Pérolas ajardinadas do Renascimento Italiano

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Se Villa Lante é o triunfo do requinte maneirista, o Parque dos Monstros de Bomarzo encarna as visões de estranheza que também iluminaram a segunda metade do Quinhentos. São dois dos mais exuberantes jardins italianos, por coincidência situados a curta distância um do outro, nos arredores de Viterbo. Luís Maio aproveitou para ir descobrir as diferenças

O Parque dos Monstros é o mais famoso dos dois. Também conhecido por Bosque Sagrado de Bomarzo, celebrizou-se como desvio, ou mesmo subversão do estilo de jardim desenvolvido em Itália, desde a segunda metade do século XV. Este figurino de Jardim à Italiana, por sua vez inspirado no sentido de ordem e nos valores estéticos da Antiguidade, foi sobretudo cultivado nas villas das famílias mais abastadas de Florença e de Roma. Destinados à contemplação, ao refúgio espiritual, ou à celebração dos prazeres dos sentidos, serviam também para ostentar o poder dos respectivos proprietários.

A partir da segunda metade do século XVI e da inflexão Maneirista, os jardins aristocráticos atingiram um novo patamar de sofisticação. Rivalizando em extensão e aparato, passaram a integrar todo um sortido de peças ornamentais, incluindo fontes, grutas e esculturas. É esta apoteose do refinamento que Villa Lante ilustra na perfeição com a sua excepcional sequência de terraços e jogos de água. A fantasia polida é tipicamente maneirista, mas não o são menos as visões de estranheza que paralelamente ganhavam corpo em Bomarzo. A proximidade das duas folias ajardinadas, ambas nas imediações de Viterbo, convida a visitá-las de uma assentada, inclusive no mesmo dia. Valerá a pena começar por Villa Lante, até para apreciar melhor a ousadia do Parque dos Monstros.

Celebração do requinte

Desenhada para impressionar, Villa Lante continua a surpreender mais de quatrocentos anos depois. Para começar não se percebe - ou melhor percebe-se, mas estranha-se -, que este verdadeiro parque de diversões renascentista tenha servido de recreio a várias gerações de eclesiásticos. Isto até ser comprada, já em meados do século XVII, pelo duque de Ippolite Lante, que lhe deu nome e em cuja família permaneceu até ser hipotecada em 1930. A conexão religiosa tem ao menos uma explicação geográfica: Villa Lante fica na periferia do burgo medieval de Bagnaia, tradicional refúgio estival do prelado de Viterbo, hoje a quatro quilómetros da cidade.

O hedonismo imanente a Villa Lante foi, em qualquer caso, denunciado ainda as obras iam a meio. Já em 1580, o entretanto canonizado arcebispo Carlo Borromeo deplorava o formidável desperdício de dinheiro encetado pelo cardeal Francesco Gambara doze anos antes. Foi ele quem encomendou os jardins e o primeiro palacete, onde supostamente esteve envolvido o prestigiado arquitecto Vignola. Gambara terá ficado tão desolado com a censura que até mandou suspender os trabalhos. Estes só haveriam de ser concluídos 30 anos depois pelo seu sobrinho, o cardeal Montalto, que entretanto acrescentou um segundo palacete ao conjunto. Não há, portanto, uma Villa Lante, mas duas iguais e equidistantes do eixo do jardim, frisando o estatuto deste último como verdadeiro centro da composição.

Os palacetes ou casinos gémeos são uma das muitas singularidades da propriedade de 22 hectares, que começou por ser uma tapada de caça. Para além do talhão ocupado pelo jardim, tudo o resto foi depois convertido num parque arborizado. Dominado por azinheiras e castanheiros centenários é hoje um espaço de lazer sobretudo frequentado pela gente que vive nas vizinhanças, enquanto os jardins propriamente ditos atraem mais os visitantes de fora. Passado o arco de entrada e a monumental fonte de Pégaso, os jardins arrancam um degrau acima, à esquerda, num amplo "parterre" quadrado centrado numa fonte de quatro tanques, rodeada de sebes ornamentais e os tais dois pavilhões gémeos ao fundo.

O "parterre" é majestoso, a fonte decorada por enormes estátuas de mouros não lhe fica atrás, mas o conjunto apura-se bastante convencional - uma espécie de ilustração do cânon do Jardim Renascentista à Italiana. A surpresa aguarda, porém, o visitante que resolve enfrentar as escadarias e descobrir outras quatro esplanadas sobrepostas, interligadas pela água que brota das alturas dos Montes Cimini. Pelo caminho há fontes, gárgulas e grutas gotejantes, a partir dos quais se encena uma multiplicidade de jogos de água, sempre com estatuária de inspiração sobrenatural pelo meio. µ

± A Fonte das Cadeias com as suas elegantes espirais esculpidas na pedra, que se diz representarem crustáceos e homenagearem o apelido Gambara, é uma das primeiras escadarias de águas alguma vez construída e uma verdadeira obra-prima. Também merece destaque a longa mesa de pedra onde a escadaria desemboca, que se acredita ter sido desenhada de modo aos cardeais manterem ao fresco da respectiva tina o vinho que serviam aos seus comensais. Pelo meio, no sobe e desce das escadarias, o visitante vai ganhando diferentes perspectivas e provavelmente revendo mais de uma vez a sua interpretação do conjunto.

A versão oficial é que a composição resume a evolução desde o mundo selvagem (as nascentes na montanha) até à civilização renascentista (a fonte no centro do "parterre" geométrico), tirando inspiração de Metamorfoses, o famoso poema narrativo em que Ovídeo mistura deliberadamente ficção e realidade. Na placa explicativa, afixada ao lado da Fonte dos Mouros, pode ler-se: "A fonte desempenha um papel decisivo como remate do percurso simbólico seguido pelas águas na Villa Lante: representa o triunfo da Razão sobre a Natureza, na medida em que só na última fonte a água repousa sob uma forma geométrica."

Elogio da extravagância

O Bosque Sagrado de Bomarzo é mais complicado de esmiuçar. Renascentista, no sentido em que retoma todo um reportório de elementos clássicos, por outro lado descola e impugna os canones dos jardins italianos da época. Não obedece a um plano racional, não dispõe de fontes triunfais, muito menos de sebes geometricamente esculpidas. Nascido para surpreender, mas não para encantar (em contraste com Villa Lante), é uma encenação do insólito ao estilo Maneirista: um teatro arborizado criado para desafiar a sensatez e eventualmente assustar os convidados aristocráticos. Hoje é sobretudo uma brincadeira de crianças e esse será o principal dilema que se coloca à sua gestão.

À entrada do bosque há uma placa que anuncia: "Tu que viajas pelo mundo à pergunta do incrível e do sublime, chega-te aqui para admirares rostos horrorosos, elefantes, leões, ursos, ogres e dragões." Logo à esquerda, depois da entrada, um pequeno trilho conduz a um Protéu gigante. A estátua é majestosa, mas funciona como um beco sem saída. Para esse lado não há mais nada e é preciso voltar à entrada e fazer o caminho em sentido inverso para chegar ao Mausoléu. É um excelente aperitivo para o desnorte que preside ao conjunto.

O Mausoléu invoca o templo em ruínas, onde vão parar as almas dos mortos por amor, descrito no lendário romance italiano O Sonho de Poliphilo (ou melhor, Hypnerotomachia Poliphili de autor incerto, primeiro publicado em 1499). Daí para a frente, seguindo sempre do lado direito e sempre por caminhos tortos encontra-se todo um sortido de esculturas fantásticas, algumas das quais talhadas em enormes rochedos. Entre as atracções mais populares destacam-se a luta de gigantes, a Fama montada sobre uma tartaruga, a cabeça de Ogre que serve de portão a uma gruta, que supostamente conduz às profundidades da terra, um elefante de Aníbal que esmaga um romano e essa peça única de arquitectura que é a Casa Inclinada.

O Bosque Sagrado foi projectado por Pirro Ligorio, que depois desenhou a Villa D"Este em Tivoli e trabalhou no Vaticano sob encomenda de Francesco Orsini. Bomarzo era, na realidade, um dos feudos medievais da família Orsini, que fez erigir o castelo que hoje ainda domina a povoação alcandorada numa falésia escarpada, a 14 km de Viterbo. O Parque dos Monstros, criado em 1552 e completado duas décadas depois, ocupa um vale contíguo, que na altura deveria ser parte de uma densa floresta. Julga-se que terá sido votado ao abandono durante quase 400 anos e as fotos a preto e branco, expostas na recepção, mostram as estátuas no meio de ovelhas e pastagens, quase sem árvores à volta.

A propriedade foi adquirida em 1954 pelo casal Bettini, que entretanto cuidou de o restaurar e rearborizar. Também fez construir infra-estruturas para acolher as visitas das escolas, que agora constituem a principal clientela do parque. Gigantes, monstros e grutas são um programa certamente aliciante para crianças e é salutar que uma obra tão antiga tenha adquirido uma frequentação tão jovem. Também é certo que o perfume misterioso que enfeitiçou visitantes como Salvador Dali, Jean Cocteau ou Niki de Sainte Phale se encontra hoje bastante diluído, entre risos e brincadeiras extra-escolares.

Para além dos eventuais arrepios, o bosque sugere uma viagem iniciática por um mundo subterrâneo habitado por criaturas sobrenaturais, do qual finalmente se emerge numa clareira relvada, no alto do jardim. Aí se encontra um pequeno templo neoclássico (desenhado por Vignola?), que funciona como uma espécie de símbolo de redenção. Há quem defenda que Francesco Orsini dedicou o bosque à memória da sua esposa Giulia Farnese, prematuramente desaparecida e com ele enterrada ao lado do templo. Já o argentino Manuel Mujica Laínez escreve em "Bomarzo"(1962), monumental biografia imaginária do duque, que o casamento deste foi tudo menos feliz.

Até que ponto a vida sentimental do casal e eventual desventura do duque moldou a parada de figuras surrealistas, únicas no Renascimento é, porém, muito discutível. Estátuas como a de Protéu e do elefante em fúria, admitem uma leitura alquimista que, no entanto, seria abusivo generalizar a toda a composição. O Parque dos Monstros de Bomarzo persiste hoje mesmo como um fascinante enigma Maneirista, que é ou deveria ser para recreio de crianças de todas as idades.

O Público viajou a convite da TAP e da Câmara de Comércio Italiana em Portugal

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