Objectos e figuras em vigília

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RUI GAUDÊNCIO

Em “Deserto, no Pavilhão Branco do Museu da Cidade, Miguel Branco ferece-nos uma exposição de objectos, imagens e figuras que combatem, em silêncio, o fragor insuportável do presente

Nos objectos e nas figuras que Miguel Branco nos deixou no Pavilhão Branco há uma gravidade perturbante. Pousados numa mesa ou sobre um plinto, de frente para o jardim, como se contemplassem o tempo ou o espaço, resistem, sem violência, ao espectador. Este avança e recua com o corpo e o olhar, testemunhando a inscrição das formas: imagens de borboletas, um exército de monges ou objectos arqueológicos.

"Deserto", é este o nome da exposição do artista no Museu da Cidade, em Lisboa, dá um novo fôlego conceptual a uma carreira iniciada nos finais da década de 1980. Muitos dos traços da produção do artista (presença de dispositivos cénicos, transformação/metamorfose; uso de escalas distintas) regressam com uma intensidade renovada, complexa, que alimenta metáforas e imagens.

Cada sala pode ser entendida como uma exposição autónoma, o que não impede - pelo contrário - a apreensão de um todo. Comecemos pela primeira, minimal, despojada, onde encontramos taças, tigelas e copos de resina dispostos sobre uma mesa. "‘Deserto' começou com a ideia de produzir objectos", revela o artista. "Os primeiros não me pareceram bem. Queria-os neutros e genéricos. Depois consegui que ficassem com um branco mais indistinto, entre o mármore e o plástico. Isso era fundamental. Precisavam de ser completamente abstractos. Sem história, sem eloquência. Queria que existissem pela sua forma".

Se a obliteração da narrativa foi o ponto de partida - e assim tem sido nesta obra - a pintura foi um ponto de chegada. "Quando acabei esta peça, pensei no ‘Paisagem com Diógenes', do Poussin. Vemos o filósofo, depois de abandonar a vida mundana, a segurar uma taça e a olhar um rapaz que bebe água do rio pelas mãos. Nesse momento, percebe que até ao objecto pode renunciar".

As taças e os copos da sala seguinte, por outro lado, parecem revelar as marcas do tempo, possuir valor histórico, de culto. "São feitos de bronze a partir de objectos existentes no quotidiano. Depois da criação dos moldes e da fundição, as patines foram feitas uma a uma. Podiam ser peças encontradas em escavações romanas, tem esse lado de objecto encontrado. Como se tivessem passado pelo tempo, pelos sedimentos da História". E a encenação museológica, com as vitrinas e a iluminação enfatiza o artifício.

Os objectos de resina e bronze partilham, entretanto, o espaço com figuras de recorte humano criadas a partir de "imagens históricas" (num caso, como no outro, prevalece a lógica do "ready-made"). Na primeira sala, um hominídeo, suspenso na cadeira evolutiva, repousa de costas para a mesa de madeira, indiferente às taças, como se contemplasse o exterior do pavilhão. Na segunda, uma escultura de um mendigo, inspirada numa fotografia do último sobrevivente da tribo americana Ishi, detém-se de pé, desamparada face à cultura material simbolizada pelos tesouros guardados nas vitrinas.

Metamorfose e repetição

"Deserto" começou com a vontade fazer objectos, mas o seu universo estende-se generosamente a uma série de fontes: arte egípcia e mesopotâmica (que deram origem ao hominídeo), arte romana, Duchamp, Mark Quinn, Thomas Shutte, Batia Suter, Richard Prince, Henry Darger, cultura erudita e pop. Este processo de acumulação e apropriação resultou, também, na criação das imagens de borboletas de tons de azul, expostas nas paredes da terceira sala (os animais têm sido um motivo recorrente). "Comecei a fotografar as que tinha e a digitalizar imagens de livros. Depois tive a colaboração do designer João Brandão. Recortámo-las dos fundos, fizemos jogos de simetria, alterámos as formas". Da selecção e de um rigoroso de trabalho de manipulação digital, ficaram 10 borboletas que, conforme a distância de olhar, insinuam a presença de seres em devir, metamorfoses, elementos perturbadores que contaminam a estabilidade das formas. "Reforçamos alguma coisas que já lá estavam. Olhos, bocas, narizes e até crânios. Todas têm uma simetria perfeita, acabam por gerar rostos. E remetem para a arte decorativa, para os azulejos, a cerâmica chinesa, a arte islâmica". De novo, descobre-se a presença de uma figura, esculpida em bronze, sentada sobre um plinto. "É um escriba sem mãos que olha para as borboletas", esclarece. Impedido de inscrever as leis do homem e as palavras de Deus, resta-lhe contemplar, talvez, ver melhor

Na última sala, somos confrontados com um exército de esculturas de bronze, monges esqueléticos de pernas cruzadas, que Miguel Branco construiu a partir de um Buda paquistanês do século IV. Todos se repetem e ao mesmo tempo exibem pequenas diferenças: os braços mais alongados, as vísceras de fora, os ossos a romper a carne. "Essa foi lógica de produção. Nascem todas de uma escultura já existente, do mesmo molde, como transformações dessa escultura, clonagens diferenciadas". E não contam histórias, lembra o artista. "São muitos abstractas, sobretudo quando as olhamos de lado. Têm uma presença física na vertical". São também as únicas figuras que restam na sala e irrompem de plintos com alturas distintas. "Essa forma de expor, em coluna, veio da minha leitura de ‘Estranhamento do Mundo', de Peter Sloterdijk. Há uma passagem sobre o exílio dos monges anacoretas que me interessou como acto poético e radical. Estes homens dedicavam-se a uma vida de total isolamento e colocavam-se no deserto sobre colunas de cinco, dez, vinte metros. Existe uma espécie de dimensão espectacular nessa espiritualidade, nesse género de renúncia à vida material, mundana. Num estado de transmutação, num estado de vigília, os homens transformavam-se em homens divinos".

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