Ceausescu, como um pequeno Robert Mitchum

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Andrei Ujica construiu “Autobiografia de Nicolae Ceausescu” a partir do título: “Sou daqueles cineastas que têm de começar pelo título...”

"Autobiografia de Nicolae Ceausescu" é a crónica da ascensão e da queda do ditador romeno até às quase burlescas imagens do tribunal popular que o condenou à morte. Em entrevista ao Ípsilon, Andrei Ujica explica como entrou na cabeça de Ceausescu

Andrei Ujica, 60 anos, nasceu na Roménia, mas desde o princípio dos anos 80 que estabeleceu a sua base profissional na Alemanha. Foi aí que começou a realizar filmes, no princípio dos anos 90. "Videograms of a Revolution", feito em 1992 em colaboração com Harun Farocki, e centrado nas transformações políticas do Leste europeu, tornou-se um pequeno "clássico" do cinema de análise político-mediático. A monumental "Autobiografia de Nicolae Ceausescu" que agora chega a Portugal, inteiramente construída sobre imagens de arquivo produzidas pelo regime do "conducator", é ao mesmo tempo um filme histórico - a crónica de um "statu quo" entre a ascensão ao poder de Ceausescu e as quase burlescas imagens do seu julgamento em tribunal popular, em 1989 - e um melodrama psicológico, como se, nos seus instantes finais, Ceausescu revisse a sua vida, e a apresentasse em apologia. Em conversa telefónica, Andrei Ujica ajuda-nos a compreender a natureza das imagens com que trabalhou, e o lugar que Ceausescu - "como um pequeno Robert Mitchum" - habitou dentro delas.

Existe muito material filmado com Ceausescu? Mergulhar nele deve ter sido uma tarefa hercúlea...

Existem milhares de horas. É um material que está dividido por dois arquivos: num estão sobretudo as imagens filmadas para cinema, noutro as imagens para televisão. Para complicar as coisas, é um material que na sua maioria não está indexado, não existe um catálogo.

Como se processou, então, a sua pesquisa para esta "Autobiografia"?

Trabalhei com dois investigadores, que encarreguei de fazerem uma primeira triagem. Dei-lhes indicações tão rigorosas quanto possível para que soubessem exactamente o que procurar, nomeadamente uma lista cronológica detalhada dos acontecimentos mais importantes na vida política de Ceausescu.

Feita essa triagem, trabalhou directamente com quantas horas de filme?

260 horas.

E quando se atirou a essas 260 horas, já tinha uma ideia precisa do filme que ia fazer ou foi descobrindo ao longo do trabalho?

Mais ou menos. Tinha uma ideia da estrutura e tinha o título. Sou daqueles cineastas que têm que começar pelo título... A ideia principal era a estrutura em "flashback", como numa narrativa clássica. Pegar nas imagens de Ceausescu durante o julgamento no tribunal popular, e fazer entrar um retorno temporal. Que funciona como uma espécie de tempo psicológico, como se não se passasse mais do que uma meia dúzia de segundos, mas durante esse tempo toda a vida de Ceausescu lhe desfilasse perante os olhos.

Um dos aspectos decisivos do filme é a total ausência de "pistas" para o espectador. Nem voz "off", nem intertítulos explicativos, o espectador é atirado para o mundo de Ceausescu por sua conta e risco.

É verdade. A questão da narração "off" era fundamental. Quando comecei a trabalhar na montagem tinha algumas dúvidas; uma delas era saber se o filme se aguentava sem voz "off". Depois de ter os primeiros 20 minutos montados, examinei-os cuidadosamente: se sentisse que aquilo precisava de ter uma narração por cima, teria liminarmente desistido de todo o projecto. Para a questão dos intertítulos era mais flexível. Na verdade, no princípio do trabalho estava convencido de que, mesmo pretendendo construir uma narrativa do modo mais directo possível, seria necessário incluir algumas legendas a contextualizar esta ou aquela situação. Mas fui percebendo que a força da narrativa as dispensava, e que as imagens não pediam esse tipo de explicação.

Talvez não seja realmente importante saber isto para perceber o filme, mas é uma pergunta que surge durante o visionamento: qual foi o destino original destas imagens? Foram filmadas para quê, foram vistas como?

Na sua maior parte, foram filmadas por um estúdio que tinha a incumbência de produzir documentários sobre a vida oficial da Roménia. Propaganda de estado, basicamente, segundo um modelo decalcado do que acontecia na URSS. Estavam sempre presente em tudo o que era cerimónia protocolar ou acontecimento oficial. Mas é preciso dizer que Ceausescu gostava de ser filmado, tinha um prazer pessoal nisso. Normalmente, era filmado durante uma hora por dia. Agora faça as contas: uma hora por dia durante 20 e tal anos... Dá qualquer coisa próxima das 9.000, dez mil horas... E para além dos documentários havia a televisão, que também o seguia para todo o lado. É curioso que há muito material "duplicado", muitos acontecimentos que foram filmados, com ligeiras diferenças, pela equipa da televisão e pela equipa do cinema. Depois as imagens eram vistas, essencialmente, de duas maneiras: ou na televisão, onde Ceausescu falava todos os dias, numa espécie de programa de crónica política, ou no cinema, nos "newsreels" que tradicionalmente antecediam a projecção de uma longa-metragem de ficção. Mas atenção que boa parte do que era filmado nunca chegava a ser visto, nem sequer montado. Na "Autobiografia" incluí alguns destes "rushes", que nem sequer tinham som.

Obviamente, o cinema, e a imagem em geral, foi importante para o regime de Ceausescu. Mas, e não sei se será uma ideia errada, esta não parece uma propaganda especialmente sofisticada, se levarmos em conta o que conhecemos de outras ditaduras célebres, comunistas ou de outro género...

Não, não era muito sofisticada... No entanto, o filme deixa de fora a maior parte da propaganda mais espectacular; praticamente só vemos a propaganda quotidiana, muito simples. Mas também é verdade que essas tentativas de encenar grandes acontecimentos de propaganda foram sempre um fracasso. Ceausescu tentou, é certo, copiar os exemplos célebres, mas aquilo nunca resultou muito bem. Nesse género, Kim Il-Sung é que foi imbatível: para mim, ele foi o perfeito "link" entre Leni Riefenstahl, o "proletkult" estalinista, e os musicais da Hollywood dos "forties"...

E para além de, como disse, "gostar de ser filmado", que importância e que empenho conferia Ceausescu a esta propaganda filmada?

Por natureza, e não apenas porque os tempos eram outros, Ceausescu não era uma pessoa obcecada com os media. Não era uma "figura mediática" no sentido moderno do termo. Penso que ele acreditava sinceramente na necessidade de construir uma memória histórica, e essa era a importância maior que dava a esta incessante cobertura das suas palavras e das suas deslocações. Não distinguia entre a vida oficial e a vida privada, para ele era tudo o mesmo, e de tudo era importante guardar memória histórica. Havia uma crença ideológica muito simples: cada qual deve fazer o seu trabalho. Para Ceausescu, tudo isto fazia parte do seu trabalho. E ele desempenhou-o, pelo menos ao princípio, de forma muito minimalista, como um pequeno Robert Mitchum. Ceausescu era um profissional, e comportava-se como um profissional.

E tinha a noção de que ser um actor, desempenhar um papel, era uma das suas atribuições profissionais?

Perfeitamente. Julgo que para ele era perfeitamente claro que o seu trabalho era um trabalho de actor. Tinha um papel a desempenhar, um papel ideológico. Fazia-o convictamente, porque acreditava mesmo nesse papel e na ideologia que ele representava. É isso que lhe dá uma dimensão shakespeareana. Ceausescu, de certa maneira, foi uma vítima da sua crença, não foi certamente um oportunista como muitos outros dirigentes do Bloco de Leste. Era um tipo sério, genuinamente convicto e compenetrado no seu papel. Austero e minimalista. Como esse grande actor Robert Mitchum. Uma vez perguntaram a Mitchum por "estilos de representação" e ele respondeu que só conhecia dois: "com cavalo e sem cavalo". Ceausescu diria o mesmo: ou há cavalo ou não há cavalo.

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