O grande ditador

Com ditadores, tudo tem frequentemente tendência a ser uma questão de escalas e ordens de grandeza. Uma das coisas fascinantes de "Autobiografia de Nicolae Ceausescu" tem a ver com esta evolução rumo à total desproporção. Quer dizer: nas imagens dos primeiros tempos de Ceausescu como máximo dirigente do regime romeno ainda existe alguma realidade palpável, ainda podemos acreditar que está ali um homem como os outros rodeado de pessoas como as outras - ou seja, ainda não há "monstruosidade". E depois, compare-se isso com aquela alucinante sequência, já do final dos anos 80, quando tudo começava a ruir, e há um congresso em que um desgraçado (não sabemos quem era, se calhar nem era desgraçado nenhum) resolve criticar Ceausescu e apresentar-se como alternativa a ele; pois bem, tudo, nessa sequência (do gigantismo do auditório ao comportamento da plateia, como se fossem todos "clones" uns dos outros) representa já um mundo distorcido, que dispensa o próprio ditador (nesse momento, a presença de Ceausescu é "virtual") mas não se dispensa de ser o seu reflexo, o seu escudo, não se dispensa de ser um mundo refeito e redimensionado em exclusiva função dos desejos daquele que o conduz. Não era nisto que Bazin e Godard pensavam naquela frase que abre "Le Mépris" (e que falava disto: de um mundo substituído por um desejo para o mundo), mas é inevitável pensar que, por todas as razões e mais alguma, este filme também se podia chamar "O Cinema de Nicolae Ceausescu".


Este exercício de recomposição dos 24 anos do poder de Ceausescu é uma coisa notabilíssima. É denso, é cruel, é irónico, é complexo por detrás de uma aparência de simplicidade sem deixar de ser simples para além de toda a sua aparente complexidade. Ou seja, tanto é um trabalho prático de compilação de documentação (encontrada em milhares de horas de "footage" oficial do regime romeno), como um tratado, dir-se-ia entre a antropologia e a psicologia, sobre este ditador (e não outro qualquer), como ainda uma reflexão téorica sobre o poder e as imagens do poder (porque em certos pontos tudo se encontra, e Ceausescu não é totalmente diverso de outros ditadores de esquerda ou direita, nem mesmo de alguns "democratas"...). Na sua progressivamente alucinada mundanidade (seja perante a Rainha de Inglaterra seja com os operários de uma fábrica), o Ceausescu desta "autobiografia" parece a versão documental do Adenoyd Hinkel de Chaplin (no "Grande Ditador"). Mas, pela estrutura em "flash-back" lançada nos que seriam (sabemos nós, ele talvez não) os últimos momentos da sua vida (o surreal "tribunal popular" que o julgou a ele à sua mulher), pensa-se noutro cidadão que teve o mundo a seus pés, o Charles Foster Kane de Orson Welles. Mas não há "rosebud" nenhum, e Ujica nem sequer monta as (celebérrimas) imagens dos cadáveres do casal Ceausescu: o ditador chega vivo ao fim do filme, mas a sua humanidade, essa, desaparecera muitas imagens antes.

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