Anjos e demónios na companhia de Ana Teresa Pereira

Foto
Ana Teresa Pereira está sempre presente nos seus livros, mas "A Pantera" é "talvez o mais autobiográfico" de todos

Ana Teresa Pereira está de regresso com um romance escrito ao ritmo da música de Van Morrison (que é também óptima companhia para a leitura). "A Pantera" é mais uma viagem ao seu universo, aos seus fantasmas, à sua pequena companhia de teatro, uma família que se repete de livro para livro. Gonçalo Mira

As personagens de Ana Teresa Pereira costumam parecer-nos, simultaneamente, sempre distintas e sempre semelhantes. No novo "A Pantera", regressa o autor que se confunde com o actor, que se confunde as com personagens - e nisto é a própria escrita que se confunde com o teatro.

"Já há muitos anos que as minhas personagens têm o rosto de actores," diz-nos a escritora. "Gabriel Byrne, Jeremy Irons, Keira Knightley... A minha pequena companhia de teatro. Quando começo a planear um livro, tenho de descobrir quem são os actores. As personagens e os actores confundem-se totalmente." Já lhe aconteceu mesmo sentar-se ao lado de um destes actores, feito personagem: "Quando escrevi "Se Nos Encontrarmos de Novo", o protagonista era Gabriel Byrne. Uma noite, no Albery Theatre, ficámos sentados ao lado um do outro. Se eu escrevesse isto numa novela, seria inverosímil. E no entanto aconteceu. Encontrei a minha personagem, falei com a minha personagem... e o livro seria diferente se isso não tivesse acontecido."

Também em "A Pantera" há ecos desse encontro. A personagem central é Kate, uma jovem escritora que se envolve com Tom, um actor de teatro que, no auge da carreira, decide deixar de representar para se refugiar na sua casa de campo a ler policiais e a fumar. Kate aproxima-se de Tom porque vê nele a personagem ideal para o seu novo romance - do qual, mais do que autora, ela própria se diz actriz, levando-nos assim para um jogo de espelhos ou de bonecas russas do qual fazem parte Ana Teresa Pereira, as suas personagens (que têm muito dela), e as personagens das suas personagens. "No meu caso, sinto que tenho de entrar na pele das minhas personagens e de certa forma transformar-me nelas. Ou seja, um escritor também pode ser um "becomer"." Podíamos ir mais longe, mas por aqui já se tem uma ideia do que é o universo da escritora madeirense. E se Kate usa, ainda que a palavra possa soar demasiado pesada, Tom para escrever um livro, Ana Teresa Pereira admite já ter feito o mesmo por um livro seu. Ainda assim, não vê nisto um sinal de frieza: "Kate não é fria. Acho que é extremamente apaixonada. Corre o risco de destruir as pessoas à sua volta, mas também de se destruir a si mesma. Segundo Tennessee Williams, o único crime imperdoável é a crueldade deliberada. Kate nunca é deliberadamente cruel."

E Ana Teresa? ""A Pantera" é talvez o mais autobiográfico dos meus livros, mas de uma forma muito oblíqua," diz-nos a autora, e tememos de facto que esteja a falar de si, quando fala de Kate. "Senti uma angústia enorme ao deixar a minha personagem feminina no final do livro. Porque no fundo não sei o que lhe vai acontecer. Não quero saber."

Para além de continuar a escrever, como Ana Teresa Pereira, Kate terá provavelmente outras existências que anularão esta, ou que funcionarão como realidade alternativa. Na obra de Ana Teresa Pereira, as personagens, os lugares e as histórias são recorrentes. "A repetição fascina-me", diz-nos. Descarta-se, assim, qualquer acusação de auto-plágio: é um gesto consciente e faz parte do jogo literário que é a obra de Ana Teresa Pereira.

Não se trata, aqui, de haver um leque de personagens que vão sendo acompanhadas em diferentes fases da sua vida - opção relativamente comum em alguns escritores, de que é exemplo o trabalho genial de Salinger com a família Glass -, mas antes um sem fim de vidas alternativas para as mesmas personagens. "No livro "O Fim de Lizzie", há três histórias com as mesmas personagens, os mesmos cenários, quase as mesmas palavras. Há páginas de "O Mar de Gelo" que passaram para "Quando Atravessares o Rio". E alguns parágrafos passaram para "Inverness"."

Kate e Tom, as personagens centrais de "A Pantera", já tiveram outras vidas noutros livros de Ana Teresa Pereira. E, como estas, outras personagens vão sendo repetidas de livro para livro. Ao invés de se complementarem, as suas biografias tornam-se cada vez mais labirínticas, ao ponto de umas histórias tornarem impossíveis outras. Quase como se as personagens fossem não só inspiradas em actores, mas elas próprias actores, e cada livro novo fosse uma nova peça em palco com os actores de Ana Teresa Pereira, que muito provavelmente contracenaram noutras ocasiões.

Faz, por isso, todo o sentido, em "A Pantera", a referência aos fantasmas e demónios que assombram os actores. Os fantasmas das personagem que já passaram pelos palcos, dos actores que as encarnaram; e os demónios que povoam cada actor, das personagens a que já deu vida - e aqui dar vida funciona nos dois sentidos: no sentido de o actor ser possuído pela vida de uma personagem, mas também no sentido de lhe entregar um pedaço da sua vida, de haver um intercâmbio naquela existência comum do qual nenhum dos dois sairá sem marcas.

O escritor, como o actor, está vulnerável à presença dos seus fantasmas. Ana Teresa Pereira, ainda assim, garante-nos: "Na minha casa não há fantasmas de escritores e actores. Não por enquanto." O que não significa que tenha medo deles. "O que me assusta é não poder fazer o mesmo que Tom. Passar o resto da vida numa casa com um jardim, a ler romances policiais e a fumar. Na companhia dos anjos e dos demónios."

Uma escritora-mistério

A ligação de Ana Teresa Pereira às suas personagens não fica por aqui: "A minha secretária parece-se de uma forma assombrosa com a de Byrne [pai de Kate]." Percebemos, então, que o que há de autobiográfico nos livros de Ana Teresa Pereira não se esgota nas personagens femininas. Também há muito de seu em Tom e em Byrne, que são personagens simétricas: "Não é por acaso que Tom e Byrne têm quase a mesma idade, vivem em lugares parecidos, lêem os mesmos livros. Mas uma explicação freudiana seria demasiado simples." E, no entanto, há sempre uma relação muito forte das personagens femininas com a figura do pai, aliada a uma quase inexistência da figura da mãe.

O próprio título do livro - o de Ana Teresa Pereira, mas também o de Kate - é roubado a Byrne. Uns obscuros versos sobre uma pantera que "não são versos, são linhas soltas, anotações num caderno de Byrne." Ou seja, num caderno de Ana Teresa Pereira, na secretária de Ana Teresa Pereira, que é a secretária de Byrne.

Quando este universo começa a ser desvendado, ocorre-nos perguntar se a autora pensa nos seus leitores, durante o processo criativo. Se não teme confundi-los. Ana Teresa Pereira diz-nos que a sua "relação é com o livro": "Chegar a um ponto em que, como num conto de Borges, a realidade começa a ceder." Esta ligação ao que escreve assume quase um carácter religioso: "No fundo, é o que sinto quando passeio num jardim abandonado com a minha cadela, quando estou sentada junto a uma ninhada de gatos recém-nascidos, quando encontro num alfarrabista de uma cidade desconhecida um livro que procurava há muitos anos... Uma ligação com o universo, ou com qualquer coisa de que não sei o nome. É a única religião que conheço."

Escrever será a forma que Ana Teresa Pereira encontrou de rezar. Kate reza em gaélico, a língua que o pai lhe ensinou, desde pequena. No livro há algumas passagens nesta língua irlandesa, que permanecem obscuras para o leitor. A autora estudou a língua propositadamente para "A Pantera" (que de resto escreveu ao ritmo da música de Van Morrison). Não é capaz de explicar a sua ligação com o gaélico, "mas é muito forte". E, diz, "faz sentido, rezar em gaélico."

Pode dizer-se que há tanto de misterioso em Ana Teresa Pereira como nos seus livros. "O mistério atravessa o livro todo, o mistério que tem a ver com a natureza das personagens, com aquilo que as liga...", diz-nos, para depois nos confundir, rematando com um desejo transparente: "Raymond Chandler disse que um bom livro é aquele que leríamos mesmo que não tivéssemos as últimas páginas. Espero que "A Pantera" seja um bom livro."

Sugerir correcção