Triplo teste

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A liberalização das farmácias pode revelar-se um triplo teste para o Governo

Não podia ser mais esclarecedor o relatório da auditoria do Tribunal de Contas (TdC) sobre o mercado dos medicamentos entre nós (disponível no respetivo site), no que respeita aos malefícios dos limites legais à liberdade de estabelecimento de farmácias e sobre os seus custos sociais e financeiros. Será que mais uma vez tudo continuará na mesma, para vantagem dos felizes beneficiários das referidas restrições?

Diga-se tudo em duas frases sobre as consequências do protecionismo de que gozam as farmácias. Primeiro, as margens de comercialização (e logo as margens de lucro) das farmácias são muito superiores à média do setor retalhista em Portugal, com os consequentes sobrecustos para os consumidores e para o SNS, que comparticipa muitos medicamentos. O TdC conclui que o setor "tem uma rentabilidade que os sãos princípios da ciência económica e financeira não subscrevem de todo". Segundo, se houvesse liberalização das farmácias, a cobertura territorial do país melhoria significativamente, com a maior parte dos municípios (68% nos cálculos do TdC) a verem nascer novas farmácias, com os benefícios consequentes em matéria de acessibilidade, de concorrência, de preços e de qualidade do serviço.

Nada disto pode surpreender quem se debruce sobre o regime das farmácias entre nós, onde não vale o princípio da liberdade de estabelecimento que vigora para a generalidade das atividades de fornecimento retalhista de bens e serviços, incluindo outros serviços de saúde, como consultórios médicos e laboratórios da análises clínicas.

A história começa no Estado Novo, quando o grémio das farmácias consegue um regime legal altamente protecionista na criação de farmácias. Por um lado, foi instituído um exclusivo profissional na propriedade de farmácias, caso único na nossa ordem jurídica, mesmo no regime corporativista do Estado Novo, indo-se ao ponto de proibir a herança de farmácias por não farmacêuticos. Por outro lado, foi instituído um monopólio territorial, não podendo uma nova farmácia ser criada a menos de uma certa distância de outras já existentes, e uma contingentação populacional, não podendo nenhuma nova farmácia ser estabelecida se fosse ultrapassada uma certa capitação em cada concelho.

Para assegurar o respeito destas restrições, a criação de novas farmácias passava por um complexo procedimento administrativo que terminava na emissão de um alvará. Com a escassez artificial de farmácias assim instituída e com a sua elevada rentabilidade - e quase nulo risco do negócio -, não admira que o preço de trespasse de farmácias tenha progressivamente atingido preços exorbitantes (o TdC indica uma média de quase um milhão de euros), muito acima dos custos de instalação de uma nova farmácia, se a entrada fosse livre. Um alvará de farmácia transformou-se assim num meio de enriquecimento sem causa, como sucede sempre que se verifica uma escassez artificial de um produto. Por isso, como diz o TdC, "é de esperar que, em caso de liberalização da entrada, os valores de trespasse diminuam significativamente".

Omais estranho em tudo isto está em que depois do 25 de Abril nenhum Governo, de esquerda ou de direita, se propôs extinguir este regime de malthusianismo no comércio retalhista de medicamentos. Em 2007, o primeiro Governo de Sócrates decidiu rever o regime do estabelecimento de farmácias e do comércio de medicamentos, abolindo o exclusivo profissional na propriedade de farmácias - que tinha criado inúmeras situações de propriedade fictícia - e abrindo a possibilidade de venda de medicamentos não sujeitos em receita médica fora das farmácias (as chamadas "parafarmácias"). Mas não ousou tocar as restrições territoriais e populacionais ao estabelecimento de farmácias. Uma oportunidade perdida.

É altura de revisitar a questão. Por várias razões.

A primeira é o próprio relatório do TdC evidenciando a irracionalidade económica do atual protecionismo no estabelecimento de farmácias e sua manifesta incompatíbilidade com uma economia de mercado. A segunda é a existência de um Governo apostado numa filosofia de liberalismo económico e de concorrência sem obstáculos. A terceira é o programa de ajustamento acordado com a UE e com o FMI, que manda reforçar os mecanismos de concorrência na produção de bens e na prestação de serviços.

A quarta é a própria necessidade de reduzir os custos em medicamentos no sistema de saúde e para os próprios consumidores, quando o Estado diminui as comparticipações, objetivo que é posto em causa pelas elevadas margens de comercialização das farmácias, que obviamente oneram os preços dos medicamentos. Como conclui o TdC, "a persistência de ganhos das farmácias, acima dos outros setores de retalho, são evidência de que é possível diminuir os preços dos medicamentos, pelo aumento da concorrência".

Resta saber se este Governo quer e pode reunir a determinação política que todos os antecedentes não conseguiram ou não quiseram mostrar para vencer a misteriosa força do poderoso lóbi do setor, ou seja a ANF, cuja capacidade de influenciar os partidos de Governo e de dominar a comunicação social é por demais conhecida.

Parece, porém, evidente que, depois de suscitada pelo TdC - reiterando aliás as recomendações que há anos já tinha sido feitas pela Autoridade da Concorrência -, a liberalização das farmácias pode revelar-se um triplo teste para o Governo. Primeiro, um teste à consistência das suas convicções sobre a liberalização económica e o império da concorrência; segundo, um teste sobre a sua capacidade para realizar o objetivo de redução da fatura medicamentosa do SNS e dos consumidores; por último, mas mais importante, um teste à capacidade do poder político para se impor ao poder económico, ou ao contrário ser por ele subjugado. Professor universitário. Deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido Socialista (vital.moreira@ci.uc.pt); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

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