O prazer da carnificina

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Kate Winslet, a da falsa serenidade, com Christoph Waltz em dr

A conjugalidade é uma partida de Deus e Polanski diverte-se com essa prova, utilizando Jodie Foster, John C. Reilly, Kate Winslet e Christoph Waltz. É Carnage, adaptando a peça de Yasmina Reza. Já Madonna acredita em histórias da carochinha.

Às partidas de Deus - ou como se lhe quiser chamar - Roman Polanski respondeu sempre com a farsa. À competição de Veneza ele entregou um divertimento com o carnívoro título de Carnage. Em que dois casais não se conseguem rir de Deus pela partida que lhes pregou - a conjugalidade, a família... - mas, infernizando-se, fazem os espectadores afiar o dente à gargalhada.

E esta é uma peça de teatro, God of Carnage (Deus da Matança), de Yasmina Reza, em que dois casais não conseguem sair do molde de hipocrisia em que se encerraram. Até porque nunca conseguem sair da casa em que tentam resolver o diferendo que opôs, através de um taco de baseball e dentes partidos como resultado, os respectivos filhos.

É uma carnificina de pouco mais de hora e meia em que os opositores vão rodando, casal contra casal, primeiro, mulheres versus homens, depois, e solidão para todos. Num "apartamento" concebido em Paris pelo director artístico Dean Tavoularis e a fazer de apartamento em Brooklyn, Nova Iorque, Polanski, que escreveu o argumento com Reza, ensaiou durante duas semanas com os actores, Jodie Foster/John C. Reilly, Kate Winslet/Christoph Waltz. Experiência que terá sido vivida, segundo Winslet, num "ambiente de saudável agitação".

Duas coisas a reparar, desde logo, e têm a ver com essa felicidade de coabitação artística para mostrar a infelicidade: a forma como a visão do realizador é mais aberta e menos desoladora do que a de Reza (a dramaturga, que esteve em Veneza, ao contrário de Polanski, concede que trabalhou para satisfazer a visão do realizador); e a forma como o "molde" dos actores, a persona que destilam nos filmes, que para eles vem passando, é utilizado na carnificina.

É a partida que Polanski prega. Por exemplo: a austeridade de freira laica de Jodie Foster, a anulação da sua sensualidade ao serviço de uma personagem que vestiu, como uma armadura, um programa de consciência social, aberta aos outros, mas que não suporta quando o vómito de Winslet macula o seu álbum com o trabalho de Oskar Kokoschka; a bonomia de John C. Reilly como uma bomba-relógio - uma disposição para a reconciliação que não é mais do que ressentimento; a lucidez amoral de Christoph Waltz - a única personagem que acredita na "carnificina" como habitat do humano; a falsa serenidade de Kate Winslet - não por acaso, a sua personagem vomita, "cena" de exposição, de revelação. A propósito: essa cena (a segunda vez que Winslet vomita no festival, já que também o faz na mini-série Mildred Pierce, de Todd Haynes, cinco horas que passam em Veneza fora de competição) já mostrou a sua capacidade como crowd pleaser.

Madonna, a principiante

A conjugalidade é uma partida que Deus nos pregou, diz a peça de Yasmina Reza. Mas Madonna é uma rapariga que acredita em contos de fadas. Por isso, se ela é rainha da pop, como realizadora será eterna principiante. W. E. (fora de concurso) nasceu, disse ela, do "arrebatamento" pelo amor entre Wallis Simpson e Eduardo VIII, que levou um rei a abdicar do trono. A "maior história de amor do século XX" funciona, em W.E. (iniciais de Wallis e Eduardo), como instigadora do processo de libertação ("viagem espiritual", dirá alguém da pop a querer não parecer alguém da pop) de uma Wallis dos anos 90. O filme cruza-as com o sentido de atmosfera de um teledisco. Pode-se ensaiar o fascínio de Madonna por Wallis, que no seu tempo fez figura de social climber e de usurpadora, como um retrato da forma como a própria cantora foi vista publicamente. Pode-se, até, encaixar Wallis num firmamento pós-feminista associado frequentemente a Madonna. Seria de mais. A fixação do filme é nas superfícies: a vivência nos ambientes rarefeitos do glamour e da decadência, um romantismo saído das páginas das revistas de moda. (Ou é o filme que não consegue deixar a superfície.) O criador de moda Valentino, que veio a Veneza apoiar a sua amiga, viu W.E. e fala em Visconti. Faz sentido, para ele Visconti é décor e moda. Não vale a pena acreditar em histórias da carochinha: a de Madonna-realizadora. Quando lhe perguntaram se, como Wallis, estaria disposta a abandonar a carreira por um homem ou por uma mulher, respondeu: "Acho que consigo ter os dois - ou os três." Não é preciso ser cineasta.

Pode-se olhar para Warriors of the Rainbow: Seediq Bale, de Wei Te-Sheng (Taiwan), como uma partida dos programadores da competição. No passado, um filme destes iria para as sessões da meia-noite em que os aficcionados de um certo cinema de acção (de Hong Kong, por exemplo) teriam espaço para o seu guilty pleasure - a essa hora, estaremos menos preparados para dar luta à naiveté. Mas desta vez foi em horário nobre, e quando - cena final - os guerreiros de uma tribo de aborígenes das montanhas taiwanesas, que se sacrificaram no combate contra os ocupantes japoneses (episódio histórico das primeiras décadas do século XX de Taiwan), atravessam uma ponte feita pelo arco-íris no céu, houve quem achasse de mais...

Não foi por acaso que falámos no cinema de Hong Kong. Warriors of the Rainbow: Seediq Bale foi produzido por John Woo, que em tempos, nos seus thrillers dos anos 90, pedia também aos espectadores que suspendessem a descrença. O épico histórico e místico (duas horas e meia) cruza-se com o filme de acção, tem a quota de efeitos digitais, o desplante de uma "comic strip" (material que lhe serviu de base e que lhe ficou no sistema, na montagem, nos enquadramentos) e a eficácia formatada. Quer dizer, é uma forma não prodigiosamente inventiva de ser "cinema popular", já que rola sempre tudo no mesmo sentido - como as cabeças, porque acaba tudo sempre sem cabeça.

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