Da capa da Vogue a Dachau, com passagem pela lente e pela cama de Man Ray

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Exposição no Peabody Essex Museum mostra o antigo modelo e fotógrafa como peça fundamental para a consolidação do movimento surrealista. Uma centena de trabalhos seus foram também recentemente vistos na Corunha.

Flash!

A imagem mostra uma mulher tomando banho numa casa da Prinzenregentplatz de Munique. Na borda da banheira, encostado aos azulejos, vê-se um retrato de Adolf Hitler. Estamos a 30 de Abril de 1945 e a II Guerra Mundial vai chegando ao fim. A 45.ª Divisão de Infantaria norte-americana entrara em Munique depois de ter libertado o campo de concentração de Dachau. Nessa noite, seria anunciado que o Führer se tinha suicidado no bunker de Berlim, acossado pelo Exército soviético.

Flash!

A mulher que aparece na foto de David E. Sherman, correspondente da revista Life junto das tropas norte-americanas, esfrega as costas depois de ter tirado o uniforme e as botas enlameadas. Chama-se Lee Miller, é norte-americana e cobre o conflito para a Vogue. É exactamente a mesma Lee Miller que, 18 anos antes, estava na capa da glamorosa revista e que, depois, foi também assistente, modelo e amante de Man Ray, a estrela do movimento surrealista. Agora, na fotografia de Sherman, lava-se na mesmíssima banheira dentro da qual Adolf Hitler há-de ter imaginado a conquista do mundo e a hegemonia ariana.

Lee Miller, pois: aquela que fotografou e foi pintada por Pablo Picasso, que foi filmada por Jean Cocteau (Le sang d"un poète, 1930) e fotografada por Man Ray, estava, então, em (quase) toda a parte. Agora está numa exposição do Peabody Essex Museum, em Salem, no Massachusetts. Man Ray-Lee Miller, Partners in Surrealism tenta demonstrar que a loura esguia, de longo pescoço e cabelo curto, foi muito mais do que apenas uma mulher bela e inspiradora.

Romance tempestuoso

"Historicamente, Miller é descrita como uma das musas de Man Ray, mas o tórrido e breve romance dos dois foi, de facto, uma fonte fundamental de inspiração mútua, da qual resultaram alguns dos mais poderosos trabalhos de ambos", lê-se no catálogo.

A exposição mostra 76 fotografias, pinturas, esculturas e cartas que resultaram dos três anos de relação entre Lee e Man Ray, mas também obras de alguns dos artistas que frequentavam o círculo íntimo do casal, de Picasso a Le Corbusier. De fora ficaram os trabalhos que a fotógrafa produziu após o fim do tempestuoso romance, nomeadamente os retratos feitos a celebridades como Miró, Man Ray, Charlie Chaplin e Tàpies, as cenas do deserto egípcio e o trabalho como correspondente de guerra, que a converteu, a par de Margaret Bourke-White, numa pioneira daquilo a que hoje chamamos fotojornalismo.

Uma parte desse trabalho pôde ser vista recentemente aqui mais perto de nós: a exposição Legendary Lee Miller esteve até dia 11 na Fundacion Caixa Galicia, na Corunha, mostrando, entre outras, algumas das mais impressionantes imagens por ela captadas nos campos de concentração de Buchenwald e Duchau - de cujos mortais, horríveis odores a fotógrafa tenta libertar-se na banheira de Adolf Hitler.

Para entender tudo, a história toda, é todavia necessário deter o tempo, deixando Lee congelada tal como ficou na fotografia de Sherman, desarmada de qualquer glamour, arqueando as sobrancelhas e esfregando as costas, e recuar alguns anos. Recuar, por exemplo, a Julho de 1929 e ao bar próximo do estúdio de Man Ray em Paris. Lee Miller está sentada, tem 22 anos, é loira e toma um Pernod.

Flash!

Dois anos antes, em 1927, Lee tinha sido capa da Vogue, corolário de vários trabalhos que fez como manequim, seguindo os conselhos do dono do grupo Condé Nest. Posou, então, para alguns dos mais importantes fotógrafos de moda da época - Edward Steichen, Hoyningen-Huene, Arnold Genthe - e percebeu que o seu lugar era do outro lado da câmara. Essa perspectiva, porém, não lhe era estranha, já que conheceu ainda muito nova os rudimentos da fotografia, aprendidos com o pai, Theodore Miller, que, aliás, também a fotografou, nua, para um díptico belíssimo em tons sépia.

Lee pretendia, pois, passar para trás da câmara fotográfica, mas não estava disposta a aprender com qualquer um. Quando, naquela tarde de Julho de 1929, chegou ao estúdio de Man Ray, levava uma carta de apresentação do fotógrafo Alfred Stieglitz (um dos pioneiros da fotografia artística, mas já lá vamos) e a firme determinação de aprender com o mestre surrealista. Bateu, porém, com o nariz na porta: disseram-lhe que Man Ray tinha partido de férias.

Tentando decidir qual havia de ser o passo seguinte, Lee entrou no tal bar. E daí a nada, como se o destino tivesse decidido agir por conta própria, Man Ray entrou no mesmo bar. A rapariga acercou-se do homem moreno e baixote e apresentou-se: "Chamo-me Lee Miller e sou a sua nova estagiária." "Não tenho estagiários", terá respondido Man Ray. Partiram juntos, porém, para as férias em Biarritz.

Em 1929, Man Ray já tinha ateado o incêndio dadá em Nova Iorque, já fotografara Hemingway, Breton, Joyce, Pound, Matisse, Stein e Picabia, Cocteau e Tzara, e já produzira algumas das suas imagens mais icónicas e surrealistas, nomeadamente aquelas em que, como no célebre Violon d"Ingres, figurava o corpo voluptuoso, um pouco flácido e quase febril de Kiki de Montparnasse. Lee Miller, entre o estúdio, a câmara escura e a cama do artista, inaugurava um novo paradigma estético. Era alta, esguia, loura, elegante e tinha muito pouco a ver com Kiki ou Denise Poiret, excepto, talvez, a docilidade diante da câmara. Mas Lee estava também disposta a meter as mãos nos líquidos da revelação, na tina dos fixadores, e a trabalhar horas a fio num cubículo minúsculo e sem luz.

Foi aí, aliás, que a aprendiza abriu uma nova porta à arte de Man Ray. Lee estava a trabalhar quando sentiu alguma coisa no pé, talvez um rato. Num impulso, acendeu a luz da câmara escura e só depois lhe ocorreu que talvez tivesse arruinado os negativos. O resultado, porém, foram fotografias com um estranho halo, por efeito da solarização involuntária - que Degas, em 1881, e Stieglitz, helás, já tinham utilizado. Ray, que antes havia experimentado os retratos em negativo e aquilo a que chamou "rayografias", passou também a utilizar a solarização nas suas imagens, não só num dos mais icónicos retratos de Lee Miller - aparece sublinhada por um brilho de aço polido -, mas também em auto-retratos e em trabalhos com Suzy Solidor, Natacha, Meret Oppenheim, André Breton e Georges Braque, entre outros.

Fricções e rupturas

Tudo parecia, pois, correr como sobre nuvens: Ray fotografava Miller, o seu corpo longilíneo e belo, e ela empenhava-se em captar o lado surrealista da realidade: uma parada de ratos sentados numa ripa, um trio de vacas num carrossel, curiosos reflexos. Algumas das imagens atribuídas a Ray terão mesmo sido produzidas pela musa, graças à estreita cumplicidade que mantinham. Mas, depois, subitamente, começaram as disputas.

A primeira fricção surgiu por causa de uma fotografia do longo pescoço de Lee, intitulada Neck. Ray desprezou-a e atirou os negativos ao lixo. Ela recuperou-os e reivindicou a autoria da imagem. Discutiram e Lee abandonou a casa. Depois chegaram os ciúmes, as inseguranças e os dramas de um casal que cultivava hábitos bastante liberais. "Tive apenas o receio, nestes últimos meses, de que as tuas aventuras pudessem amolecer os teus sentimentos por mim, enquanto os meus não paravam de crescer", escreveu em 1931 Man Ray, que era 17 anos mais velho do que Lee.

Alguns meses depois, já em 1932, separaram-se definitivamente e Lee Miller regressou a Nova Iorque, onde prosseguiu a carreira de fotógrafa. Man Ray ficou em Paris imaginando objectos surrealistas a partir de imagens de Lee: os lábios dela flutuando no céu nublado, como um zepelim à deriva, ou o célebre Object to be destroyed, um metrónomo em cujo pêndulo foi colado um olho de Lee, e que devia ser esmagado com um martelo - não chegou a sê-lo, porém, e está exposto no Peabody Essex Museum.

Em Nova Iorque, Lee manteve, primeiro, uma relação com Aziz Eloui Bey, um homem de negócios egípcio, com quem viajou para o país das pirâmides. Mais tarde apaixonou-se por Roland Penrose, um surrealista inglês que veio a ser o principal divulgador da sua obra, responsável também pela reaproximação de Lee Miller ao círculo artístico parisiense. Em 1937, a fotógrafa participava outra vez nos desbragados piqueniques na ilha de Santa Margarida, no Sena, com Paul Éluard, Man Ray e algumas moças seminuas. Paris era uma festa, a guerra não tinha sequer começado e o Holocausto de Dachau e Buchenwald era ainda um espectro que vinha avançando aos poucos pelo céu da Europa.

Quando o conflito, enfim, começou, Man Ray fugiu para Los Angeles. Lee Miller continuou na casa de Penrose, em Inglaterra, trabalhando para a Vogue. Fotografou os efeitos devastadores dos bombardeamentos alemães e, mais tarde, formou uma dupla com David E. Sherman, passando a acompanhar o avanço das tropas norte-americanas na Europa continental. Esteve, por isso, em Dachau e Buchenwald, mas também no cerco de St. Malo, na libertação de Paris, na batalha do Luxemburgo e da Alsácia e no encontro dos americanos e dos russos em Torgau.

Depois da guerra, casou com Penrose, mas mergulhou numa espiral de depressão e álcool, abandonando a fotografia, aparentemente incapaz de conciliar a actividade frívola como correspondente da Vogue com as cruéis memórias da guerra. Em 1975, reencontrou-se com Man Ray, na inauguração da grande exposição retrospectiva que o Institute of Contemprary Arts de Londres dedicou ao mestre surrealista. Uma fotografia mostra-os, idosos e gastos, ele numa cadeira de rodas, ela debruçada, sorrindo ambos. Ray morreu em 1976. Lee no ano seguinte, vítima de cancro. Flash!

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