Viagem pelo país surreal da toponímia (5)

Em Portugal há montes a monte, os casais multiplicam-se, as quintas florescem. A toponímia nacional tem tanto de variado como de repetitivo, embora nos casos de nomes mais comuns haja a considerar a quase infinita paleta de combinações em denominações compostas. Fechamos hoje este roteiro interno capaz de nos levar além-fronteiras e que desvenda alguns segredos bem guardados. Sabe onde fica Mega Cimeira?

Quando procuramos nomes de terras que se distingam pela sua originalidade, a tentação é passar por cima dos topónimos mais comuns. Mas isso é injusto. Como fingir que não demos por Alcaria ou Portela, haverá viagem que não passe pelo Alto e pelo Vale, não somos portugueses nem somos nada se nunca estivemos na Horta, na Fonte, no Outeiro. Mesmo no Carvalhal não devemos confundir a árvore com a floresta e nunca, mas nunca, podemos desaproveitar a oportunidade de ir ao Arraial se queremos chegar a bom Porto.

São todos nomes comuns, mas capazes de se diferenciarem quase até ao infinito em função das combinações que possibilitam. O Alto tanto pode ser dos Vendavais como da Coitada, temos Alcaria Fria e Alcaria Queimada, o Carvalhal apresenta-se Grande ou Pequeno. Chegamos à Horta e exige-se atenção para perceber se é de Todos ou de Fernão Lopes - se encontrarmos um tipo amarrado a um carvalho enquanto outros fazem um banquete de javali, então estamos na Horta do Bardo.

É um desafio exigente. Pensa-se em Fonte e achamos que está tudo dito. Mas isso é como chegar a uma tasca do Minho e pedir vinho verde. Branco, tinto? Do pipo, garrafão? Em copo, malga? A Fonte tem sempre muito que se lhe diga. Em algumas é mesmo muito complicado matar a sede - Fonte Colher, Fonte da Gota, Fonte Quente. E noutras, como na Fonte da Pulga ou Fonte do Coice, toda a atenção é pouca.

Até porque parece que algumas destas terras estão fortemente empenhadas em afastar os forasteiros, talvez movidas por um ancestral instinto de autopreservação. E essa atitude começa logo pelo nome. Quem é que quer ir a Outeiro da Ranha? Que riscos corremos em Outeiro de Bera? E como classificar o truque de nos baralhar as referências quando queremos chegar a Outeiro de Baixo?

Os vales parecem, apesar de tudo, mais prometedores. Apesar de Vale de Enxames e Vale de Esfaquinhas não parecerem convidativos por aí além, há outros que soam como música para os nossos ouvidos urbanos: Vale Bom, Vale Derradeiro, Vale Florido, Vale Vistoso. Outros poderão sentir-se atraídos por Vale de Mulheres ou Vale da Mansa, talvez até acabem por chegar a Vale Boda, mas, verdade seja dita, às vezes o grande atractivo está mesmo no mistério: Vale Melhorado, Vale dos Ausentes e esse fantástico exemplo de final feliz que é Vale Vim.

Há muitos outros topónimos com presença maciça nos dados compilados pelos Serviços Cartográficos do Exército. Mas nenhum com a magia e o carisma daqueles que começam pela letra A, têm pelo menos três palavras e a do meio é sempre a contracção de uma preposição e um artigo. Com hífen ou sem ele. De A da Lama a A-dos-Ralhados, estamos em pleno reino da musicalidade linguística.

Digam comigo: A-da-Gorda, A-do-Pipo, A dos Arcos. Soa bem, não é? Só que não há bem que sempre dure. Por vezes surgem ligações estranhas, homenagens incompreensíveis. Entre tantos órgãos vitais do corpo humano - e dando de barato que era essa a inspiração -, o que terá levado a população da localidade do concelho de Arruda dos Vinhos a optar pelo baço, esse pedaço descartável da nossa anatomia interna? Alguém consegue dizer A do Baço sem ficar vagamente enjoado?

Casais, montes, quintas

Mas quando falamos em nomes de terras que parecem funcionar como mote para as mais tresloucadas variações, então temos de pensar em Casal, Monte e Quinta. Destes três, o Casal (mais as formulações derivadas) é, ainda assim, o menos representado, embora a riqueza da mensagem não se meça pelo número de entradas na base de dados. Na verdade, e prosseguindo uma tradição que data da viagem inaugural desse verdadeiro barco do amor que foi a Arca de Noé, há casais para todos os gostos.

Casais Maduros e Casais Novos, Casal de Frades e Casal de Freiras, Casal Desembargador e Casal do Réu. Há um casal para cada um de nós, independentemente dos nossos ideais ou aparência física - Casal do Calvo, Casal da Coxa, Casal do Escabelado, Casal dos Quatro Olhos. Todos podemos sentir-nos em casa, embora às vezes pareça haver excessos de informalidade, como acontece com Casal Cavaco...

Sabemos que não vamos passar fome no Casal de Volta o Tacho e a sede é uma cena que não nos assiste (citando um célebre skater da nossa praça) em Casal de Vinho Vai. Os gulosos apontam a Casal Bolinhos. Já Casal do Mau Dente não é coisa de bom agoiro. Há o Casal Duro (para atletas de alta competição em fase de treino intensivo), o Casal do Ferro Velho (só para apreciadores) e o Casal Garcia, que, presume-se, saiba melhor no Verão e bem gelado.

Os maníacos da limpeza devem abster-se de frequentar o Casal do Cotão, o Casal da Ronca é totalmente interdito a quem tem o sono leve, nos Casais do Fraldeu não vale a pena queixar-se do choro das crianças. Isto é óbvio. Já outros nomes deixam margem para dilacerantes dúvidas: o que significam Casal de Bucículos ou Casal do Enxacota? Fica a margem de mistério, num grupo de topónimos em que, normalmente, o que se lê é o que se vê. Vejam Casal de Eis.

E a seguir, por ordem alfabética, aparecem os montes, grandes campeões da nossa toponímia. Tradicionalmente típicos do Alentejo, onde até os nomes das pessoas contam histórias, os montes são uma mina de casos curiosos. Que histórias se escondem por trás do Monte da Diabrória, do Monte do Desvario ou do Monte Escalfa Cães? Que magníficas personagens deram origem a Monte do Bate Pé, Monte do Cabeça de Azinho Novo, Monte do Bicho do Mato de Cima, Monte do Corta Rabos de Baixo, Monte do Fura Grades, Monte do Papa Solas, Monte do Serra Portas?

Tal como acontece nos casais, também há um monte para cada um de nós. Há o Monte da Boa Fé e o da Cobiça; da Admiração e da Inveja; do Bom Trato e da Frieza; Magro e Gordo, dos Fracos e dos Fortes, dos Deuses e dos Mortais. Até há um Monte Minhoto e um Monte do Algarve. Há um que nasceu sem querer - o Monte Sem Tenção - e outro que não receia confusões - o Monte Alentejano. E, atenção alpinistas, sempre que ouvirem os franceses gabarem-se do seu Monte Branco, digam-lhes que em Portugal há uma data deles!

Em termos simplistas, rumamos agora à outra metade de Portugal. Montes a Sul, quintas a Norte, diz-nos o senso comum. Menos narrativos do que os dos seus parentes alentejanos, os nomes das quintas são, muitas vezes, extremamente poéticos. Quinta da Amizade, Quinta da Boa Esperança, Quinta da Curiosidade, Quinta da Maravilha, Quinta da Paz, Quinta da Primavera, Quinta da Retórica, Quinta da Revolta, Quinta da Saudade, Quinta do Chão da Noite. E por aí fora, até Quinta do Camões.

É verdade que a coisa também dá para o outro lado. Há a Quinta da Parvoíce e a Quinta da Chafurda; entre estes mundos tão opostos, nem sempre o diálogo é possível - pelo menos presume-se que seja assim sempre que os habitantes de Quinta do Mudo metem conversa com os de Quinta do Mouco. Alguns têm a mania das grandezas (Quinta de Cantar Galo), outros têm-se em muito má conta (Quinta do Roto Bode, Quinta da Vinha Morta) e também há quem fique na dúvida. Sucede com frequência em Quinta do Talvez.

Outros, porém, não quiseram mostrar tudo no nome e deixam-nos de dicionário na mão e ecrã de computador em pesquisa infrutífera. Vale a pena lembrar alguns destes enigmas insondáveis: Quinta Barrambada, Quinta do Estrajassola, Quinta da Suratesta, Quinta do Rivolhilho, Quintas do Culandrário. Ficamos à espera de um contacto de Quinta dos Chibos para desvendarmos o mistério.

Os números e os sítios

Por apelativos que sejam, alguns destes nomes não conseguem ombrear com as novas tendências da nomenclatura. Uma delas, particularmente óbvia nas artes, é utilizar um número. Mais uma vez se constata que os portugueses sempre andaram à frente destas coisas. Em Número Um já se sabia disto há muito - e outra terra portuguesa, Casal de One, até já pisca o olho aos mercados internacionais...

Podemos contar por aí fora. Dois Irmãos, Póvoa dos Três, Quatro Águas, Cinco Dados, Seis Pinheiros, Quinta dos Sete, Oito Moios, Nove Irmãos... Não há dez? Bom, se não vai à dezena, vai à dúzia: Doze. Depois não há 13, embora Trezeste e Trezoito sejam boas aproximações. Vale Catorze, Monte dos 15 Réis... e mais um hiato. A seguir aparecem Vale dos 20 Mouros, Vinte e Um, Vinte e Dois, Vinte Seis, Trinta, Trinta e Oito, Quarenta, Monte Cem Dias, Casal de Milhomens, Milhões.

Da Matemática à Geografia, constata-se que, ao viajarmos cá dentro, podemos estar também a conhecer Meio Mundo. Espanha não é só aqui ao lado, é também cá dentro. Tal como Brasil, Cuba, Egipto (e também há Egito, por mais que custe aos opositores do Acordo Ortográfico...), Guiné, Timor, Malásia. Continentes - Áfricas, Nova Austrália - regiões ou estados - Ardenas, Califórnia, Fernando Pó, Flandres, Galiza, Gibraltar, Transval, Zambézia, Macau -, até referências históricas - Jericó, Lourenço Marques, Tróia, Casa Canaveral. Tudo por estrada.

Em Portugal temos Brasília e Moçâmedes, Monreal (sic) e Nantes, Sebastopol e Segóvia, Sevilha e Meca, Pisa e Roma, Saragoça e Toledo, Bolonha e Paris. Entre outras, certamente, que o mundo é pequeno e Portugal sempre foi ponto de passagem. Não é difícil encontrar topónimos como Belga, Brasileiros, Casais das Inglesas, Couto da Espanhola... Tudo bem, mas, nunca o esqueçamos, nós somos Portugal (e também existe na nossa toponímia)!

E, como somos Portugal, gostamos de complicar, de burilar, de dourar a pílula. O que, fatalmente, nos leva a situações que se transformam em becos sem saída. Percorrendo a letra M da base de dados, o tsunami de montes quase nos leva a ignorar esse verdadeiro recife de coral que é o universo das malhadas... Num pequeno espaço, concentra-se um dos mais espantosos nichos de topodiversidade do mundo. Exagero? Então prepare-se (e depois não diga que não avisei).

Malhada da Barbarrala, Malhada da Bicha, Malhada da Bocha, Malhada da Buchana, Malhada da Majuqueira, Malhada da Mancoca, Malhada da Manizola, Malhada da Mofedinha... e nem vale a pena continuar. Mas que cogumelos é que esta gente apanha nos bosques? Estará nos estatutos que, para se ser Malhada, é obrigatório que a seguir apareça um OVNI linguístico?! É que, perante isto, preciosidades como as que encontramos na letra F fazem depois figura menor. Embora valha a pena destacar a família Fofe: há Fofe de Baixo, Fofe de Fora, Fofe do Meio, e também Fofim de Além e Fofim de Aquém.

Bonito, mas incapaz de bater um grupo de terras que, atento a estas tendências, há muito garantiu um lugar no panteão das variações sobre um mesmo tema. Imagina-se que o negócio das barbearias não tenha grande expressão em Barba de Bode, Barba Torta, Barbadães de Baixo, Barbadinho, Barbado, Barbanchas do Meio. Respirem fundo, há mais: Barbas, Barbas de Alho, Barbas de Milho, Barbas Novas, Barbuda, Barbudo, Barbudos.

Argumentos finais

Coragem, já Falta Pouco. Nesta intensa viagem pela toponímia portuguesa, resta abordar alguns casos omissos e fazer uma declaração de impotência. Porque não é possível fechar um trabalho destes sem destacar a acutilante inteligência dos habitantes de Castelo Melhor - entre tantos castelos, não ficam dúvidas sobre a primazia. Ou revelar ao mundo a importância estratégica de uma terra como Mega Cimeira, espécie de telefone vermelho das grandes potências e que, do seu recanto do concelho de Góis, tanto tem influenciado a vida no planeta.

Num país onde tanta vez se começa a construir pelo telhado, nunca será de mais saudar a existência de Cabouco de Baixo. Não somos tão maus como nos pintam e somos até melhores do que muitos suspeitam. Sim, por exemplo, o que terão os nossos irmãos brasileiros a dizer do facto, indesmentível, de, muito antes de João Gilberto, Vinicius de Moraes ou António Carlos Jobim, já existir em Portugal uma Bouça Nova? Ah, pois é!

Há tanto para descobrir! Como é possível chegar ao fim sem ter destacado pérolas como Assabuje, Escambirras, Gomesendes, Lapaduços, Pirescoche, Reganhuça, Rendufas, Sítio do Cagamoio, Trástola? Fala-se de sexo (sim, tínhamos de cá voltar, claro) e esquecemos Monte do Rego de Baixo, Pelo de Langarelhos, Vaca Loura, Monte do Vale de Calcinhas...

Procuramos o sentido das coisas e, no entanto, nunca saberemos o que está por trás de topónimos como Ruge Água, Vala Angélica, Tapada do Espeta Figos, Cirbela da Azureira, Osso da Baleia, Fado Quente, Chão de Papa Nabos, Rosas da Preguiça, Lá Aparece, Casa do Calacu, Água do Porco. Bom, talvez esta última não valha a pena investigar em profundidade...

Foi uma viagem alucinante. E não seria de bom tom terminar sem enviar um grande abraço às gentes de Luís - o vosso apoio foi precioso. É que, no final desta saga, uma pessoa não pode deixar de se sentir um pouco como o Escudo (só há um): em vias de extinção.

Restam-nos a Bandeira e a Portuguesa. E Adurraco de Baixo, Bajolo, Calca Perra, Dalbarda, Esfola Caras, Fandango, Gil Eanes, Herdade dos Nabos, Ingilde, Já da Rua, Lisboinha de Além, Majufa de Cima, Nevogilde, Orjarica, Pinhal Derrotado, Quadrazais, Rambóia, Sub Casa, Tornado, Unheiro Mau, Vez de Aviz, Xeixinal, Zeiroinha...

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