Mamma Rita

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Uma mãe (Rita Blanco) e o amor incondicional por uma filha (Cleia Almeida)

A primeira imagem que guardámos dela era revestida de uma estranheza rebelde e mágica. Hoje não podia ser mais real esta mulher de pés assentes na terra. Pode ser esta a biografia de uma actriz - é que Rita Blanco é uma actriz-autora. Márcia, a mãe de "Sangue do Meu Sangue", de João Canijo (estreia a 5 de Outubro), é um ponto culminante de uma relação de comoção com as personagens. "As pessoas valem muito a pena, eu só sou actriz para falar sobre as pessoas."

Olhamos para a mulher de "Sangue do Meu Sangue" a tentar resolver a sua vida através da vida dos outros e percebemos que o corpo a quem demos o nome de Rita Blanco existe para lá da imagem que dele fizemos. Esta mulher, a Márcia do filme de João Canijo (em 15 salas do país a partir de 5 de Outubro), é uma mãe pragmática, que não se tolhe perante o que de assustador possa acontecer ao seu núcleo familiar - o incesto - que ela tem como uma fortaleza contra tudo e todos no bairro Padre Cruz, Lisboa.

Rita Blanco é essa mulher, discurso e corpo construídos à margem de uma imagem pública que sempre a viu como um corpo estranho. E nunca ela foi tão "de dentro" como neste fabuloso filme de Canijo, a distribuir o jogo, a jogar no limite para nunca se perder. A ser espectadora e actriz da sua própria vida. A brincar com ela. À porta de sua casa uma imagem em tamanho natural, recortada em cartão, restos de um anúncio a um detergente. O post-it onde a filha escreveu "Amo-te" ainda resiste às pancadas que lhe dão, no meio da cara, quando se toca à campainha. É esse gesto de permanente desmontagem que a persegue.

Vimos Rita Blanco, hoje 48 anos, de pés suspensos em "Filha da Mãe", 1990. Agora parece brotar do mais duro dos chãos. "Quis sempre falar das pessoas", diz-nos, desarmando as imagens pré-feitas que possam existir e que sempre tentaram perceber, quando não mesmo limitar, o modo como circulou da TV para o teatro e da publicidade para o cinema. Rita, actriz por inteiro, só se confunde com as personagens que interpreta porque, a sustentar esse desejo de abraçar os que vê na rua, há o desejo, sincero, de perguntar como pode ser aquela pessoa. E, de filme para filme, de peça para peça, de série para série, ascende, afinal, aos céus, para ser a mais estranha das mais completas e complexas actrizes portuguesas.

Através do veículo "televisão" as pessoas conhecem-na, entra em casa todos os dias. Como responde a isso?

É ilusório. Quando sou uma personagem agradável, as pessoas gostam de mim. Quando não sou, têm tendência a partidarizar: "eu gosto mesmo de você é na vida real", etc. Se calhar posso dizer que cultivei a minha espontaneidade.

Cultivou ou construiu?

Construí. A partir de uma certa altura tem de ser uma construção, o que não quer dizer que seja menos espontânea ou sincera. Terei sido naturalmente espontânea e tive sempre facilidade em me expressar. Quero continuar a comunicar como sempre comuniquei. Quis construir uma ligação com as pessoas. Não posso ser a Rita no meio da rua, mas sou a Rita que eles imaginaram, e que eu também imaginei.

Que Rita é essa que as pessoas vêem? Há actores sobre os quais uma pessoa leva já uma ideia pré-definida quando vai ver um filme ou uma peça.

Mas espero surpreendê-los. Isso terá sido mais verdade quando estava a fazer de Rita Blanco. A maior parte dos actores só se expõe enquanto actores. Aquilo que procuro é que se reconheça aquela pessoa, para além do passado da personagem. Acho que os actores têm de ler muito e de ver muito, [para que] quando chegam aos palcos, ou aos filmes, ou à televisão, [o demonstrem], apesar de a televisão não ter espaço para personagens elaboradas. Não quer dizer que as pessoas vão ver a Rita Blanco, mas sabem que aquele actor que interpretou aquilo deve ter tido um passado que o fez fazer aquelas escolhas.

A televisão faz com que os actores sejam mais preguiçosos?

Não há espaço de trabalho. Ninguém pode construir uma personagem escrita a traços rudes e interpretada a 300 à hora. Uma telenovela não pode ter textos muito bons a não ser quando se fazem adaptações. Até [mesmo] o processo de trabalho: imaginemos 20 cenas num dia no mesmo décor, ao fim de dez a fazer a mesma coisa acabamos por enlouquecer.

Acha, então, que é uma contradição inerente aos actores da sua geração, uma "estratégia de sobrevivência", a necessidade de ter de aparecer.

Não, eu gosto muito gosto desta frase maçadora: "o homem e a sua circunstância". Não estou nada arrependida de ter feito televisão. Disponibilizou-me para uma velocidade inacreditável. Diverti-me imenso a fazer [o programa de sátira na SIC] "A Noite da Má-língua" [1994-1997], e isso só me levou a ser mais trabalhadora, a ler jornais, a informar-me. Tem interesse enquanto actriz? Com certeza, sou, primeiro que tudo, pessoa e se não for uma pessoa nunca poderei ser uma actriz.

Tenho dificuldade em entrar em projectos onde não me divirta nada. [Entro num projecto] porque gosto de duas ou três pessoas que lá estão ou porque é um desafio. Reajo mais depressa do que a maior parte das pessoas, e isso tem a ver com a escola da televisão. Dá-me prazer mudar os textos que me dão no momento. Descobri, à conta disso, que nunca direi o mesmo texto em televisão ou em cinema, sob pena de não me ouvirem. Se as pessoas não souberem o que vou dizer têm de me ouvir. É a nossa obrigação enquanto actores.

Em ficção, a coisa que mais gostei de fazer foi o "Conta-me como foi" [série para a RTP passada nos anos 60 e 70]. Tinha um papel que me foi grato, e que me deixava brincar com aquilo de que mais gosto, a literatura. Divertia-me a procurar expressões do Norte, da minha avó, coisas do Eça [de Queirós]. As pessoas estavam habituadas a que eu fosse um bocadinho agreste, e gostaram de me ver a fazer de boa mãe, mulher esforçada, mulher humilde.

Há qualquer coisa na sua figura nessa série que a torna parte da mobília. Mas em "Filha da Mãe" [João Canijo, 1990], a Rita era, logo naquele primeiro plano com os pés suspensos, alguém que é estranho, que surge pendurado. Em "Sangue do Meu Sangue" a sua relação com a terra não podia ser mais forte: é a pessoa que impede que haja melodrama.

A grande maioria das deixas ditas por mim nos filmes do Canijo foi trabalhada com ele. Começou logo no primeiro filme, "Três Menos Eu" [1988]. As mulheres são mais presentes nos filmes dele, os homens aparecem cada vez menos. Ele tem uma ideia terrível das mulheres. Tentou moldar-me a uma imagem de pessoa quase sem sexo. Era a maneira como ele me via. O João construiu uma imagem para servir aquela actriz, como se fosse um elfo. Não é um rapaz nem uma rapariga, é uma fusão dele com as mulheres.

Ou seja, diz mais sobre ele do que sobre si.

Ele queria isolar-me do mundo. Eu podia fazê-lo e fi-lo. Estou cá para o servir.

Todos os actores têm uma filmografia, mas não quer dizer que todos tenham obra. Encontra essa obra?

O Canijo quer mulheres de bairros e sofridas. Vou directa e "facilmente" a essas personagens. Há pessoas que acham que sou uma mulher sofrida. Estou muito próxima do João Canijo por várias razões: crescemos intelectualmente os dois, íamos juntos ver os mesmos filmes, ler as mesmas coisas, ver as mesmas exposições. Quando fiz "Alentejo sem lei" [série de televisão, 1990], aquilo já não fazia sentido e afastei-me. Há actores que são mais moldáveis do que eu. Eu preciso de confiar imenso nas pessoas e que confiem em mim, deixando-me fazer o que quero. E volto ao [encenador] Luís Miguel Cintra. Eu de onde venho volto sempre lá, porque são pessoas que me reconhecem e que reconheço. [Rita Blanco estreou-se no teatro em 1983 em "Mariana espera casamento", no Teatro da Cornucópia]

Canijo, Botelho e Luís Miguel Cintra: consegue perceber o que querem de si?

Querem coisas diferentes. Mas, penso, acreditam que ainda possa surpreendê-los.

No caso de Luís Miguel Cintra, se pensarmos nas personagens que interpretou em "Sangue no pescoço do gato", Fassbinder [2007], "Miserere" [2010] ou "A Cacatua Verde" [2011], de Schnitzler, são também elas corpos estranhos que surgem e passam por uma descoberta, de revelação e de transformação. "Miserere" [a partir de "Auto da Alma", de Gil Vicente] talvez seja o mais evidente: com a materialização de um falso ídolo, Amy Winehouse, como corpo estranho, essa alma errante.

Foi a imagem de partida. Ter-me-ia sempre repugnado imitar alguma coisa. Mas ali, na primeira reunião, vi a Amy, mesmo que depois não correspondesse com essa imagem. A fragilidade física, perdida, é ingénua e sincera. Aquela rapariga expunha-se imenso, da pior maneira ou não. O Luís Miguel deu-me todo o espaço do mundo, que eu preciso. Se não me deixam pensar no que vou fazer, baralho-me.

Acredita em figuras tutelares? Houve a família do Herman José na televisão, há a do Luís Miguel Cintra no teatro, a do João Canijo no cinema...

Interessa-me trabalhar com poucas pessoas. Isto é uma arrogância inacreditável, enfim... é a minha limitação, uma delas. Eu admirava o Herman e fui lá para aprender. No caso do João não foi a mesma situação. Ele não funciona como meu tutor, mas como parceiro. Tive várias figuras que me ensinaram muitas coisas. Também só pude estar com aquelas pessoas porque andei no Liceu Francês, o que fez com que reconhecesse a cultura francesa, que era próxima de nós. O Jorge Silva Melo falou-me de coisas que para mim foram importantes. O João Canijo obrigou-me a trabalhar imenso. É viciado em trabalho. Fez-me bem porque sou a rainha da preguiça. Forcei-me tanto que agora no panorama português pareço uma pessoa trabalhadora.

Quando decidiu fazer a telenovela "Tempo de Viver"...

Eu não decidi, fui processada e foi a paga. Foi a única telenovela que fiz na vida e fez-me perceber que não podia fazer telenovelas. Fui processada por uma produtora porque tinha abandonado um projecto antes de ele ser concretizado, visto que não tinha concordado com a situação, e andámos anos... foi uma situação chata, ficou acordado que eu entrava numa telenovela e ficaria pago o meu castigo. Fi-lo e por acaso vim a trabalhar anos mais tarde com a pessoa por quem tinha sido processada e depois até ficámos a dar-nos muito bem.

Falávamos de telenovelas porque em várias cenas de "O Sangue do Meu Sangue" há uma televisão por trás a mostrar as telenovelas. Um espectador que a viu nessa telenovela e a pode ver em "Sangue do Meu Sangue" pode proceder a uma identificação: volta a ser uma mulher que conhece a realidade onde está e trabalha o melhor possível com ela e tenta desenvencilhar-se o melhor possível. Este tipo de personagens que terão a ver com a tal biografia do actor, uma genealogia, uma certa família.

Sim, e tenho muito gosto nisso. São todas da minha família. Quando estou a trabalhar não penso em nada, começo a idealizar com a pessoa que está ao meu lado, por isso é que digo que só posso trabalhar com poucas pessoas, porque tenho de ter confiança total. Ou seja, que haja uma comunhão e que não seja só eu a servir uma pessoa, que nos sirvamos uns aos outros.

Falam-me em figuras tutelares, eu falo de pessoas com quem sinto cumplicidade, e que também sentirão por mim. Acho que tem mais a ver com isso. Que eu aprendo coisas interessantes? Sim, que lhes dou algumas coisas? Penso que sim, espero que sim.

Voltando a "Filha da Mãe" e a Canijo. Disse que em "Alentejo sem Lei" houve um momento...

Passei-me, até lhe atirei uma cadeira à cabeça [risos]. Precisava de evoluir e que as personagens [se] abrissem. O João estava naquela carreirinha e eu ia também, mas já me estava a afogar. O João foi criando essa imagem e cristalizou-a. E eu já não podia mais, estava a crescer, já tinha lido mais 50 livros, já tinha não sei quantas vivências. Então, as personagens queriam alargar e não estavam a ter espaço. Tivemos uma zanga, e fui apanhar ar e trabalhar com outras pessoas: o Luís Miguel Cintra, o [João] Botelho, o Manoel de Oliveira, o [João] César [Monteiro]... quando voltei já não havia aquela cristalização, até porque o João [Canijo] me tinha visto trabalhar noutros sítios. A partir daí foi possível continuar. Mas deixem-me dizer uma coisa: eu, que gosto muito dos filmes do João Canijo, nunca faria um filme como ele.

Então?

Não tem nada a ver comigo. Eu nunca falaria sobre aquilo. Se fizesse um filme, não faria aquilo. Saúdo-o completamente.

Mas quando está a ajudar a construir os diálogos, está a ajudar a construir que universo?

Estou a juntar o meu ao dele.

Quando regressou a Canijo, ganhou um poder. Já não é como na primeira fase, é outro tipo de confronto...

É, talvez. Mas sempre houve esse confronto. Lembro-me desde o primeiro filme de não concordar com nada. Sempre nos confrontámos imenso. E [quando digo que] nunca poderia fazer um filme dele não é por gostar ou deixar de gostar, é porque nunca me passaria pela cabeça.

Este filme começou com uma ideia sua, a de, por uma vez, as coisas não acabarem mal...

Uma ideia minha, mas o João deu-me a premissa "tu és a mãe e esta é a filha"; e eu disse: "quero falar sobre o amor incondicional, temos andado a falar disso e eu quero ir mais longe"; e ele: "sim, sim, eu também quero. Ah, é verdade, é no bairro Padre Cruz". E é assim, percebem? Construo a história no bairro Padre Cruz, mas é um filme dele sobre aquelas pessoas.

No seu regresso a Canijo, passa uma sensação forte de quem já não está com os pés no ar como em "Filha da Mãe"...

Mas isso tem a ver com o que sou. Gosto imenso das pessoas. Quero estar mesmo próxima das pessoas e falar sobre as pessoas. Sabem porque leio? Para ser actriz, viver aquelas vidas todas. Todos os dias me comovo com as pessoas, com a fragilidade, com a solidão... as pessoas estão muito desprotegidas. Às vezes vou no carro com a minha filha e digo: "Viste?". E ela: "Oh, não...não vais começar a chorar outra vez, pois não?". As pessoas valem muito a pena, eu só sou actriz para falar sobre as pessoas.

Parecemos um bocado obcecados com a ideia do corpo e da pertença a um espaço, um território. Rita Blanco é um corpo que faz parte da mobília, no qual nos projectamos e identificamos...

E que assim se pode moldar a várias coisas. E as pessoas não ficam agarradas a uma imagem, como vocês diziam...

Quando se entra numa sala de cinema ou teatro, não se vai virgem. O que acontece é que no seu trabalho com Canijo há uma releitura de coisas que faz noutros sítios...

Sempre. Porque sou sempre eu. E não me quero abandonar. Se não perco-me.

No fundo interessa-lhe ser fiel a uma certa biografia enquanto actriz.

Sim, sem dúvida.

Mas há coisas que são trabalho e há outras que são biografia?

Não, são todas a minha biografia. Por exemplo, vou fazer uma série sobre a maternidade, as personagens são mais lineares, mais esquemáticas... e eu sei porque o vou fazer, porque estão lá pessoas de que gosto... isso também tem a ver com a minha biografia. Eu só trabalho hoje com quem faz parte do meu passado e da minha vida; o resto não me interessa. Por exemplo, trabalhar com [Michael] Haneke ["Amour", com Isabelle Huppert e Jean-Louis Trintignant] foi engraçado, porque eu gostava do imaginário dele. "Reconhecia-me" naquela cabeça. Numa entrevista dele, que vem com o DVD do "Laço Branco", as pessoas podem dizer que ele parece infantil, e eu adoro isso, porque acho que está muito trabalhado e ele sabe exactamente o que quer. De repente percebi porque é que ele me tinha escolhido. Pode ser uma ilusão minha, mas houve ali uma insistência dele, até ao fim, mudando as coisas para que eu pudesse fazer o filme.

Acha que ele a reconheceu?

Ele percebeu que eu percebia. Aliás, lembro-me de dizer, de forma totalmente natural: "tenho muito gosto em trabalhar consigo, se tiver gosto em trabalhar comigo". Acho que ele percebeu que eu estava a ser profundamente sincera. E fazer o papel de uma porteira, papel pequenino, era só para trabalhar com ele e pelo gosto de cinco minutos com o Trintignant, que é um homem que faz parte do meu passado.

No documentário sobre "Sangue do Meu Sangue", "Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor" [lançado em DVD no dia 2 de Outubro, dia em que está marcada sessão no Teatro do Bairro, em Lisboa, com a presença dos actores e do realizador], a Rita é aquela que distribui o "jogo".

Pois, porque tenho a tendência para que as minhas ideias sejam aceites (risos). Mas também sempre disponível para os outros dizerem o que acham, obviamente, desde que eu perceba (risos).

Os dois anos de ensaio foram mesmo necessários? O filme não teria sido o que é se não tivesse existido aquele período?

Não, não teria sido o que é. Podia ter sido melhor ou pior, mas não teria sido aquilo. Teve a ver com o conhecer melhor as pessoas, reconhecermo-nos todos uns aos outros e àquele bairro, trabalharmos todos com ideias diferentes...

Há pessoas que engordam, que emagrecem. Põe essas coisas como limite? Por exemplo, não foi viver para o Bairro do Padre Cruz na sua fase de pesquisa...

Por várias razões. Primeiro, porque achava que não era necessário. Depois, tenho a minha vida, que é para mim muito estruturante. Se estiver muito tempo sem ver a minha filha, corto os pulsos. Eu vi durante muitas horas aquelas pessoas a falarem sobre a sua vida. Além disso, não queria copiar nenhuma delas, queria construir a minha Márcia. Íamos para o bairro todos os dias e o facto de não ter dormido lá não quer dizer que não conhecesse aquilo. Não se esqueçam que tenho 48 anos, já reconheci muitas pessoas próximas daquilo. Portanto, não era necessário dormir ali. É muito importante para mim que a personagem seja uma construção intelectual. Quero fazer meu olhar sobre essa mulher. O divertido de ser actriz é poder ter uma série de vidas, sem ter de as viver.

Quando, depois de trabalhar no restaurante, reproduz as acções que aprendeu, está a interpretar o descascar das batatas em vez de estar a descascar batatas?

Sem dúvida. Se me perguntarem se eu podia trabalhar num restaurante, eu dizia que não. Eu "apanhava" as coisas que achava que eram importantes para construir a personagem. E isso é fazer "triagem", que cada actor faz à sua maneira.

Representar é um processo mimético?

Não, é meter tudo dentro de um saco e depois separar até tudo fazer sentido e não precisar de pensar mais nisso. Fui eu que construí a personagem, portanto ela estava sempre ao meu serviço. Eu é que sabia o que era importante para mim. Andei perdida muitas vezes, mas sabia onde queria chegar e do que queria falar.

E no filme rapidamente construímos a primeira história, a da mãe e da filha.

A mãe achava que se a filha (Cláudia, interpretada por Cleia Almeida) não soubesse que estava a ter uma relação de incesto não havia incesto. Preferiria perder o amor e a consideração da filha a que a filha perdesse a vida dela. Ainda que esta personagem não seja uma mulher que pensa demasiado sobre as coisas, é uma mulher prática que pensa: "não, isto tem de se resolver".

Mas porque é que essa mãe não resolve o problema do filho [Joca, interpretado por Rafael Morais]?

Ela dá-lhe amor em casa e deu-lhe todas as possibilidades que deu à outra filha; ele não as aproveitou. Ela não pode destruir a vida da família por causa disso. Ele em casa pode estar, nas condições que ela impõe: respeitar os outros, trabalhar para contribuir para a casa e não estragar a vida aos outros. "Quem não está bem, muda-se" é a opção desta personagem. Ela ama o filho, mas ama o núcleo; ela sabe, porque é uma mulher prática, que o filho pode destruir o núcleo e isso ela não pode permitir.

Eu acredito imenso na satisfação e na possibilidade de ser feliz e nesta personagem pude aplicar isso. É uma mulher sã, que tenta salvar coisas muito complicadas para que as pessoas possam viver as suas vidas.

Fomos construindo as personagens à frente uns dos outros e em função uns dos outros. Daí eu às vezes, por ser mais "crescida", notar que uma característica ou outra podia fazer perigar o todo. E aí eu dizia: "Alto! Espera aí. Isso pode ser muito giro para a tua personagem mas não cabe aqui".

Ou seja, foi uma "mãe leoa" no argumento? [risos] Existe competição entre actrizes?

Se eu sentir isso torno-me violenta. Mas não sou muito competitiva. No fim, posso pensar: "estive tão mal e os outros estiveram tão bem", mas enquanto estamos a trabalhar não. Sou é muito defensora das minhas ideias. Perguntei ao João: "Achas que sou egoísta?", e ele respondeu: "Não. Tu és, das actrizes com quem trabalhei, a menos egoísta". Sou vaidosa e infelizmente ainda não consegui vencer isso; passo a vida a lutar contra o meu ego.

A Márcia tem de saltar por cima de tudo o que possa ser uma ética, uma responsabilidade, ou um amor incondicional, para fazer sobreviver o seu núcleo.

Sim. É uma mulher que quis ter um filho sozinha, porque tinha achado aquele rapaz muito giro, mesmo sabendo que não era para ela. Construiu tudo para que a filha pudesse sair dali e tivesse uma vida porreira. Amava-a ao ponto de ser amiga dela, de desejar o melhor para ela. Pensa em como vai resolver o problema com a filha, sem atrito e seguindo com a vida, porque não há outra hipótese. É uma mulher honesta; tem a ver com a Margarida do "Conta-me Como Foi", que também é honesta mas devido ao salazarismo e ao ser português - que é ser honesto, cumprir, trabalhar e tentar construir um futuro... Eu quis sempre construir famílias portuguesas. Querem o quê? Eu sou portuguesa...

Todas as mulheres que tem interpretado têm uma relação com o espaço envolvente e zelam para que o espaço se mantenha...

Sim, sendo que têm opções diferentes. A da "Noite Escura", que é mais saloia (é uma "bimbalhona"), faz uma coisa horrível: como não conseguiu ser artista, quer que a filha apareça na televisão e obriga-se a esquecer que isso pode provocar uma desgraça à filha; projecta-se na miúda e o sonho torna-se mais importante do que o amor. A Márcia é o contrário. Está disposta a tudo para que a filha seja feliz.

A propósito de "Conta-me Como Foi"... Vieram cá os espanhóis, porque a série [original espanhol] estava a ser um sucesso. Entrevistaram os actores. Perguntaram-me sobre o facto de a Margarida [Mercedes, no original] ser uma mulher submissa. Eu respondi que não podia representá-la com castanholas. Isto porque a personagem original é exuberante. Mas sabemos que, à época, não éramos assim; as mulheres tinham de ser submissas, sob pena de serem aniquiladas. O que eu achava graça nesta personagem era a inteligência dela; ela conseguia levar a água ao seu moinho, ser sempre a matriarca, mas sempre na forma da mulher submissa que está ao lado do marido. Tem uma consciência do seu lugar que consegue ultrapassar sempre, porque ela quer ter o seu emprego e um negócio e isso é duro de adquirir.

Em relação à Márcia... Há todo um trabalho consciente de ver "sujidade" na personagem. Isso é para a tornar mais real ou é porque não é possível de outra forma?

É para a tornar mais real. É porque ela é assim. Às vezes via imagens dela e pensava: "porque é que eu estou tão feia?". Mas não consigo fazê-las de outra maneira; saem sempre horrendas. INo "Conta-me..." não era sempre assim porque a Margarida fazia as suas próprias roupas e gostava de moda. Eu sempre quis construir pessoas, sempre. Quis sempre que as personagens fossem pessoas que pudessem fazer rir ou chorar, que tivessem um lado comovente, que é o que eu vejo nas pessoas de todos os dias, principalmente quando acontecem desastres e as pessoas ficam totalmente baralhadas e "despidas". Eu quero que a realidade fique mais real.

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