O teatro de uma galeria

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O texto criado por André Guedes e dito pelos actores Maria Duarte e Gonçalo Ferreira de Almeida activa uma história que começa em 1973 FILIPE ARRUDA

"Quadruns" é a história da mítica Galeria Quadrum, de Lisboa, vista pelo performer André Guedes e activada por dois actores. Da euforia ao despejo, um percurso gravado na própria arquitectura do espaço. Nuno Crespo

"Quadruns", a performance que André Guedes (Lisboa, 1971) apresenta a partir de hoje na histórica Galeria Quadrum do Palácio dos Coruchéus, em Lisboa, está entre o teatro e a performance, entre a história, o documentário e a ficção. Em cena, um texto activado e dito por dois actores, Maria Duarte e Gonçalo Ferreira de Almeida, enquanto conduzem os visitantes através do espaço arquitectónico da galeria e, simultaneamente, evocam as memórias do lugar.

Um dispositivo teatral que serviu ao artista, como afirmou ao Ípsilon, para trabalhar "a simultaneidade entre o tempo em que o texto é dito pelo actor e o tempo em que é ouvido pelo espectador". André Guedes quis abolir o intervalo temporal comum nas artes visuais, em que o tempo do fazer da obra nunca coincide com o da sua percepção pelo público - e trabalhar o contraste entre o modo como no teatro a obra se extingue quando os actores desaparecem e os modelos mais comuns da escultura, da pintura ou da instalação, que assentam na permanência de um objecto material. No entando, a espontaneidade do texto transmitido é "só aparente, porque tudo resulta de um grande trabalho de preparação" e porque as circunstâncias reforçam a solenidade do acontecimento.

"Quadruns", que fica até 17 de Setembro (das 10h às 19h de terça a sexta; das 14h às 19h ao fim-de-semana) surgiu na sequência do convite dos curadores Ana Anacleto e Bruno Marchand, que conceberam "PLAY", uma exposição em três momentos diferentes: em Junho foram os Tone Scientists a ocupar a Galeria Quadrum; seguiu-se uma instalação do Projecto Teatral e agora a performance de André Guedes. A ideia, dizem os curadores, foi fazer uma exposição colectiva que se desviasse dos "modelos de simultaneidade e confronto habitualmente associados às exposições colectivas" e se materializasse em "três reflexões singulares sobre o efeito que as noções de encenação, jogo, performatividade e interpretação promovem no processo criativo, tanto quanto na experiência da obra."

Uma história mítica

O confronto com a história do lugar e a memória das relações humanas por ele suscitadas foi o ponto de partida: os artistas foram convidados a desenvolver peças que reflectissem a história da mítica Galeria Quadrum. Uma história que começa em 1973. Nessa fase pré-revolucionária, a galeria assumiu-se como um projecto comercial e tirou partido do optimismo e da abundância financeira desses anos. Depois da Revolução, os sucessos comerciais diminuíram mas Dulce D"Agro, que dirigiu a galeria até 1997, em conjunto com um grupo onde estavam artistas como Ernesto Sousa, Sebastião Rodrigues e Fernando Azevedo e o crítico José Mário Gonçalves, redireccionou a galeria para um projecto mais vanguarda e experimentalista. E foi assim que se tornou possível ver, por exemplo, performances da consagrada Gina Pane.

Em 1997, a direcção da galeria passa para o crítico António Cerveira Pinto, fundador da famosa Aula do Risco, e sucede-se uma série de exposições de artistas marcantes desse final de século: Miguel Palma, Paulo Mendes, João Tabarra e João Louro, entre muitos outros. Depois de um processo contencioso, a galeria é encerrada no dia 17 de Junho de 2009 e dá-se inicio a uma reformulação da natureza deste espaço expositivo, que assume a sua vocação de equipamento cultural público.

A performance de André Guedes não pretende fazer a história do lugar: "Não sou um historiador e esta peça não é um ensaio académico em que tenho de dar igual atenção a todos os factos", diz. Mas interessou-lhe falar do despejo coercivo da galeria porque "falar do despejo é falar da história da galeria, que mostra bem como era a relação entre os agentes culturais privados e as instituições públicas". A Quadrum, continua, "foi um projecto comercial generosamente apoiado pela Câmara Municipal de Lisboa."

E o despejo foi um acontecimento solene, ao qual assistiram diversas pessoas e do qual foram elaborados diversos relatórios que, ironicamente, constituem os poucos documentos que existem do espólio daquela galeria. Por isso, o interesse pelo fim da Quadrum não se pode dissociar da impossibilidade de fazer a história daquele lugar dada, a inexistência de fontes e documentos históricos.

Toda a peça é, de resto, um continuo apelo à leitura da história tal como está marcada nas estruturas materiais da arquitectura. Os actores vão sublinhando as características do espaço e intensificando a atenção do espectador na luz, nas cores, nas formas, elementos que dão conta não só da sua modernidade, mas também da indissociabilidade entre o "espírito do lugar" e a sua história: o espaço como testemunha da passagem do tempo, detentor de uma vocação inalienável. Por isso, no final desta visita espácio-temporal, conduzida e evocada pelos actores, o relato dos sucessivos percalços da história da galeria dá lugar a uma reaproximação à essência deste espaço: vender arte.

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