Veneza vê-se grega com os Alpes de Yorgos Lanthimos

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Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Laurence Fishburne e o realizador Steven Soderbergh ontem em Veneza dr

Um filme com vida própria, imperscrutável: Alps, do grego Yorgos Lanthimos, colocou os espectadores de Veneza às escuras. Mas fez-se luz.

John Cassavetes, a arquitectura contemporânea grega, os hospitais, Robert Bresson, Luis Buñuel, a torta de limão, o basquetebol... Yorgos Lanthimos não faz por menos, tudo isto foram referências para o seu filme. Mas a overdose não é o problema de Alps. Poderá ser aquilo que o filme retira se pensamos que um filme deve dar informação para o espectador acumular... E também não haverá "problema" algum aqui: eis o caso do primeiro filme da competição da 68.ª edição do Festival de Veneza que foi colocando quem o estava a ver em território incerto. Gabe-se-lhe isso, ficou tudo às escuras. Mas Alps foi-se iluminando. E pela reacção final, ganhou.

Claro que haveria já iniciados ao cinema deste grego de 38 anos: Canino, terceira longa-metragem, recebeu o prémio Un Certain Regard em Cannes 2008. Aí, um pai dominava os três filhos, isolava-os do exterior. Era um exercício de poder e crueldade, notaram-se familiaridades com o cinema de Lars von Trier ou Michael Haneke, e sobretudo notou-se a aridez do exibicionismo. Lanthimos diz que com Alps quis superar o filme anterior. Fez bem: agora não se pensa em Haneke, pensa-se no cinema espesso, opaco, da argentina Lucrecia Martel.

Estamos parte do filme a tentar descobrir quem são aquelas personagens. Pertencem a um grupo chamado ALPS, em que cada um tem como nome de código o de uma das montanhas da cordilheira, denominação que lhes convém para não denunciar (nem ao espectador) o que fazem. Quando percebemos o que fazem - substituem-se aos defuntos junto dos familiares para aliviarem a sua dor -, fica por saber a razão por que simulam, ficcionam, por que coreografam dessa maneira as suas emoções. Não saberemos. Mas sentiremos que essas figuras foram abraçadas pelo desespero.

O facto de o percurso de trompe l"oeil em trompe l"oeil gerar em si pequenos espectáculos dentro do filme (como sketches, mas isso era mais denunciado em Canino) não impede que Alps comece a parecer-se com um organismo com vida imperscrutável - essa é uma das semelhanças com o cinema de Lucrecia Martel. E que às tantas seja ele a devolver-nos perguntas, a interrogar-nos sobre o que é que queremos, em que acreditamos e porque é que acreditamos, quando assistimos a uma ficção. Continuaremos sempre com mais perguntas do que respostas. Lanthimos, numa entrevista, respondeu a isso: a perspectiva de quem ficciona parece-lhe mais "realista" do que a que quer criar algo de parecido com a realidade. A resposta não "explica" o filme. Ainda bem.

Satrapi não levanta voo

Por falar em questões de minimalismo e abstracção: Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, a dupla de Persepolis, quiseram passar a outra coisa. Mas o acréscimo de imagem real no mundo de BD em Poulet aux Prumes não acrescenta imaginário. Pelo contrário, hipoteca-o.

Maria de Medeiros, uma das intérpretes (com Mathieu Amalric, Isabella Rossellini ou Chiara Mastroianni), dizia ontem, em conferência de imprensa, que os realizadores que passam da BD para os filmes estão a trazer uma reserva de imaginação a um cinema dominado pelos códigos da televisão. A questão é discutível, e pode-se argumentar com Poulet aux Prumes, mais um pedaço da vida familiar da iraniana Satrapi, desta vez o Irão do final dos anos 50: as vozes e narrativas que voavam em Persepolis não conseguem levantar voo porque o imaginário ficou refém. O filme vê-se em dificuldades para lidar figurativamente com uma pesada mistura que tanto remete para Fellini como para ...Amélie Poulain ou Gainsbourg-Une Vie Héroique.

Soderbergh abusou

Steven Soderbergh não costuma ser criticado por ter mais olhos que barriga. No seu perfil de funcionalidade máxima fez das coisas mais interessantes da sua carreira - quer dizer, como "funcionário". É quando faz experiências que se torna dispensável. Mas em Contagion (fora de concurso) abusou. Mostrou tanto o osso do filme que o resultado parece um conjunto de separadores.

Faz figura de exposição involuntária do género "filme-catástrofe": uma série de actores mais ou menos vedetas (Matt Damon, Laurence Fishburne, Gwyneth Paltrow - a tempo de ser o "paciente zero" de uma epidemia e de lhe dobrarem o escalpe na autópsia -, Kate Winslet ou Marillon Cotillard), não mais do que o tempo necessário para atravessarem o ecrã, informação, números, muitos números e informação globais, e uma epidemia à solta.

O mau da fita, para além do vírus, é um blogger (Jude Law, seco que nem um tronco, por isso o seu melhor papel continua a ser o de robot em A.I.), e a Internet é aqui o embrião de oportunismo: enquanto há gente honesta a tentar encontrar a vacina, Jude vai construindo a reputação de (falso) profeta. Tudo a correr, para meter os sinais do mundo ali dentro, e o resultado pode ser um instrumento para a profilaxia da epidemia. Via-se bem por partes no Youtube.

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