Solidão
e isolamento

Uma boa estreia de Filipe Nunes Vicente, numa novela terminal com várias histórias dentro da história

Uma boa parte da literatura da primeira metade do século passado - que ainda marca a deste - foi dedicada a, por assim dizer, dificultar a vida ao leitor. Analepses e prolepses, mudanças de narrador (ou mesmo narradores que a dada altura se tornam indefinidos), polifonia, fluxos de consciência, estes "modos" foram gradualmente inscritos na narrativa até a estilhaçarem. Mais que inovações estéticas, eram reflexo da queda do positivismo: desde Freud o homem não podia mais olhar-se como um ser dominador de si mesmo; antes pelo contrário, aprendeu que não conseguia fugir à sua consciência - devia até temê-la.

Não existiria "Menina Else", de Arthur Schnitzler, sem Freud. E não existira "Mau-Mau", o primeiro romance de Filipe Nunes Vicente (não por acaso um psicólogo), sem "Menina Else".

Na novela de Schnitzler, a mencionada Else é a narradora de um drama familiar: perante a escassez de dinheiro dos seus progenitores, vê-se obrigada a seduzir um homem rico. Não temos, contudo, quase conhecimento algum do exterior, descrições das outras personagens, apreciações detalhadas sobre as dúvidas morais de Else. O seu olhar voltou-se para dentro e a novela é uma espécie de monólogo em que ela remói factos e ilusões. A narrativa deixa de ser uma tela bem composta para ser um monte de cacos, reflectindo a turbulência interna da personagem.

Filipe Nunes Vicente usa exactamente o mesmo esquema. Temos acesso apenas e só à cabeça de Mário, um homem que labora há anos num estudo sobre drogas, separado da mulher, da filha (o filho António morreu), e a viver num qualquer bairro degradado enquanto espera a morte às mãos do cancro. Um homem, em suma, que procurou o isolamento do seu mundo - ou o regresso ao seu mundo, se tivermos em conta que mais à frente nos revela ter sido adoptado.

Tal registo é extraordinariamente difícil de levar a contento. O livro abre rápido, com Mário a descer as escadas, a esfaquear um vizinho de baixo, a regressar ao quarto e depois (não sabemos exactamente quão depois) em dúvida sobre se tudo passou ou não de um sonho. Várias técnicas são usadas por forma a deixar claro o estado de desagregação da personagem: evita-se o uso de vírgulas (por forma a parecer que os pensamentos se atropelam entre si), Mário contradiz-se e admoesta-se constantemente, e refere-se obsessivamente à heroína, que vê por todo o lado. Isto enquanto vagabundeia pela cidade, indo comprar nabos, almoçando no café da esquina ou bebendo um fino numa esplanada - uma vida de absoluta solidão em que a comida parece ser o único prazer.

A sequência de eventos posteriores parece aleatória ao próprio protagonista: no dia seguinte ao suposto homicídio, dois homens agridem-no à saída do Neves (o sítio onde ele almoça) e fazem mais ameaças; a seguir surge-lhe uma mulher em que ele nunca conseguiu deixar de pensar, uma Gabi cujas qualidades devem menos ao espírito do que à possibilidade de experimentação das maravilhas da oponibilidade de polegar. Tudo isto rebenta com os nervos de Mário, que entra num estado próximo da paranóia. Quando Gabi o encontra, diz-lhe que um amigo seu foi esfaqueado naquele prédio na noite anterior, e depois os dois (ela e Mário) acabam por ter sexo após ela ler um escrito ficcionado sobre o mundo da droga em que ele anda a trabalhar. Esta é a parte da história dentro da história - ou melhor, das duas histórias dentro da história, visto serem dois os escritos de Mário usados a par da narração principal.

No primeiro, o que Gabi lê, o protagonista é um polícia chamado Mário, que decidiu desterrar-se para um cu de Judas fronteiriço, onde se encarrega do tráfico de droga. O Mário-polícia sente-se uma espécie de xerife do Faroeste, com uma ética própria, que faz justiça pelas suas mãos. Fecha os olhos a um homem que abusa da filha, mas espanca o dono de um alterne quando este lhe oferece uma prostituta com marcas de seringa no braço. A partir daí, começa a sofrer ameaças. Num dia em que entra no café do costume para ver (como faz sempre) uma mulher que o encanta, recebe uma pancada na cabeça.

Esta história-dentro-da-história escrita pelo protagonista é lida por Gabi, depois de Mário lhe perguntar se está interessada em ler o que anda a fazer, por não saber que mais dizer àquela mulher bonita. Como "desculpa" para a introdução da história-dentro-da-história, é bastante forçado. É difícil imaginar que duas pessoas que não se vêem há anos e nunca foram íntimas se pusessem a ler os escritos de uma delas só porque não têm mais nada para dizer. E a forma como Gabi seduz Mário posteriormente - chega-se à frente e já está - é demasiado artificial, tresandando a "film noir", o que não é de estranhar tendo em conta que constantemente o narrador compara a realidade ao cinema. (Não só ao cinema; o livro está cheio de referências culturais. É certo que o protagonista é certamente literato, mas há uma coisa que os autores portugueses não aprendem: a imaginar personagens que não estejam constantemente a debitar cultura. Passámos de Namora para empilhadores de citações e isso não dá saúde a ninguém. Citar Ernst Bloch no meio de um romance é um pouco como pedir "Olhem para mim" nas bancadas do Dragão quando Hulk tem a bola.)

Pós-coito, Mário começa a pensar que a agressão de que foi alvo nesse dia não lhe é estranha. Julga já a ter lido num conto que escreveu e que está com a ex-mulher, a quem pede que lho envie. Assim chegamos à segunda história dentro da história. Note-se que ambos os "contos" são, individualmente, bons: o primeiro, num registo realista, é bastante convincente no seu retrato de aldeia perdida onde se faz pequeno tráfico e cada um lida como pode com as suas desgraças e a violência surda; o segundo é apropriadamente kafkiano. Trata-se da descrição de uma casa em que um homem se isolou depois da morte do filho - o conto serve igualmente para o leitor ficar a par desta informação. O conto é ganho pelos detalhes únicos da casa, composta de uma Zona1 e uma Zona2, tendo um isolamento especial no chão por forma a não se ouvir nada vindo do exterior. É uma espécie de paraíso do autista, de Éden do depressivo, um falso líquido amniótico.

Ou seja: Mário, o estudioso das drogas, escreveu, enquanto casado, um conto em que previu o seu isolamento futuro. Um isolamento - e essa é uma parte importante do livro - que funciona como a sua heroína, de tal modo está viciado nele. Nesse conto, curiosamente, ele também é agredido na nuca por estranhos. Isto leva a novela (escassas 90 páginas não qualificam "Mau-Mau" como romance) para territórios do fantástico. O que, conhecendo o teor do primeiro conto, prefigura de imediato o final do livro.

É uma boa estreia, a de Filipe Nunes Vicente, ainda que a exagerando nos tiques modernistas e a necessitar de maior atenção à estrutura (o grande problema dos escritores portugueses) e aos detalhes, por forma a tornar mais credíveis as voltas da narrativa.

Sugerir correcção
Comentar