Um tagine e um gaspacho no deserto

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Se abdica do avião e do ar condicionado a favor de uma aventura estrada fora, então este artigo é para si. Maria João Lopes (texto) foi de jipe de Mértola até Marraquexe e conta-lhe tudo sobre as paisagens de Marrocos, os pontos de contacto entre um pedaço de Alentejo e o Norte de África, o pôr-do-sol no deserto e o culminar da viagem em Marraquexe. As fotos são de Marco Vilela

Quando entrámos no jipe 15, conduzido pelo Ti Carvalho, mecânico de 56 anos, estávamos a milhas de saber o que nos esperava. O programa consistia numa expedição todo-o-terreno, de 31 de Agosto a 10 de Setembro, organizada pela autarquia de Mértola e a Merturis em conjunto com os Marafados do TT Algarve, e prometia fazer viajar os participantes pela herança do Al-Andalus: de Mértola a Marraquexe, em Marrocos.

Sabíamos que o propósito da viagem era de índole histórico-cultural, mas não imaginámos que iríamos regressar com vontade de ler poesia, a do rei Al-Mu"Tamid. Sabíamos que eram muitos quilómetros de estrada, com acampamentos no deserto e pistas nas dunas pelo meio, mas não podíamos imaginar que andar de jipe pudesse ser tão divertido, que iríamos ver paisagens de outra forma inacessíveis, suportar estoicamente o calor e rir dos contratempos. Não esperávamos que a equação aventura e arqueologia fosse tão possível. Definitivamente, desconhecíamos a odisseia que tínhamos pela frente. Ainda bem, a surpresa foi maior. Mas vamos por partes. Temos muito para contar.

Comecemos pelo motivo - a Câmara de Mértola tem razões históricas e culturais para realizar esta expedição, à qual chamou "Rotas do Al-Andaluz" (nome dado à Península Ibérica pelos conquistadores islâmicos do século VIII): Mértola foi também uma cidade islâmica e está repleta de marcas dessa época. Tem uma mesquita do século XII, hoje a Igreja Matriz de Mértola, na qual existem vestígios como o nicho da oração muçulmano, o mihrab; tem as ruínas de Alcáçova do Castelo, um bairro islâmico da mesma altura e um núcleo museológico dedicado à arte islâmica.

Não é preciso passear muito por Mértola para encontrar ligações entre esta vila e o norte de África. Basta deambular pelas pequenas e estreitas ruelas para perceber que é um espaço intercultural. Mesmo um dos mais tradicionais e antigos ofícios da região, a tecelagem, foi beber às tradições berberes.

Durante o jantar que marcou o arranque da expedição, em Mértola - comemos gaspacho, prato que aquelas gentes voltariam a cozinhar em pleno deserto! O presidente da autarquia, Jorge Rosa, sublinhou que esta "aventura" pretendia recuperar o "passado comum" existente entre a vila e Marrocos: "Esta herança é muito importante para Mértola", disse.

A expedição inclui-se no Festival Islâmico de Mértola, um evento bianual, com financiamento comunitário, que já vai na sexta edição e no qual não faltam conferências, debates e animação musical com grupos de Marrocos, Egipto, Tunísia, entre outros.

Quanto à expedição, foi a segunda vez que aconteceu - a próxima deverá ser daqui a dois anos. A parceria com os Marafados surgiu por serem eles quem tem os "conhecimentos" para ir para o terreno, explicou o adjunto do presidente da autarquia, Luís Madeira, que também embarcou na aventura. De facto, o presidente dos Marafados, António Vilela, anda por Marrocos como se estivesse em casa, conhece cada recanto, cumprimenta todas as pessoas. É ele quem impõe disciplina no grupo, obriga a coluna de jipes a circular junta, faz com que cada horário seja cumprido, cada sítio visitado. Mas não é fácil: 35 pessoas, em 15 jipes, por estradas marroquinas - que a nós nos pareceram nunca antes navegadas -, é muita logística para acautelar.

Os Marafados do TT Algarve são um clube sem fins lucrativos que organiza saídas de todo-o-terreno. Não é fácil explicar o que significa marafado para os algarvios. Basicamente, é uma pessoa com quem é preciso ter algum cuidado: não se meta com ele, porque ele é marafado, um pouco zangão, com sangue na guelra. Enfim, alguém que facilmente perde as estribeiras. Levado da breca, que prefere sempre o mais difícil, o mais arriscado.

Confirmamos pelo menos que os Marafados têm uma saudável dose de loucura aventureira, essencial numa expedição destas. Mas pode meter-se com eles à vontade: ao longo da viagem, a camaradagem é uma constante e, depois de tantas horas juntos nos jipes, os viajantes - mesmo os que não fazem parte dos Marafados - têm a sensação de que se conhecem há anos.

Para fazer esta expedição não basta, porém, ter um jipe. É preciso ter gosto por ir, porque ela é também "gastronomia, cultura, paisagens e evasão", frisa António Vilela, que nasceu em Luanda e gostava um dia de ir viver para Marrocos. "É África", diz, acrescentando que já fez outras expedições neste continente.

É dentista e só por gosto se mete nestas andanças: dois a três meses antes das expedições, faz o reconhecimento do terreno, pega em mapas, livros e cartografia da zona, explora, faz amizade com os locais. Já se perdeu. Sim, no deserto. "Acontece por vezes em pistas que estão marcadas e já não existem. Mas, se tivermos meios de navegação, mapas, cartas, acabamos por encontrar o destino", garante.

Admitimos que o medo nos assaltou. E se o GPS avaria? E se há um problema mecânico? Mas todos os receios se revelaram infundados. Vão mecânicos, tivemos guias locais, e António Vilela vai num jipe apetrechado com uma emissora através da qual pode falar para qualquer sítio. Vai à frente, chamam-lhe chefe. Foi bom ter alguém a comandar a coluna de jipes, deserto fora, quando já ninguém via bem com tanto calor.

Este ano, o percurso - que começou em Mértola e terminou em Marraquexe - incluiu paragem em Chefchaouen, Azrou, Gargantas do Todra, Nekob, Zagora, dunas de Erg Chegaga, e Ouarzazate.

À boleia do XXL

Ainda temos milhares de quilómetros pela frente (ao todo, serão mais de três mil). Estamos a sair de Mértola, nem sequer passámos a fronteira. Vá, toca a subir para o jipe 15 atulhado de malas, tralhas e tendas, Ti Carvalho ao volante, Dire Straits e Pink Floyd a tocar (mais tarde, Marco Vilela haveria de substituir a banda sonora por funk brasileiro dos anos 70). µ

± O nosso jipe era um Nissan Patrol longo, chamam-lhe o XXL. Ti Carvalho adora isto: "Gosto da paisagem, do convívio, da adrenalina." Eles preferem viajar assim, estrada fora, penetrando nos lugares mais inóspitos, conhecendo o país por dentro, parando aqui e ali, cruzando-se com locais e terriolas que de outra forma permaneceriam insondáveis. Porém, temos de o dizer: esta viagem não é turística nem é para descansar. É uma viagem, passe-se o pleonasmo, para viajar, na plenitude do termo, para conhecer uma outra cultura - neste caso, perceber o que nos une a ela.

Apesar de ser muito tempo de estrada, o grupo mantém-se em contacto via rádio CB, um sistema de comunicação entre os jipes, sempre ligado. Serve para os condutores trocarem coordenadas, para António Vilela comandar as tropas - mas também foi muito usado para mandar piadas e fazer conversa... Foi uma boa companhia aquele rádio CB. No final do dia, ainda ouvíamos a voz de António Vilela: "Apertem a coluna!" "Copiaste?" "Recebido."

Bom, por esta altura, estamos a apanhar o ferry em Algeciras rumo a Ceuta. Passar, depois, a fronteira para entrar em Marrocos é cansativo: papel para a frente, papel para trás. 35 pessoas em tantos carros é muito documento, muito passaporte. Foram mais de duas horas.

Ultrapassada a burocracia, rumámos a Chefchaouen, com a qual Mértola tem fortes laços. Existe mesmo um protocolo que prevê intercâmbios e ao qual se pretende dar novo fôlego. "Chefchaouen tem algumas semelhanças com Mértola no que toca à parte mais antiga da cidade", diz Luís Madeira. O objectivo é levar ainda mais a cultura e as gentes marroquinas até Mértola para tornar "ainda maior e mais genuíno" o Festival Islâmico, onde "não há encenações": são mesmo grupos de música e artesãos de países como Marrocos, Egipto e Tunísia que enchem a vila.

Como chegámos de noite a Chefchaouen, só no dia seguinte é que vimos como é bonita: bem-vindos à cidade azul. Apresentamos-lhe Abdeslam Mouden, presidente da associação local dos guias turísticos, que nos levou a passear por estreitas ruelas, com casas caiadas de branco e azul. Foi ele quem nos disse que, pese embora já tivesse tido outro significado, hoje o azul é "o símbolo da abertura de Chefchaouen a muitos países do Mediterrâneo".

Situada perto de Tânger e de Tetouan, a cidade deve o nome a um pequeno vale de duas montanhas, ech-Chaoua, que significa "Os Chifres". "No Inverno há aqui muita neve nas montanhas do Rif e também muita chuva", vai contando.

Chefchaouen, fundada em 1471 e com 45 mil habitantes, é também conhecida pelas djellabas (vestimenta tradicional longa e com capuz) tecidas em lã; porém, apesar das várias oficinas de tecelagem que existem na pitoresca Medina, a cidade tem também "muita agricultura biológica, mel, trigo, azeite, queijo" e turismo. Na praça Uta el-Hammam há cafés onde se pode sentar a beber um chá. De hortelã, claro. E com muito açúcar.

No final da manhã, regressámos à estrada. Destino: Azrou, com paragem nas ruínas da antiga cidade romana de Volubilis - Património Mundial da Humanidade. Trata-se de uma povoação rodeada de vastos campos que os romanos ocuparam: ali pode ver os balneários, os aquedutos, as canalizações e imaginar como seria o dia-a-dia dos habitantes.

Mas, depois de explorar Volubilis e de 260 quilómetros de estrada, uma das surpresas do dia foi o parque de campismo onde pernoitámos em Azrou. Com vista sobre as montanhas - "azrou" significa rocha em berbere -, é um elegante parque de cinco estrelas, com uma vegetação cuidada, casas de banho limpas (o que em Marrocos não é comum), edifícios com grandes salas e tendas onde, para além do espaço ao ar livre, os visitantes podem dormir.

O parque foi construído por um apaixonado pelo autocaravanismo dos Emirados Árabes Unidos: há uns cinco anos, quando andava por aquelas paragens, de autocaravana, decidiu comprar umas terras. Nelas, construiu o parque e ofereceu-o à população: são cerca de 50 locais que gerem e trabalham no espaço.

São agora 8h da manhã. Acabámos de acordar e à nossa frente é só neblina e montanhas. Hoje iremos subir o Alto Atlas até às Gargantas do Todra. Estamos no maior maciço da maior cordilheira do Norte de África e que é relativamente difícil de percorrer dada a inacessibilidade e isolamento.

Ao longo deste cenário, o nosso jipe, o número 15, é um privilegiado por ser o último e poder ver os outros carros surgirem um a um, lenta e cinematograficamente, depois de cada curva e contracurva. Naquela paisagem recortada por vales profundos e desfiladeiros apertados, estivemos pelo menos a 2654 metros de altitude. São muitos quilómetros de quietude, quebrados apenas, aqui e ali, por pequenas aldeias da cor da terra que nem devem vir nos mapas e nos guias. Alguns pastores, cabras, burros surgem amiúde. Crianças muito pobres que aparecem do nada e pedem um presente. Homens vestidos com a tradicional djellaba e turbante na cabeça.

Flautas e dunas

Há muitos pequenos espantos nas paisagens marroquinas. Volta e meia, há camelos, tendas nómadas a pontuar o imobilismo do deserto. Um oásis, por vezes. Gente que desce descalça montanhas impossíveis para vender bugigangas.

À hora de jantar chegámos à aldeia de Tamtattouchte, sempre rodeados por aquelas montanhas pinceladas de casas de argila. Dentro do albergue Kasbah Essalam, esperava-nos festa: entre tapetes, almofadões e mosaicos coloridos, a noite era de música tradicional. Ao som de flautas, pandeiretas e outros instrumentos, toda a gente dançou. Alguns ainda se alongaram, junto à piscina, em cantares alentejanos. Mais uma vez, o Alentejo desceu até Marrocos.

Finalmente de manhã fomos conhecer as Gargantas do Todra, um desfiladeiro de escarpas íngremes. Ficámos de pescoço erguido, rodeados por elas, imponentes, ainda mais avassaladoras com o sol a bater-lhes.

E eis que finalmente, nesse dia, fizemos a nossa primeira pista: a do Tizi-n"Tazazert do Sagho central, como nos explicou Vilela. Gostámos desta etapa - "uma pista para duros", com pedras, por vezes lenta -, mas a nossa parte preferida nestas coisas do todo-o-terreno foi o deserto de areia, quando andámos a subir e descer dunas de Oum-Jrane. Mas, seja em que pista for, a sensação é sempre de imensidão. Tudo parece desmedido, seja de pedra, rochosa, árida, rodeada de montanha ou com areia dourada.

Foi também assim que nos pareceram as Portas de Ali (Bab n`Ali), a norte de Nekob. Entre aquelas duas formações rochosas em forma de pilares e sensivelmente simétricas, tínhamos um entardecer à nossa espera, e, claro - lá está outra vez o Alentejo em Marrocos -, um gaspacho que o grupo de Mértola cozinhou em pleno deserto. Foi ali que acampámos. Ainda não era o deserto de areia, mas não foi menos escuro por isso à noite.

Antes de chegarmos, António Vilela preparou-nos. "É um sítio para escutarmos os ruídos do deserto, ouvir o silêncio, ver as estrelas. É uma noite espiritual." Disse-o através do rádio CB, meio a sério, meio a brincar. Depois de serões fora de horas, desafiava o grupo a não ferir aquele silêncio tão apertado em si mesmo e enorme para quem o escuta.

Mas foi possível dormir algumas horas calmas: depois do gaspacho e de algum falatório, toda a gente serenou. E ouviu-se o silêncio. Bendita tranquilidade que nos havia de preparar para a adrenalina que nos faltava: as tais "pistas" nas dunas de Oum-Jrane. Tinham-nos posto com as expectativas elevadas - a culpa é do Ti Carvalho! -, chegámos a desconfiar que não seria assim tão divertido, mas foi. Tomámos sempre comprimidos para o enjoo, pelo sim, pelo não, e tudo correu bem.

Para a malta do todo-o-terreno, a palavra "dunas" representa todo um ritual. As máquinas alinham-se, os condutores ganham confiança e lá vão eles, com a mudança e a energia certa. Um simples descuido na velocidade, na "garra", e o carro fica atascado. Nós fizemos aquilo tudo descontraidamente, não tivemos de andar de pá em punho a libertar rodas da areia. Mas é disto que eles gostam. Sobe mais uma, desce outra. Às vezes, parece que estamos a voar sobre a areia, um manto de pó fino cor-de-laranja levemente ondulado. E nós lá dentro, no jipe 15, que, diga-se, não ficou nem uma vez atascado. Fez um brilharete. No fim do dia, já não era o XXL, mas o "Papa-dunas".

Carla Luz, gestora comercial de 40 anos, também era uma estreante. Admite que teve medo. Não vale a pena dizer que é para todos, que não é cansativo, que não há alturas em que achámos que iríamos ceder ao calor. Transpirámos, bebemos água. Tudo detalhes para quem gosta destes desafios, mas que podem ser um suplício para quem aprecia o conforto numa viagem.

Foi de tal forma extenuante que, quando chegámos ao hotel, em Zagora, atirou-se toda a gente (ou quase) para a piscina. Jantámos na esplanada e, até à meia-noite, o calor insistiu em desassossegar-nos.

Não ouvimos, porém, um único queixume durante os 11 dias. Todos aguentaram a temperatura, o montar e desmontar tenda, as casas de banho de Marrocos nas quais, por vezes, a meio do percurso é preciso parar e que são muito pouco convidativas. Nada disto teve a importância que supusemos que teria, porque houve sempre um deslumbramento - partilhado - por aquela paisagem que nos esmagava ao longo de estradas sem fim. µ

± Ainda em Zagora, mas já pela manhã, acompanhámos alguns dos participantes à oficina de Mohamed "Gordito" (nesta zona há muitas oficinas que reparam os carros que vêm do deserto): recebeu-os com abraços e palmadas nas costas. Aproveitámos também para espreitar o mercado: vimos um pequeno rato entre os vegetais e várias cabeças e patas de vaca ensanguentadas no chão. Não é para o nosso estômago, mas, apesar disso, reconhecemos que havia fruta com bom aspecto.

Pôr-do-sol com cuba livre

Mas que importa o mercado e o rato quando nessa noite iríamos acampar nas dunas do deserto, no Erg Chegaga? À nossa espera estavam várias tendas nómadas - khaima -, erguidas com tecido castanho feito com pêlo de cabra ou de camelo. Uma delas, na qual nos descalçámos antes de entrar, estava preparada para jantarmos o típico tagine (guisado de frango, borrego ou vaca, que pode variar consoante a região, mas que é sempre servido num prato de terracota com tampa cónica). Havia também umas casas de banho improvisadas - para usar um eufemismo, se formos exigentes - e quem quisesse podia passar-se por água, que era pouca.

A "casa de banho" rapidamente ficou esquecida quando, ao som de música tradicional, apreciámos o sol a descer sobre as dunas e a meia-lua a erguer-se. Já o banho que não tomámos ficou para trás quando o Tio Jaime (Jaime Jara, de 59 anos) nos ofereceu um copo de cuba livre para que fruíssemos ainda mais o momento. "São coisas pequenas, mas são bonitas", disse-nos.

Tio Jaime tem uma veia poética. Escreveu mesmo uns versos. Na impossibilidade de transcrevermos o poema na íntegra, dizemos apenas que fala do deserto, das brincadeiras nas dunas, das danças junto a uma fogueira, da música, da gastronomia, da hospitalidade, do chá berbere, do cheiro da Medina, das especiarias. E conclui que é "triste" haver quem não possa "apreciar esta beleza".

Qualquer palavra parece vaga para descrever a atmosfera de estar ali sem nada à volta, só com areia e céu. Talvez porque descrever não seja o verbo certo para se falar no deserto. Será mais decifrar. Certamente também por isso, o nosso grupo falou noite fora sobre a existência de Deus. Entre quem acreditava e não acreditava, apenas uma conclusão: o deserto dá para isto. Basta deitarmo-nos de cabeça virada para as estrelas e rapidamente as razões da ciência acabam nos sentidos da existência.

Francisco Gonçalves, 44 anos, também se impressionou com o "tamanho" daquela noite: "A quantidade de estrelas é enorme, vemos muito mais estrelas do que noutros sítios, parece que o céu nos cai em cima. Nunca tinha visto tantas estrelas-cadentes seguidas." Manuel Candeias, 49 anos, levantou-se cedo e sentou-se sozinho numa duna a ver nascer o sol: "Já o vi nascer em muitos sítios, mas no deserto é diferente, porque não há mais nada, é um silêncio..." Várias pessoas aproveitaram também para andar de camelo.

Carlos Ramos, dentista de 37 anos, não esconde que a primeira vez em Marrocos está a ser "fabulosa": "Muda-nos, sem dúvida, por tudo. Pelas gentes, pelos cenários. Há alturas em que cada curva nos revela uma surpresa." O que mais o deslumbrou foi "a imensidão e os horizontes a não acabarem nunca."

Raquel Dias é a mais nova do grupo. Com apenas 11 anos, preferiu Chefchaouen ao deserto: "Gostei de ver os efeitos das casas, todas azuis." Mas apreciou o "friozinho na barriga" que sentiu enquanto subia e descia as dunas no jipe do pai. As pistas ainda não tinham acabado, faltava-nos uma para Foum Zguid, no caminho até Ouarzazate. Há participantes que garantem que, neste dia, o termómetro chegou, ou ultrapassou, os 50 graus. Um local disse-nos que terá rondado os 47.

Depois de nos recompormos com um banho e um jantar, fomos dar uma volta por Ouarzazate - situada a 1160 metros de altitude, no cruzamento dos vales de Draa e Dadès - mas estava quase tudo fechado à noite. Foi no dia seguinte, já na estrada para Marraquexe, que vimos os Atlas Film Studios, onde se rodaram, por exemplo, Um chá no deserto, de Bernardo Bertolucci, e Kundun, de Martin Scorsese.

O rei poeta e Marraquexe

Visitámos também o mausoléu do rei poeta Al-Mu"Tamid, um dos maiores poetas do Al-Andalus que nasceu em Beja, em 1040, e morreu, em Marrocos, em 1095. Escreveu sobre o amor, sobre a guerra, sobre Silves, sobre o prazer, sobre o vinho. "Saúda, por mim, Abg Bakr,/ Os queridos lugares de Silves/ E diz-me se deles a saudade/ É tão grande quanto a minha."

Segundo Manuel Passinhas, que exerce funções de técnico profissional de museografia na Câmara de Mértola, é neste reinado que se desenvolve bastante a poesia e a arte, tendo a cultura e civilização árabe conhecido um grande impulso na Península Ibérica: "representa o pico, o apogeu", nota. Al-Um"Tamid teve uma "relação afectiva" com Silves e foi rei de Sevilha; o filho foi governador de Mértola: "Para nós, isto tem uma importância relevante", diz Manuel Passinhas.

Mas a viagem estava longe de estar terminada, embora estivéssemos a três dias do fim: ainda nos faltava... Marraquexe. Estamos a entrar na cidade e a pensar: ainda temos energia para aquele movimento nas ruas, aquele cheiro a especiarias, aquele trânsito caótico, mais calor, tanto artesanato...? Sim, Marraquexe contagia.

Quem se cansa de deambular pela praça Jemaa el-Fna? Património da Humanidade, fica no coração da Medina, sobre a qual se ergue o minarete da mesquita Koutoubia (que inspirou os que foram construídos mais tarde pelos almóadas na Andaluzia), e é só cores e sons e motas e bicicletas que quase nos atropelam, comida típica, muito sumo de laranja doce, encantadores de serpentes, contadores de histórias, dançarinas, músicos. Mulheres que pintam nas mãos os padrões de hena para se embelezarem e protegerem contra forças sobrenaturais e malignas.

Moulay Said, 77 anos, o dono do hotel onde ficámos (um riad, casa tradicional disposta em torno de um pátio), diz-nos que "o cérebro de Marraquexe" é aquilo: "Toda a gente tem de ir ver a praça, os que vivem em Marraquexe, mesmo os marroquinos, têm de ir ver a praça à noite."

Conversámos um pouco sobre Marrocos, a Europa, o hotel, mas o melhor estava para vir. Não resistimos a contar-lhe. Prepare-se para ouvir a incrível história de Moulay Said: Paris, 1971 - Moulay Said ouve uma conversa suspeita numa esplanada, segundo relata, entre o lendário terrorista venezuelano Carlos, o Chacal, e cinco japoneses. Percebe que se estariam a preparar para raptar o filho de sua majestade, Hassan II. Moulay Said resolve avisar de imediato um membro do governo. O ministro ter-lhe-á perguntado se ouviu bem. "Disse-lhe que estas palavras eram verdadeiras." Graças à intervenção de Moulay Said, o plano terá saído gorado.

Conta que foi recebido pelo rei, no seu palácio, mas não quis nada, porque apenas cumpriu o seu dever. Nessa altura, os jornais - que Moulay Said fez questão de nos mostrar - contavam apenas que um marroquino radicado em França tinha sido o responsável pelo feito. 35 anos depois, quando as autoridades lhe tentaram atrapalhar a abertura do riad, Moulay Said ter-se-á valido do seu passado para enviar uma carta ao actual rei (que, na altura, seria o filho em perigo), recordando-lhe a história e imediatamente obteve a licença de que precisava. E poderíamos ter continuado a conversa - a narrativa merecia -, mas acontece que Marraquexe continuava lá fora.

Não falta que fazer na cidade. Fomos às tumbas dos reis saadianos, um jardim-cemitério onde estão os túmulos desta dinastia e que representam bem, através da arquitectura, das colunas de mármore, e dos azulejos, as tradições andaluzas enraizadas em Marrocos. Datam do final do século XVI até ao XVIII e são dois mausoléus num jardim com flores que simboliza o paraíso de Alá.

Fomos também à cooperativa artesanal Twizra, a maior de Marraquexe, onde se pode comprar tudo: brincos, fios, anéis, pulseiras, malas, tapetes, carpetes, móveis e inúmeras antiguidades do século XVI ao XVIII. O representante da cooperativa estatal, Abdellah Damir, explicou-nos que 45 famílias vivem deste projecto e que todo o dinheiro reunido é depois investido, entre outras finalidades, na educação das crianças.

Tentando fintar o calor, fugimos para o jardim Majorelle, o que se revelou uma boa escolha: estava mais fresco lá, com todas aquelas palmeiras e bambus. Foi em 1923 que o pintor Jacques Majorelle foi para Marraquexe, onde construiu uma villa mourisca a que chamou Bou Safsaf. Mais tarde, mandou erguer um estúdio de paredes azuis. Esta casa acabaria, porém, por ser comprada pelo costureiro Yves Saint-Laurent.

Durante as deambulações por Marraquexe, parámos numa farmácia tradicional e houve quem aproveitasse para receber uma massagem contra as dores articulares e musculares. Foi merecida, já estávamos perto do fim...

Apesar do cansaço, arriscamo-nos a dizer que muitos dos participantes repetiriam a expedição. Sérgio Cavaco, de 32 anos, regressa sempre, diz sentir afinidades com a cultura local. E para Manuel Guerreiro, de 51 anos, até o calor valeu a pena: "É para saber como é o verdadeiro deserto, quando as coisas apertam."

A ideia da Câmara de Mértola também é esta: se Marrocos vai a Mértola, no Festival Islâmico, então Mértola também tem de ir a Marrocos. Foi uma viagem intercultural e os jipes um bom meio: "Conhecem-se sítios que são impossíveis de conhecer doutra maneira", diz Nelson Cruz, 32 anos.

Porém, o fim último desta expedição é apertar laços com um país que, afinal, nos é tão próximo - e não só geograficamente. Na despedida, Luís Madeira deu por cumprida a missão e agradeceu ao presidente dos Marafados ter tornado a odisseia possível: "Tivemos a felicidade de ter um guia extraordinário. Há poucos marroquinos que saibam tanto de Marrocos. Esperemos que daqui a dois anos sejam 30 carros. Conseguem?", pergunta a António Vilela. O chefe nem hesita: "Claro."

A Fugas viajou a convite da organização da expedição que incluiu a Câmara Municipal de Mértola, a Merturis e os Marafados do TT Algarve

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