Música para dois gajos (e mais alguns)

Foto
Os Dead Combo não se fecharam numa concha. Sobretudo quando depois de lançarem o desafio a Marc Ribot (homem cuja guitarra pode ser encontrada em discos de Tom Waits e John Zorn) o homem disse que sim

“Lisboa Mulata” é o disco africano dos Dead Combo. Mas na mesma medida em que Lisboa é uma cidade africana. Depois de despistarem a orquestra de caveiras, dizem que voltaram a ser apenas os dois. Ainda que tenham escancarado as portas para Marc Ribot e Camané

Lisboa, Setembro de 2011, Rua da Bica de Duarte Belo. Está um calor fora de época e o bar em que entramos não se abre com as portas de par em par. Tó Trips e Pedro Gonçalves não vestem o habitual traje de cangalheiros, não é um copo de salsaparrilha que está em cima da mesa e a emblemática cartola que costuma pender sobre os olhos de Tó Trips está descansadamente esquecida a dois metros da mesa - só para o caso de alguma máquina fotográfica exigir documentar o momento. Esperamos até meio do primeiro parágrafo para introduzir a palavra "western", vocábulo que por estes dias enche de urticária os dois Dead Combo, uma vez que se comporta como uma descrição do grupo mais rápida do que a própria sombra. Quando a ouvimos da boca do contrabaixista, a palavra é cuspida com um semi-desdém - carrega tanto de verdade quanto coxeia de incompletude.

A culpa, em parte, foi deles. Outra parte, minoritária, coube a Edgar Pêra, que estendeu imaginariamente em cima da mesa roupas e cartolas, e ajudou a construir a imagem de um mistério circunspecto que calha bem aos cowboys sofridos e emocionalmente vergastados - povoadores de cada sonho húmido de Clint Eastwood. Mas a música dos Dead Combo convoca tanto a violenta e desoladora paisagem americana quanto as agrestes planícies alentejanas, tão depressa tresanda a Tom Waits ou Ry Cooder como activa memórias de Chavela Vargas, Cesária Évora ou Carlos Paredes. No caso do novo "Lisboa Mulata" - não é preciso a escolaridade obrigatória para percebê-lo -, há um gingar que desde logo anuncia uma nova migração, mais intencional, para terras onde o sol arde mais na pele.

Durante anos, dizem-nos, andaram a subir a palco e a anunciar que tinham partido de Lisboa, mas nunca denunciaram essa origem no título de um disco. Chegou a hora. Agora que o fazem, "Lisboa Mulata" informa-nos desde logo que os Dead Combo vivem numa cidade em que África não pediu licença para entrar. Mas esta Lisboa mulata não é mulata apenas porque se transformou na última década e porque há dois anos uma viagem ao Brasil os colocou frente a uma série de bandas africanas. Na altura, de ouvidos esticados na direcção daquelas notas, fez-lhes sentido: "A malta devia fazer umas coisas com este ambiente". Mas não, não é mulata só por isso.

Mulata de Lisboa

Lisboa, 1953, Avenida João XXI. José Duarte Costa, depois de sorver todo o flamenco que havia nas mãos calejadas do seu professor no conservatório, começa ele mesmo a dar aulas em Lisboa. A Escola de Guitarra Duarte Costa rapidamente se torna uma referência, mas a escassez de lojas de instrumentos leva o mestre a dedicar-se também à fabricação privada de guitarras clássicas adequadas a iniciados e concertistas. Às primeiras, pequeninas a pensar nos curtos braços dos aprendizes, Duarte Costa chamou Mulata. Pedro Gonçalves chama-lhe "uma guitarra clássica encolhida". "Era para os putos mais pequenos e tem um som muito fixe", acrescenta Tó Trips, que recebeu o empréstimo da estrela de "Lisboa Mulata" directamente da mãe de Pedro.

Antes disto, a última vez que tínhamos ouvido falar dos Dead Combo, andavam eles a ser perseguidos pela Royal Orquestra das Caveiras, gente munida de piano, sopros e bateria. Agora, quiseram voltar a ser os dois no centro de tudo. Daí que tenham escolhido ser fotografados para a capa de "Lisboa Mulata" olhando a cidade no meio do Tejo, num pequeno ilhéu de pedra esfarelada. Olham-na como se lhe jurassem fidelidade ao som das encruzilhadas culturais das suas ruas, e vincam a opção por uma vida artística isolada, a dois. O objectivo era, pois, que o álbum soasse mais cru. "Houve montes de temas que gravámos os dois ao mesmo tempo. É uma coisa que já não fazíamos desde o primeiro disco" - Pedro a fazer as contas.

A decisão foi também facilitada pelas confissões que foram recolhendo junto de muita gente que fazia questão de erguer uma barricada e colocar-se de um dos lados, incitando à aniquilação do outro: entre Dead Combo a dois e Dead Combo com orquestra, vida aos primeiros, reforma compulsiva aos segundos. Mas a questão, por muito que coincidisse com uma vontade de Tó Trips e Pedro Gonçalves, implicava enfrentar olhos nos olhos e mão no coldre um medo paralisante: o da não repetição. "Dois gajos, duas cabeças a pensar - há muitas ideias mas não são assim tantas", admite o contrabaixista. Ou enunciado de outra forma: "O que é que um gajo vai fazer?". Tudo menos ser como os Ramones. "Não tem mal nenhum, até gosto bastante dos Ramones", ressalva Tó Trips, "mas um gajo ouve um disco e já ouviu dois ou três". Foi nessa altura que África surgiu no horizonte e assumiram oficialmente a repulsa pela palavra "western".

Até porque bem vistas as coisas, o western dos Dead Combo é tão fake como a sua África. É como se fossem levados a um fotógrafo de família que puxa de vários cenários possíveis e enxovalhados para colocar em fundo (a praia deserta, o pôr-do-sol perfeito, as vistas de Paris). Nada daquilo, sabemo-lo, é real. A não ser as duas figuras em primeiro plano, que se passeiam pelos cenários. Quer isto dizer que lá por Tó Trips ser um curioso capaz de se maravilhar com o movimento da mão de Anna Calvi que faz a guitarra soar como uma harpa, que lá por ter comprado uma "História da Guitarra Africana" no Museu de Etnologia - "malta a tocar guitarra com uma corda, pessoal de Marrocos a misturar Jimi Hendrix com cenas africanas" -, quando alguém lhes sugeriu chamar uns músicos africanos para ajudar em "Lisboa Mulata" o "não" era a única resposta possível. "A malta grama é subverter a coisa", diz Pedro Gonçalves. "Fazemos nós para resultar noutra coisa". Música africana já "há quem faça muito bem", acrescenta Tó Trips. "E não somos nós".

Essa ideia de subversão abriga igualmente a participação de Camané no disco. Antes tinham gravado juntos uma desaceleração de "O Vendaval", cantada originalmente por Tony de Matos. Agora a proposta dirigida ao fadista foi a de dar voz a um texto escrito por Sérgio Godinho. Mas em vez de cantar, Camané fez-se diseur. Como Pedro tocou com Godinho há alguns anos, bastou um telefonema e a escrita arrancou. Como Tó Trips foi colega de tropa de Camané, um segundo telefonema foi suficiente para convocar o declamador.

Uma marcha inexistente

Apesar deste regresso à casa de partida, os Dead Combo não se fecharam, portanto, numa concha. Sobretudo quando depois de lançarem o desafio a Marc Ribot (homem cuja guitarra pode ser encontrada em discos de Tom Waits e John Zorn) o homem disse que sim, que teria o maior prazer em gravar com eles. O contacto já vinha de trás, Pedro Gonçalves já lhe enviara todos os discos, e havendo álbum novo a ocasião era perfeita. Ribot ainda ponderou enfiar-se no avião e gravar em Lisboa, tocando de facto com os Dead Combo, mas depois o prato da balança pendeu para o seu estúdio caseiro em Nova Iorque: entre poder trazer duas guitarras consigo e optar entre mais de 30, algumas delas um enigma absoluto, preferiu rodear-se do seu arsenal. O resultado, ouvido em reverência silenciosa, pode até ser acompanhado do som de Tó Trips a engolir em seco: "Quando ouvi o Marc Ribot nas gravações o disco realmente senti a diferença entre um gajo que toca mesmo bem e um gajo como eu que toca alguma coisita. Não é as notas que ele vai buscar - é a elegância com que as toca".

E até quando a guitarra começa a perder a calma em "Marchinha do Santo António Descambada", progressivamente mais irritada e virulenta, não abandona a elegância. Nada que o briefing dado por Pedro não autorizasse plenamente. Recordação oral do briefing: "Isto é como se fosse uma marcha de Santo António, mas é o refrão de uma marcha inexistente, repetido até à exaustão. Imagina estares a tocar esta merda há dois dias e só queres que esta merda acabe". Oiça-se novamente a música. Está lá tudo. E o entusiasmo dos dois com a participação de Ribot é tal que dizem que ele se portou como um membro da banda, não pensam nele como convidado. "Ele integra-se nas coisas", defende Pedro, como se alguém tentasse lembrá-lo que Ribot não pertence, em rigor, aos Dead Combo. "Não é aquele gajo que fica a sobrevoar ou a flutuar em cima da música, ele entra dentro da música e fica contigo". Isto, bonito, é quase amor.

Para "Lisboa Mulata", os Dead Combo acabaram por aproveitar dois temas vindos de uma outra colaboração. "Esse Olhar que Era Só Teu", projecto que os juntou ao realizador Bruno de Almeida, apresentado há um ano em Vila do Conde, no qual tocavam por cima de imagens de Amália Rodrigues. Mas não se trata obviamente de fado, uma vez que o realizador "baixou o pitch daquilo e soava um bocado Dead Combo, com cenas mais arrastadas e um bocado negras", recorda Tó Trips. A próxima parceria também promete.

Guimarães, 2012, algures. A vertente bailarico dos Dead Combo, que os dois defendem existir desde o primeiro momento, poderá ser comprovada num espectáculo que os unirá ao grupo de teatro vagamente circense Circolando e a um rancho folclórico. Ainda não sabem o que vai sair dali, mas têm a certeza de que trarão algo com eles. Nem que seja uns coletes vermelhos.

Sugerir correcção
Comentar