As canções de amor já não são o que eram

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Christophe Honoré só volta ao cinema em 2013: no próximo ano, estará ocupado com encenações para teatro e ópera RUI GAUDÊNCIO/PÚBLICO

Quatro anos depois de “As Canções de Amor”, Christophe Honoré regressa ao musical com “Os Bem-Amados”, saga romântica que atravessa 40 anos da história de França pelos olhos de uma mulher e da sua filha. Um filme que o realizador diz ser sobre o amor - e sobre o amor ao cinema

A culpa é de um par de sapatos de salto alto da marca Roger Vivier, que Ludivine Sagnier rouba em 1964 da sapataria onde trabalha e mudam radicalmente o seu destino. Com o correr dos anos, Madeleine adquire os traços de Catherine Deneuve e tem uma filha do seu casamento com um médico checo - a própria filha da actriz, Chiara Mastroianni. Percorrendo 40 anos da vida francesa, "Os Bem-Amados" "tenta captar qualquer coisa da sociedade e, simultaneamente, da mudança de épocas". "Era aquilo que me interessava verdadeiramente", diz ao Ípsilon o autor do filme, o romancista e cineasta francês Christophe Honoré, 41 anos, autor de "Em Paris" (2006) e "As Canções de Amor" (2007).

Honoré assina o seu filme mais ambicioso com esta saga familiar que acompanha 40 anos de vidas e amores de Madeleine e daqueles que a rodeiam. Trata-se de um musical pouco ortodoxo, à imagem de "As Canções de Amor", de novo com canções do cúmplice Alex Beaupain que permitem "aceder a um lirismo quotidiano". Honoré define "Os Bem-Amados" como um filme sobre o amor "que fala imenso do amor do cinema", e um filme sobre a "aprendizagem do amor" que inverte o habitual lugar-comum "do tempo que passa e do amor que desaparece". "Aqui é exactamente o contrário, mais o tempo passa e mais o amor se instala. Começa de um modo muito frívolo, muito alegre, para, à medida que nos aproximamos do presente, instalar qualquer coisa de mais melancólico e, pelo fim, francamente melodramático", explica o cineasta, que esteve 24 horas em Lisboa para acompanhar a antestreia de "Os Bem-Amados", e falou ao Ipsilon da sua maneira de ver e fazer cinema, em diálogo constante com os realizadores e os filmes que vieram antes.

"Os Bem-Amados" é um filme que tem muito de literário. Poderia ter sido um romance em vez de um filme?

Sim. Aliás, sou romancista antes de ser cineasta, e é verdade que o filme é um romance falhado (sorriso). Depois de "Não Minha Filha, Tu Não Vais Dançar" (2009), tinha previsto tirar dois anos para regressar à escrita de romances; tinha feito demasiados filmes de seguida e não tinha escrito muito. Não consegui, porque, assim que me punha a escrever, começava a anotar cenas pequenas, a pensar no argumento do próximo filme - e é aí que se vê o lado vampirizante da actividade cinematográfica, que provoca o imaginário mais depressa do que a literatura. A literatura é um trabalho muito lento, muito difícil, em que a ficção acaba por surgir de um trabalho muito longo de gestação, ao passo que escrevemos quatro linhas de diálogo e de repente há uma força de encarnação que toma conta e diz "é preciso fazer isto, já". Há uma rapidez, uma velocidade, à qual é difícil resistir. E estou de acordo consigo: é um filme que tem algo de romanesco no sentido literário da palavra, porque não consegui escrever o meu romance e vinguei-me na estrutura do filme (sorrisos). É uma estrutura muito mais literária do que cinematográfica - funciona por ciclos, parece à beira de acabar e relança-se com outra personagem, há uma relação com o tempo que passa, um trabalho sobre a ideia da memória...

E decidiu fazer de novo um musical.

O que não ajuda nada... Enquanto escrevia o argumento, ia enviando ao Alex Beaupain páginas inteiras, dizendo que se calhar preferia que as personagens cantassem as emoções, seria mais correcto. Em França, assim que se metem canções num filme vão logo buscar o Jacques Demy [autor de "Os Chapéus de Chuva de Cherburgo"], o que é evidentemente muito elogioso para mim, mas um pouco louco, porque o seu cinema é muito diferente do meu. O lugar da canção é muito diferente. Demy faz diálogo cantado, enquanto nos meus filmes é como se as personagens num palco viessem à boca de cena desvendar os seus sentimentos mais íntimos, como se fosse um monólogo interior.

Poderíamos falar, se calhar, mais de Vincente Minnelli?

Sim, sim. Concordo. Aliás Demy era muito fã de Minnelli... Mas quando me falam de Demy em relação a este filme, eu digo "vejam antes os filmes de Max Ophüls": "La Ronde", "Madame de"... São filmes cuja estrutura está mais próxima do meu, e não é por acaso que Demy dedicou um dos seus filmes, creio que "Lola", a Ophüls. Tal como François Truffaut foi muito influenciado por Jean Renoir e por Alfred Hitchcock, como Renoir foi muito influenciado por Josef von Sternberg... É precisamente isso que me fascina no cinema: é uma obra colectiva. Não no sentido de uma equipa num "plateau" de rodagem, mas no sentido de participar numa memória colectiva do cinema. Cada cineasta acaba por pegar sempre nas mesmas personagens e no mesmo argumento, todos sabemos bem que qualquer filme se pode reduzir a uma das dez histórias que em tempos alguém inventariou... A minha admiração por outros cineastas deu-me a coragem e a tenacidade e o desejo de fazer filmes. Infelizmente, creio que actualmente existe uma depreciação e uma desconsideração do cinema de autor cinéfilo. Nos festivais, elevam-se muito os filmes "do momento", e há obras que se descartam sem perceber o seu trabalho de reflexão e de inscrição numa linhagem de género ou num determinado tipo de cinema. E é verdade que um filme como "Os Bem-Amados" se inscreve completamente nessa linhagem de cinema de autor cinéfilo, talvez até de mais para algumas pessoas.

Tal como toda a sua filmografia.

Sim, sim, aliás sempre assumi isso. E como vejo que as pessoas da minha geração em França o fazem muito pouco, talvez eu o faça de modo mais ostensivo (risos). Fico sempre muito surpreendido quando leio entrevistas de cineastas que parecem ter orgulho em anunciar que nunca viram um filme de Carl Theodor Dreyer, e que parecem querer reinventar o cinema, numa espécie de imaculada conceição... Isso aterroriza-me porque é o inverso do modo como o cinema deve ser fabricado.

Mas também já deve ser um pouco cansativo ouvir as pessoas falarem sempre da Nouvelle Vague a propósito dos seus filmes...

Mas ao mesmo tempo compreendo, porque mesmo que haja muitos filmes franceses contemporâneos de que gosto muito, para mim a "idade de ouro" do cinema francês foi a Nouvelle Vague. É incrível imaginar que no mesmo ano estreavam filmes novos de Godard, Truffaut, Resnais, Varda, Demy... havia uma invenção, era um momento em que o cinema francês era ao mesmo tempo a vanguarda, porque reinventava uma forma de fazer cinema, e um cinema muito popular que atraía os espectadores às salas. Não me vejo como herdeiro disso, esses realizadores pertencem mais à geração dos meus avós. Acontece apenas que o cinema francês é mais interessante, para mim, quando tem uma relação muito forte com a literatura, com os actores - porque esquecemos que a Nouvelle Vague também correspondeu à chegada de muitos actores novos incríveis - e sobretudo com o cinema. A definição de Truffaut era que um filme devia apresentar ao mesmo tempo uma visão do mundo e uma visão do cinema. E esses são princípios aos quais obedeço quando rodo os meus filmes.

"Os Bem-Amados" é um filme muito mais melancólico e adulto do que os anteriores. É para si um ponto de chegada ou um recomeço?

Digamos que cresci e já não me apetece estar a falar sempre dos mesmos assuntos. Há de facto uma espécie de entrada na idade adulta, e é verdade que "Os Bem-Amados" é um pouco um fim de ciclo. Neste momento, não faço a mínima ideia do que vai ser o próximo filme, o que nunca me costuma acontecer - um filme dá-me sempre vontade de partir para o seguinte e este não. Gosto muito disso, assim posso fazer outra coisa muito diferente, filmar um argumento de outra pessoa. Dirigi oito filmes em apenas dez anos, tive um ritmo muito rápido sobretudo quando comparado com outros cineastas. Vou encenar teatro para o Festival de Avignon no ano que vem, a seguir vou encenar uma ópera, isso vai permitir-me fazer uma pequena pausa e voltar ao cinema apenas em 2013. Mas vou ter de arranjar o que fazer porque fico muito angustiado com a ideia de passar os dias no sofá sem fazer nada...


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