir isenção."

A reavaliação do acervo é, aliás, uma das recomendações de um relatório da Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC) de Março de 2010, feito com base na análise do exercício de 2009 da FAMC. Nesse documento sugere-se que seja feita nova avaliação "no final de cada ano, por motivos contabilísticos" e "devido a uma eventual actualização do montante do seguro".

O PÚBLICO tentou falar com dois dos representantes do Estado na Fundação Berardo nos últimos anos, o historiador Bernardo Pinto de Almeida (entretanto substituído) e Margarida Veiga, sem sucesso. Esta foi a única resposta que obteve: "A Fundação CCB não comenta factos que digam respeito a outras fundações. Esta é uma questão entre a Fundação Berardo e a Inspecção-Geral de Finanças."

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