Escritora de fantasmas

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STEVE GULLICK

Depois de revisitar em livro o ano mais importante da sua vida, Kristin Hersh comemora um quarto de século das Throwing Muses com o lançamento de "Anthology". O disco recorda o óbvio: raras vezes o rock foi tão brilhante e vital. Gonçalo Frota

É matemático: quanto mais uma obra é diferente das demais, mais histórias se lhe colam pegajosamente para ajudar à efabulação. É uma questão de segurança a que gostamos de nos algemar - nunca um fundo de vulgaridade pode parir uma obra de génio. Uma das melhores variações envolta em fumos de ficção em torno dos Throwing Muses diz que Kristin Hersh e Tanya Donelly, quase irmãs, tangencialmente familiares, filhas de relações passadas dos seus pais, começaram a tocar guitarra a partir de um "songbook" dos Beatles cheio de erros nas transcrições. Em vez de saírem interpretações milimetricamente encostadas aos originais, saíram das cordas canções tortas, notas em conflito e um amor inesperado por melodias arredias. A isto juntava-se depois algo de absolutamente singular: a cabeça de Kristin, povoada por um conjunto de vozes incessantes a exigirem ouvir-se cantadas em modo desabrido. Poesia? Não. Distúrbio bipolar, mesmo. Diagnosticado como deve ser, por gente de bata branca.

Nessa altura, em 1985, a música das Throwing Muses era uma correria. As guitarras eram de uma ansiedade descontrolada, a bateria soava como se fugisse a trote de um perigo iminente e as canções seguiam estruturas tão pouco lineares quanto o trajecto de um bêbado largado na auto-estrada. O que encantava era esta dificuldade sincera em fazer as canções simples, acompanhada por um primitivismo sonoro herdado do punk. Em pouco tempo, estas canções viradas do avesso e enfeitadas com letras de cabeça no fundo do poço, como "Hate my way", haviam de arrebatar o homem forte da 4AD, Ivo Watts-Russell, tornando-as a primeira formação norte-americana a assinar pela editora inglesa - por arrasto, imagine-se, seguiriam os Pixies.

Como aconteceu fatalmente com qualquer grupo pós-punk com um mínimo de originalidade e culto sustentado, as multinacionais vieram cheirar o que se passava e acabaram por contratar dois álbuns das musas. O terceiro, "Hunkpapa", na estreia para a Warner Bros, encontraria Kristin Hersh com 24 anos. Na cabeça de Kristin - na altura já com as vozes domadas sob efeito prozaciano -, fazer parte do catálogo de uma multinacional era algo quase ao nível da piada. "Achámos divertido entrar no jogo", conta-nos hoje. Mas para as Muses este jogo obedecia a regras ligeiramente dessincronizadas: "Tentámos fazer algumas canções tão más que resultaram simplesmente parvas, mas acabou por não ser suficientemente divertido e quando mais ninguém se ri fica apenas a música". É daí que vem "Dizzy", um dos maiores sucessos do grupo. Hersh agarrou num refrão tresmalhado composto pelo pai e tentou "torná-lo pavoroso, porque sabia que era disso que a editora ia gostar". A reacção foi a esperada. "Sim, sim, eles adoraram, eles adoram porcaria", lembra numa frase ensanduichada por duas gargalhadas. "É tão triste que seja isto que é esperado de nós".

Mas atenção à descodificação. O riso de Hersh não se traduz num plano maquiavélico para escarnecer dos infaustos engravatados que deliravam com música propositadamente má. Na visão inocente do grupo, era uma moeda de troca, com um câmbio não declarado - era aquilo que os quatro estavam dispostos a pagar por uma editora disponível para editar os outros 12 temas que interessavam. Pouco depois saiu Tanya Donelly, passaram a trio e regressou o espírito que, garante Kristin, era o de "uma banda que se estava a cagar". Fama e dinheiro eram assunto a tratar com repelente, rezando para que ficassem longe. Quer dizer, "vender discos teria sido simpático", porque teria confirmado que a música tinha razão em querer romper as águas e vir cá para fora, "mas esse era um trabalho de terceiros". Em seguida saiu a baixista Leslie Langston e o "roadie" Bernard Georges substituiu-a, juntando-se a Hersh e David Narcizo. E as multinacionais desistiram. Kristin respirou de alívio, antes que alguém lhe começasse a escolher a roupa ou a mandar cortar a franja para eliminar quaisquer atritos que impedissem as canções de deslizar nas rádios.

Canalizadores

A tempestuosa relação de Kristin Hersh com a indústria musical é hoje bem diferente. Há alguns anos, a líder dos Throwing Muses declarou a sua independência, passou a dispensar a relação institucional com as editoras e hoje grava graças a um programa de financiamento chamado Cashmusic, por ela desenvolvido. Mediante a subscrição paga do serviço, todos os meses há conteúdos exclusivos, composições novas - nada de muito complicado: as editoras é que a quiseram convencer que um disco por ano é muito, mas Kristin compõe 20 canções por mês -, ou uma espécie de "reality show" em que acompanhamos a vida de uma canção, podendo seguir-lhe cada passo. O dinheiro angariado com o programa serviu, por exemplo, para os Muses voltarem a gravar. Faltam apenas cair mais umas moedas no mealheiro para as misturas. O disco, ainda sem nome, terá 38 (não, não é gralha) temas. Kristin ri-se do quão nos antípodas se encontra da receita aplicada nas multinacionais. "Agora já não temos nenhuma editora a dizer-nos o que não devemos fazer - como lançar um disco com 38 canções". A este, junta-se ainda um novo disco do trio punk 30 Foot Wave que formou mais recentemente. Vai chamar-se "With Love from a Men"s Room", em dedicatória a Vic Chesnutt.

Há nisto um certo sabor a vingança de uma indústria que a fez sentir-se culpada por não ter as canções apontadas a um público específico. "Não sabemos quem é o teu público, não sabemos quais são as tuas revistas", diziam-lhe para tentar alinhá-la à força. Agora, quando olha para trás, Kristin sente-se ofendida com observações que lhe soavam inexplicadamente legítimas. "Eu sentia-me mal. Mas depois percebi "espera aí, isto é uma coisa boa!". Não se pode usar demografia para definir as pessoas quando estou a dirigir-me ao seu carácter e não à cor da pele ou ao género". Daí que tenha recentrado a mira e abatido os intermediários, dirigindo-se directamente aos ouvintes - e não aos "fãs". "Os fãs são pessoas com quem não queremos ir beber um copo", justifica. "Os ouvintes não, tratam-nos como se fôssemos o canalizador - pagam-nos um preço justo, dão valor ao nosso trabalho e mais nada".

Diário de um ano mau

Entre 1985 e 1986, ano em que tudo aconteceu na vida de Kristin Hersh - o diagnóstico bipolar, o primeiro contrato da banda, a primeira gravidez, o mundo a andar à roda -, a cantora escreveu um diário que foi publicado em 2010. "Rat Girl" ou "Paradoxical Undressing", conforme se esteja num ou noutro lado do Atlântico, é um livro de memórias reescrito, como se a Kristin de hoje ficcionasse a Kristin de então. "Aprendi, ao escrever o livro, a manter essa pessoa tão longe de mim quanto possível. Porque parti do princípio que era má, alguém de quem me devia envergonhar, que tinha causado muitos problemas e magoado muita gente. Havia muita fealdade com a qual não conseguia lidar, tudo concentrado nesse ano e nessa pessoa". Foi um trabalho duro, com um par de horas de sono a ser combustível para noites de reescrita enquanto os três filhos dormiam. "Espero ser mais inteligente e mais feliz, mas não sou assim tão diferente da pessoa que escreveu aquele diário", concede. O seu medo maior era que o equilíbrio entre a nostalgia e a náusea se desfizesse, e as palavras lidas tomassem vida "como uma assombração". Não aconteceu.

A história já poderia ter sido escrita antes, mas Hersh acabou por deixar de atender os muitos pretendentes a "ghost writers" que queriam contá-la. Disse que sim a todos, fartou-se de meses e meses de entrevistas a falar de sentimentos. Quando achou que, afinal, estava a autorizar sessões de terapia e houve um tipo que quis viver com ela durante uns tempos, desistiu. "Então", disse-lhe o marido e manager Bill O"Connell, "vais ter de ser tu a contar a história". E é isso que está a fazer. Com o livro, claro, mas também com "Anthology" - os Throwing Muses tal e qual como ela gosta de os reencontrar.

Ver crítica de discos pág. 30 e segs.

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