Reportagem: Uma casa para quem foge à guerra e à violência

Quase todos os anos pedem asilo a Portugal entre 100 a 200 pessoas
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Quase todos os anos pedem asilo a Portugal entre 100 a 200 pessoas Foto: Rita Baleia
No centro de acolhimento da Bobadela são instalados todos os que chegam à fronteira e pedem asilo
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No centro de acolhimento da Bobadela são instalados todos os que chegam à fronteira e pedem asilo Foto: Rita Baleia
O orçamento da organização ronda os 800 mil euros por ano
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O orçamento da organização ronda os 800 mil euros por ano Foto: Rita Baleia
Teresa Tito de Morais
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Teresa Tito de Morais Foto: Rita Baleia

Chukwuemeka acabou de chegar, saiu da Nigéria com medo de ser assassinado. Nasri é palestiniano mas não conhece a Palestina, era ainda bebé quando os pais fugiram para a Síria, há 63 anos. Foi para eles, e tantos como eles, que o Conselho Português para os Refugiados foi criado, faz hoje 20 anos.

Em cima da secretária há uma placa de madeira que tem o seu nome esculpido: Nasri. Ele é a primeira pessoa que se vê ao passar a porta, é dele a voz que atende o telefone. Nasri é um sorriso que quase nunca se desfaz. Talvez poucos empregos lhe dessem tanto prazer como este em que é recepcionista no Centro de Acolhimento para Refugiados da Bobadela, a 15 quilómetros de Lisboa. Aqui recebe todos os que, como ele, um dia pediram asilo a Portugal.

Entre um telefonema que chega e um recado, Nasri, “só Nasri”, vai contando a sua história. É refugiado há 63 anos, tem 64. Os pais levaram-no ainda ao colo para a Síria durante a guerra entre judeus e árabes de 1947, pouco antes da formação do Estado de Israel. Nunca foi outra coisa senão refugiado, e em 2005 até da Síria teve de partir, num barco de mercadorias rumo a Portugal.

A cidade onde nasceu, Safad, é hoje território israelita. Acabou por fugir da Síria por “problemas políticos” de que prefere não falar. Seis anos depois de ter chegado a Portugal, olha “com tristeza” para a repressão das autoridades de Damasco. “Mas não é uma tristeza de hoje, é de há 40 anos.”

Nasri foi recebido no centro de acolhimento da Bobadela, de onde chegam da cozinha cheiros de comida de todo o mundo. E quando se lhe pergunta como foi recebido, responde: “Sabe como é recebido um bebé? Foi assim. Cheguei aqui e nasci.” Nunca teve passaporte, só os documentos que se dão aos refugiados para poderem viajar. Um dia gostava de usar esses papéis para voltar à Palestina que nunca conheceu.

Deixemo-lo atender o telefone, que voltou a tocar, e sigamos o cheiro. Na cozinha do centro de acolhimento há vários tachos no fogão, ouvem-se muitas línguas. Dois marroquinos conversam no terraço voltado para Tejo, talvez à espera que o almoço fique pronto, um miúdo iraquiano joga computador e uma menina da Guiné-Conacri, que não terá mais de dois anos, passeia de colo em colo. É o benjamim da casa e não pára de rir e acenar.

No centro de acolhimento da Bobadela são instalados todos os que chegam à fronteira e pedem asilo. Só dois ou três meses, até que se encontre uma casa ou quarto. Há famílias e miúdos sozinhos. No final de Agosto viviam aqui 55 pessoas.

À segunda-feira é dia de lavar os lençóis e as toalhas, que são entregues na lavandaria do primeiro andar, junto aos quartos onde se alinham três ou quatro camas. Quem pede asilo não fica na rua, ainda que possa nunca vir a receber o estatuto de refugiado ou a autorização de residência por razões humanitárias. Isso é questão para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) decidir mais tarde, após entrevistas e um parecer do Conselho Português para os Refugiados. Para já, o que importa é o mais urgente: tecto e comida. Há alguma roupa para quem veio sem nada e uma pequena ajuda alimentar, o passe ou um cartão de telefone. E um pijama lavado, escova de dentes e chinelos. Por vezes, quem chega não via uma cama há muito tempo.

Chukwuemeka está refastelado no sofá a ver televisão, tem 41 anos, chegou da Nigéria a 22 de Junho. Um conflito familiar fê-lo temer pela vida e um homem ajudou-o a apanhar um avião para Madrid. Não gostou que não entendessem bem o seu Inglês, e daí a Portugal foi um pulo. Diz que dormiu na rua 12 dias até ganhar coragem para entrar no SEF. “O meu pai tinha duas mulheres”, começa por explicar. “Quando morreu, a segunda mulher quis partilhar a herança mas o meu irmão mais velho recusou.” Foi esse irmão, conta, que acabou por matar a segunda mulher do pai, e então a família dela ter-se-á vingado. “Matou um irmão meu e uma irmã. Fugi para não me matarem também.”

Chukwuemeka escondeu-se na casa de um homem que conhecia, em Lagos, e pensou na América ou em Inglaterra. Mas esse homem sugeriu-lhe Alemanha, comprou o bilhete e ficou-lhe com o passaporte. Quando o primeiro avião que apanhou aterrou em Madrid, desembarcou ali mesmo. “Agora estou aflito por causa da minha mãe.”

Aulas, Internet e um lugar para crescer

“Hoje os refugiados em Portugal têm melhores condições do que há 20 anos, e isso é muito positivo”, diz a presidente do Conselho Português para os Refugiados (CPR), Teresa Tito de Morais. Talvez nem precisasse dizê-lo. Percorrem-se os corredores do centro de acolhimento e encontra-se um auditório, mesmo ao lado de um quadro que Malangatana ofereceu e veio pendurar, ele mesmo. “Êxodo involuntário”, em tons de laranja e negro, um título a condizer com que acontece nesta casa. Há também a biblioteca. “Vem aqui ler, jogar e melhorar o teu português”, diz o letreiro à porta. E duas salas de aulas, uma para informática, outra para língua portuguesa. Poder comunicar é uma necessidade tão urgente como o tacho que fumega na cozinha.

Muitas das pessoas que chegam não falam uma palavra em Português, por vezes nem Inglês ou Francês. É preciso encontrar intérpretes, encaminhá-las para aulas, dar-lhes apoio jurídico e alojamento numa fase inicial. E pôr os mais novos na escola. Tudo isto em pouco tempo. Foi a pensar nos mais novos que o CPR criou, mesmo ao lado do centro de acolhimento, o espaço “A criança”, que é creche e jardim infantil. O centro de acolhimento foi inaugurado em 2007 e isso já deu tempo de ali ver nascer mais do que um bebé. Como Fortuna, filha de um casal da Eritreia que pediu asilo a Portugal em 2008. Ou Fanta, cuja mãe só saiu dali para a ir tê-la à maternidade, a meio de Agosto.

Uma organização que cresceu depressa

No início dos anos 1990 o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) deixou de ter representação directa em Portugal e delegou as suas funções numa organização com a qual pudesse estabelecer uma parceria. Foi então que Teresa Tito de Morais, que já tinha trabalhado no ACNUR durante 14 anos, foi desafiada a criar uma organização não-governamental para o desenvolvimento que apoiasse os refugiados. Nascia o CPR, a 20 de Setembro de 1991. Fundado por um grupo de pessoas com experiência na área dos direitos humanos, entre elas António Guterres, o alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, o CPR começou por ser uma organização de duas ou três pessoas. Hoje integra mais de 40. “Inicialmente havia até um certo desconhecimento sobre estas situações”, recorda Teresa Tito de Morais.

Não lhe faltava experiência sobre o que é ter de abandonar o país e deixar tudo para trás. Filha de um dos fundadores do Partido Socialista, Manuel Tito de Morais, então exilado na Argélia, também Teresa Tito de Morais teve de fugir para a Suíça. “Houve uma repressão feroz contra os estudantes.” Em Junho de 1965, o namorado com quem viria a casar, Jaime Teixeira Mendes, estava no primeiro ano de Medicina e saiu do país, a salto. Teresa Tito de Morais também tentou fugir para a Suíça, mas acabaram por ir buscá-la ao avião por causa do seu envolvimento nas associações de estudantes. Foi presa em Caxias durante três meses, até que voltou a tentar apanhar um avião e, dessa vez, conseguiu chegar a Genebra. Casou, estudou Relações Internacionais em Lausane e só regressou a Portugal já depois da Revolução de Abril.

Primeiro trabalhou num laboratório de análises clínicas, depois começou a colaborar com o ACNUR. Até que, em finais dos anos 1980, uma crise financeira levou a organização a encerrar vários escritórios, entre os quais o de Lisboa. “Foi preciso mudar de estratégia, os escritórios mais pequenos, com menos refugiados a cargo, deveriam desaparecer a curto prazo.” Assim foi. Portugal recebia poucos pedidos de asilo, ficou decidido que as competências do ACNUR passariam para uma organização não governamental e Teresa Tito de Morais ficou encarregue de a criar. “Foi uma grande responsabilidade, mas tinha uma grande vontade de que Portugal fosse também um país de asilo e cumprisse as suas responsabilidades éticas de receber com dignidade os requerentes asilo e os refugiados.”

Hoje o CPR é a única organização que intervém junto dos refugiados em Portugal, e a inauguração do centro de acolhimento da Bobadela, em 2007, foi uma das suas principais conquistas. Já antes, em 2000, a organização tinha sido distinguida com o Prémio Direitos Humanos da Assembleia da República. Os projectos do CPR são sobretudo apoiados pelo Fundo Europeu para os Refugiados, financiado em 75 por cento pela Comissão Europeia e em 25 por cento pelo Estado português, através do Ministério da Administração Interna. “Estamos hoje numa situação financeira um pouco mais estável, mas há atrasos significativos na disponibilização dos fundos”, lamenta Teresa Tito de Morais. O orçamento da organização ronda os 800 mil euros por ano.

Pedidos de asilo chegam sobretudo de África

Quase todos os anos pedem asilo a Portugal entre 100 a 200 pessoas – em 2010 foram 160 e este ano, só até ao final de Julho, 127. Destas, 37 eram menores. Nove crianças chegaram à fronteira sozinhas, sem pais nem ninguém para as acolher.

Não faltam razões para fugir à guerra no Afeganistão, à repressão no Irão, aos conflitos em vários países africanos. Este ano os pedidos de asilo vieram de 33 países, mas sobretudo de pessoas da Guiné-Conacri (20) e Costa do Marfim (12). E tal como em anos anteriores, houve mais homens do que mulheres a pedir ajuda.

Somália, República Democrática do Congo, Guiné-Bissau, Nigéria ou Serra Leoa são outros países africanos de onde chegaram pedidos de asilo a Portugal nos primeiros meses deste ano. Também houve três pessoas do Irão e outras tantas do Iraque e de Marrocos. E da Colômbia ou da Rússia vieram quatro. Com ou sem documentos, de barco ou avião, muitas vezes depois de viagens atribuladas e de pagar fortunas a quem as ajudou a fugir, chegaram ao território português.

Ao CPR não falta, portanto, o que fazer. Como alguns dos refugiados são menores, e muitos estão sozinhos, está a ser criado um centro específico para os mais novos, com capacidade para 14 crianças, que deverá ser inaugurado até Dezembro. “Temos recebido cerca de 10 menores não acompanhados por ano, entre os 12 e os 18 anos”, conta Teresa Tito de Morais. Até agora têm ficado alojados no centro da Bobadela, mas em breve passarão a ser recebidos num espaço mais adequado, uma casa em Lisboa que está a ser recuperada e “será o próximo desafio do CPR”.

A Portugal têm chegado também cerca de 30 pessoas por ano ao abrigo do Programa de Reinstalação de Refugiados estabelecido em 2007 entre o Governo português e o alto-comissário da ONU para os refugiados. Será pouco, sobretudo tendo em conta que, segundo o ACNUR, existiam no início de 2011 pelo menos 10,4 milhões de refugiados em todo o mundo, para além de 4,7 milhões de palestinianos que vivem em 60 campos no Médio Oriente e cerca de 27 milhões de deslocados internos. “Mas é um gesto”, diz Teresa Tito de Morais. A crise humanitária na Somália, onde a pior seca dos últimos 60 anos está a pôr 12 milhões de pessoas em risco, ou o conflito na Líbia, têm gerado novos fluxos de refugiados. Da Somália chegaram este ano 10 requerentes de asilo e da Líbia veio uma pessoa. Portugal já manifestou a disponibilidade de receber alguns líbios que fugiram à guerra e atravessaram a fronteira para a Tunísia, “mas o processo está a ser muito lento”, diz Teresa Tito de Morais. “As situações de emergência não se compadecem com atrasos.”

O desafio de encontrar trabalho

Nem todos os pedidos de asilo recebem resposta positiva. Grande parte das pessoas vê recusado o estatuto de refugiado ou a autorização de residência por razões humanitárias. Depois, ou essas pessoas conseguem um contrato de trabalho e a autorização de residência ao abrigo da lei da imigração ou ficam ilegais. “Muitas não sentem grande confiança para regressar aos países de origem. Algumas ficam ilegais e isso significa que podem ser apanhadas e postas na fronteira”, explica Teresa Tito de Morais. “Cerca de 80 por cento estão numa situação muito precária.” O ideal é encontrarem trabalho para se tornarem independentes, e esse é o principal objectivo do gabinete de inserção profissional que funciona nas instalações do CPR. É lá que trabalha Filipa Silvestre, de 24 anos, que diz ter pela frente “um grande desafio”.

Encontrar um trabalho torna-se mais difícil para quem está ainda a conhecer o país e a língua, e por vezes nem umas palavras em Inglês, Francês ou Castelhano conseguem ajudar. Filipa Vilhena não esquecerá o dia em que tentava explicar a um rapaz do Sri Lanka como deveria apanhar o autocarro para as aulas de Português. Ele acenava a cabeça para a esquerda e para a direita, o que para ela significava que não estava a perceber. Mas no Sri Lanka aquele gesto quer dizer “sim”. Pouco depois, de sorriso orelha a orelha, ele voltou com o cartão da escola e o cartão de contribuinte na mão. “Tudo acaba sempre por se resolver.”

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