À procura de Nick Ray e tropeçando em Al Pacino

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Nicholas Ray em

A fragilidade e o autoritarismo de Nicholas Ray para retrarar a música das emoções. O esbracejar desse genial cabotino que é Al Pacino. Um documentário ou outra coisa?

Com ar de Noé e de pirata falido, e uma garrafa de vinho na mão, Nicholas Ray quebrou o seu exílio europeu e chegou à América de Nixon para dar aulas na Universidade de Binghamton, estado de Nova Iorque. Para os alunos que o receberam, no início dos anos de 1970, era "a Hollywood director", o realizador de Fúria de Viver. Ele sentia-se tudo menos um "Hollywood director", porque fora expulso desse paraíso infernal.

Logo de entrada estabeleceu as regras do jogo: o cinema não se pode ensinar, o cinema tem de ser vivido. Durante um ano, cinco a sete dias por semana, os alunos foram trocando de funções, à frente e atrás da camara, do som para a imagem. E ele foi um pai para eles. Um pai afectuoso e manipulador, que queria colocar no ecrã, com a ambição de um antropólogo, todo o espectro das emoções humanas.

Era a América de Richard Nixon, depois de JFK, depois de Bobby Kennedy e de Martin Luther King, o final das utopias da década de 1960, a ressaca, o regresso ao "eu". Ray percebeu a fragilidade no caminho da construção de uma nova identidade que se experimentava.

Tudo o que acontecia entre ele e os seus alunos era filme. "Tudo era set". Nick, que se contradizia sempre, foi um libertário autoritário nesse habitat: avesso ao poder, mas incapaz de ser outra coisa, a não ser liderar e manipular as emoções dos seus "actores". O resultado dessa experiência comunitária, que foi a rodagem de um filme, chamou-se We Can"t Go Home Again.

Nick experimentou regressar - se calhar só para reiterar que os regressos são impossíveis - à utopia comunitária, como a dos seus anos 30, com o arquitecto Frank Loyd Wright; a motivos da sua obra, por exemplo, a essa ideia de família que se adopta, como a da noite mágica a três no Rebel without a Cause em que tudo parecia possível a James Dean, Sal Mineo e Natalie Wood.

Mas não se pode regressar a casa. O álcool, as drogas ("Adoro a vida, mas estou envolvido com a morte") não permitiram que o filme se completasse ate à morte de Ray em 1979. Vários works in progress foram sendo mostrados (por exemplo, em 1973, no Festival de Cannes), e Veneza mostra agora a versão mais completa e restaurada, um esforço da mulher do realizador, Susan Ray. Que olhou tambem para o seu companheiro na fase final da sua vida e faz o retrato dele em Don"t Expect Too Much.

Os "filhos" de ontem recordam também o "pai" - os dois filmes programados fora de competiçao em Veneza e, espera-se, os dois filmes programados para a integral dedicada ao realizador na Cinemateca Portuguesa, em Dezembro, último mês do ano em que se comemora o centenário do nascimento de Ray.

É uma experiência de saturação, de intensidades, We Can"t Go Home Again, em que Ray, na sua sede de plasmar no ecrã os anos 70, concebeu um dispositivo de vários ecrãs que se abrem, para contar histórias e mostrar acontecimentos simultaneamente: qualquer coisa de épico, em que a escala íntima diz da História de um país; algo, também, que anuncia o futuro, a devoradora lupa sobre as emoções que desaguaria, como deformação, no reality show de hoje. Tudo isto naquela cena em que um dos alunos corta a barba, a barba de hippie, que lhe valera ser violentado por dois rednecks. Desgosto, autopiedade, afinal todo um país a regressar a si, sem referências (para se mostrar depois diferente nos anos 80, e a afirmar a década do "eu") - e a voz de Ray, que quis documentar o momento, a pedir verdade às lágrimas, ao olhar. "Usamos o instrumento para fazer música, não utilizamos a música para realçar o instrumento", dizia Nicholas Ray - falava de actores, falava de si.

Instrumentos de uma visão

No caso de Al Pacino, notamos sobretudo o instrumento. Quer dizer: Al passa e o ar comprime-se, dilata-se e encolhe-se. Wilde Salome (fora de concurso) é muito menos sobre Oscar Wilde e sobre a peça Salomé do que sobre a "obsessão" de Pacino pela peça e o mesmo se poderá dizer sobre Ricardo III e Shakespeare em Looking for Richard (1996). Pacino explicou que tem "uma visão" mas não sabe que filme tem - ou, acrescentamos nós, se tem filme. Tudo, os outros actores, que participam na peça Salomé que obceca Pacino, não são mais do que instrumentos de uma visão. Pode acontecer que nós sintamos, enquanto espectadores do filme Wilde Salome, como os espectadores da "leitura da peça" que Pacino e Esthelle Parsone "encenaram" em Los Angeles: frustrados.

Uma vez ultrapassado o esbracejar, o som e fúria deste actor, que alguém disse um dia ser "genialmente cabotino", deparamos com o vazio. "Genialmente cabotino", por exemplo, em Scarface, de Brian de Palma. Numa sequência de Wilde Salome Pacino está na Irlanda, simula uma metralhadora na mão e, feito Tony Montana, desata a disparar para um fã, que simula o impacto das balas. Genialmente cabotino, esse fã. Pensando bem, o Glory to the Filmmaker Award, prémio que Al recebeu ontem (que já foi para Takeshi Kitano, Abbas Kiarostami, Agnès Varda ou Sylvester Stallone), tem um título deliciosamente cabotino. V. C., em Veneza

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