A voz do chão

Um tríptico sobre a fragilidade das relações humanas, a incapacidade de comunicação e a ideia de viagem como panaceia

O escritor sul-africano Damon Galgut (n. 1963) compôs um romance a partir da narração de três viagens (duas em África e uma na Índia), que funcionam como as partes em que a narrativa está dividida: "O Seguidor", "O Amante" e "O Guardião". Entre todas elas, o narrador, o sul-africano branco de nome Damon, é o elemento de ligação; é também comum às três histórias, que estão separadas no tempo por anos, o acto compulsivo de viajar (por parte do narrador), bem como as (talvez inesperadas) fortíssimas e breves ligações emocionais com outros viajantes, como se fossem necessárias a uma procurada redenção.

A primeira viagem pode resumir-se assim: num trilho que desce aos poucos até ao mar, entre serras cobertas de oliveiras e de pedras, caminha um homem. Nessa imensa paisagem grega, o único sinal de existência humana é uma ou outra casa, pequenas e distantes. Pouco depois, o homem avista ao longe outro homem que caminha em sentido contrário. Ao passarem um pelo outro, param. Não se conhecem. Acenam um cumprimento e sorriem. Trocam algumas palavras. Frases do género: "quem és" e "para onde vais". A povoação de Micenas é "equidistante" para aqueles viajantes. Encontrar-se-ão à noite, na pousada da juventude, no mesmo quarto, inesperadamente. Há tensão entre os dois homens, não abertamente sexual. Despedem-se na estação de comboios na manhã seguinte. Trocam moradas, convites para se visitarem. Um é alemão, Reiner, e o outro, Damon, é sul-africano. Passam-se dois anos. Damon escreve a Reiner e torna a convidá-lo. O alemão responde, chegará em Dezembro. Querem fazer uma viagem juntos. Têm o Botswana, a Namíbia, o Zimbabwe. Não sabem para onde ir. Vão para o Lesoto. Partirão em breve, de mochila às costas e mapas nas mãos. Não sabem que não terminarão a viagem juntos. Despedir-se-ão amargamente no cimo de uma montanha. Mas alguns meses depois, finda a viagem pelo Lesoto, o alemão voltará à África do Sul. E ficará por longas semanas na casa de um amigo de Damon. Cruzam-se na rua. Não tornarão a falar-se. "(...) é uma história por que ele já passou, é a história do que nunca chegou a acontecer, a história de percorrer uma grande distância permanecendo imóvel." (p. 147)

É esta estranheza que vem da descoberta da viagem como resultado do desespero, como uma panaceia para a incapacidade de estabelecer ligações duradouras, que por vezes torna "Um Quarto Desconhecido" um livro angustiante. Ao longo das estradas, como se o pó vermelho de África curasse essa "doença da solidão", o leitor acompanha o narrador (cuja voz oscila entre a primeira e a terceira pessoa, por vezes no mesmo parágrafo, mas sem ser confuso) numa incansável e estranha busca (de cura, de amor, de esquecimento da perda?). "Neste estado, viajar não é uma celebração mas uma espécie de luto, uma forma de nos dissiparmos. Vai andando de lugar em lugar, impelido não pela curiosidade mas pela aborrecida angústia de permanecer vivo." (p. 92)

"Um Quarto Desconhecido" foi um dos finalistas do Man Booker Prize 2010 - um outro livro de Galgut tinha já sido finalista do mesmo prémio em 2003. Classificar este livro como "romance" como o fez o autor, parece um deslocamento um pouco forçado quanto ao que comummente se considera esse género, mas que ao mesmo tempo parece fazer algum sentido pois emparelha com o sentimento de "deslocado" do protagonista.

A segunda história, que decorre anos depois do que nos é narrado na primeira, tem lugar em vários países da África Central (com começo no Zimbabwe, passa pelo Malawi, Tanzânia e Quénia). Mais uma vez o narrador liga-se a outros viajantes (um casal de gémeos suíços e um homem mais velho, francês). Entre Damon e Jerome (um dos gémeos) existe de novo uma estranha tensão de coisas não ditas; se na primeira história essa tensão não era abertamente sexual, nesta é de um erotismo frustrado desde o início e não se vislumbram alterações... Terminada a viagem em África, desta vez é Damon quem vai visitar Jerome à Suiça. "Há um instante em que todas as verdadeiras viagens têm início. Por vezes acontece ao sairmos de casa, noutras sucede já muito longe de casa." (p. 94)

Na terceira história, talvez a mais estranha, Damon acompanha Anna, uma amiga lésbica, na sua terceira viagem à Índia; e desta vez para evitar o suicídio, pois o relatório do psiquiatra na Cidade do Cabo é bastante preocupante sobre o seu estado mental. Damon Galgut mergulha (e mergulha-nos) no caos emocional vivido por Anna, e mostra-nos quão ténue pode ser a força da voz do chão que nos prende a um lugar de maneira "normal".

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