"Os combatentes pela liberdade cometeram muitos erros"

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Rebeldes que combatem o regime líbio fotografados ontem em Bengazi GIANLUIGI GUERCIA/AFP

O fim do regime de Khadafi parece agora mais próximo. O ditador poderá já nem estar em Trípoli, tendo planeado a fuga para outro país em África, através da Argélia ou do Chade. Após seis meses de uma sublevação transformada em guerra civil, um dos mais influentes activistas políticos líbios explica por que se prolongou este conflito, o que o distingue da revolta síria e qual o futuro do seu país sem o excêntrico coronel que há quatro décadas o governava.

Adel Mekraz, professor de Engenharia na Universidade de Wisconsin-Stout, é um dos mais influentes activistas políticos líbios exilados nos Estados Unidos. Natural de Trípoli mas com cidadania norte-americana desde 1996, Mekraz deixou o seu país em 1979, aos 19 anos, para estudar em Londres e revisitou-o pela última vez em 1982, ano em que tomou conhecimento de que o seu melhor amigo tinha sido assassinado pelo regime. Deu esta entrevista ao P2 via e-mail:

A resistência líbia já terá entrado em Trípoli, depois da conquista de várias cidades estratégicas e deserção de figuras de peso do regime, como o antigo "número dois", Abdel Salam Jalloud, que ajudou Khadafi a derrubar a monarquia no golpe de 1969, e os ministros do Interior e do Petróleo. Apesar de avanços e recuos, analistas políticos já prevêem o fim iminente de 41 anos de poder de Muammar Khadafi. Por que se prolonga este conflito há seis meses?

Em relação à deserção de Jalloud, é preciso dizer que ele não era, desde há 19 anos, uma figura popular ou influente, porque tinha sido marginalizado. É mais importante agora, porque encorajou a sua própria tribo e a de Khadafi, assim como os habitantes de Trípoli [um quarto dos mais de seis milhões de habitantes] a juntar-se à revolução. Quanto ao arrastamento do conflito, há várias razões. A primeira é que o ditador, obcecado com a sua segurança, se preparou a si próprio e às suas forças leais para qualquer tentativa de o derrubarem, num golpe militar ou numa sublevação. As suas forças leais fizeram nos últimos 25 anos exercícios militares para manter o controlo de Trípoli na eventualidade de uma guerra de milícias, de uma invasão de forças estrangeiras ou de uma sublevação. Os acontecimentos na Tunísia e no Egipto alimentaram ainda mais essa paranóia, e ele começou a aprontar-se para o cenário de uma insurreição, contratando mercenários enquanto ainda decorriam as revoluções na Tunísia e no Egipto.

Segunda razão: A transformação de uma sublevação civil num confronto militar. Este será um tópico interessante de estudo para académicos e investigadores. Será que a rebelião líbia estava destinada a ser um confronto militar ou isso ficou a dever-se à inexperiência dos líderes da sublevação? Será que o regime teria esmagado totalmente a rebelião se o povo tivesse continuado a resistir pacificamente sem ter de recorrer às armas? Há unanimidade entre os líbios que apoiam a revolução de que não tinham alternativa a não ser usar armas contra o ditador porque ele jamais cederia às reivindicações civis, nem tem a personalidade para ser um negociador. Certo ou errado, transformar uma revolta civil numa confrontação armada foi uma boa notícia para o déspota porque ele estava preparadow para ela.

Terceira razão: A oposição não possuía armas pesadas sofisticadas, treino e outras capacidades. Era preciso muito tempo para criar um novo exército com estrutura, hierarquia e generais - e este esforço foi sendo feito enquanto se lutava para ganhar a guerra no campo de batalha.

Quarta razão: Embora o apoio à revolução fosse esmagador, não houve vontade política, sobretudo no Ocidente, para dar armas aos combatentes líbios nos primeiros meses da sublevação.

Quinta razão: o Chade e a Argélia desempenharam um papel significativo na assistência a Khadafi e também isso fez arrastar a guerra. Aqueles dois Estados ajudaram o regime líbio no recrutamento e transporte de mercenários, fornecimento de armas e petróleo. O governo chadiano até enviou algumas das suas próprias forças para lutarem ao lado do ditador.

Sexta razão: A Líbia é um país muito vasto, com uma linha costeira de quase 2000 quilómetros e um gigantesco deserto. A distância entre Bengazi, sede do Conselho Nacional de Transição [CNT], e Trípoli, é de cerca de mil quilómetros. Bengazi é significativa porque aqui começou a organizar-se a revolta contra o regime. Estar a grande distância da capital dificultou o esforço para influenciar o que acontece em Trípoli, e foi um grande desafio para a oposição.

O cenário de uma guerra civil sangrenta depois da queda de Khadafi nunca foi excluído. Esse risco permanece, uma vez que a Líbia tem sido definida como uma sociedade dividida entre tribos e clãs rivais?

Uma guerra civil sangrenta é o que temos vindo a assistir, embora muitos líbios não lhe queiram chamar "guerra civil". Mas é uma guerra que opõe líbios a outros líbios. O risco de, no pós-Khafafi, vermos o país cindir-se é muito baixo. Cidadãos de várias regiões da Líbia têm combatido ombro a ombro contra as forças de Khadafi. Rivalidades de tribos e clãs foram estratégia do regime para dividir e governar. Ainda que a Líbia tenha algumas estruturas tribais, eu que nasci em Trípoli, nunca tive uma vida tribal e os meus pais nunca me falaram em lealdades tribais. A maior parte da Líbia urbana [concentrada em Trípoli e Bengazi; 88 por cento da população] não é tribal.

Há quem atribua uma grande relevância à tribo Zintan, que se revoltou em Março contra Khadafi mas que não manterá boas relações com o Conselho Nacional de Transição (CNT), em Bengazi, onde não terá representação. Pode esta tribo fazer descarrilar uma solução pacífica após a queda do coronel?

Zitan é uma pequena localidade de cerca de 25 mil pessoas. Não é muita expressiva se a compararmos à escala nacional. Contudo, o seu contributo para a sublevação da população Amazigh [berbere] que reside nas montanhas ocidentais da Líbia tem sido bastante significativa, já que os Zitan combateram as forças de Khadafi de uma forma muito aguerrida e libertaram aquela região. Nunca ouvi dizer que os líderes de Zitan têm más relações com o CNT. Zitan tem recebido muita assistência do CNT nos últimos meses: armas, munições, alimentos, medicamentos e dinheiro. Ficaria muito surpreendido se Zitan obstruísse uma transição pacífica. Creio que muitos dos líderes das vilas e aldeias, assim como os movimentos políticos emergentes na Líbia, depois de viverem sob uma ditadura durante tanto tempo querem afirmar a sua dissidência e exprimir os seus próprios pontos de vista e divergências. A maioria das pessoas compreende, porém, que a situação no país é delicada e que é necessário preservar alguma unidade.

Apresenta um retrato do CNT como um grupo unido, mas o recente assassínio do general Abdul Fatah Younis, ex-ministro de Khadafi, foi interpretado como sinal de caos entre a oposição. Como explica este suposto "ajuste de contas pessoal e político"?

Parece-me que existem dois factores de desestabilização em Bengazi, a base da oposição, no Leste da Líbia. O primeiro relaciona-se com as várias milícias que se formaram no início da revolução; e o segundo é a existência de elementos clandestinos pró-Khadafi na cidade. Embora as milícias que foram criadas tenham proclamado a sua lealdade e apoio ao CNT, algumas delas querem, ao que parece, destacar a sua independência. Talvez o CNT tenha cometido um erro ao não integrar atempadamente essas milícias sob seu comando. Isso estará a ser feito agora. As forças em Bengazi confrontaram, mataram e prenderam entre 100 e 150 combatentes que eram apoiantes de Khadafi. Foi, de novo, mais um erro do CNT. Estes indivíduos eram suspeitos devido à sua anterior associação ao regime, e o CNT deu-lhes o benefício da dúvida, na convicção de que poderiam mudar de ideias. Mas esses indivíduos perderam muito poder e prestígio, por isso, decidiram combater a mudança fingindo ser apoiantes da revolução. Não há dúvida que o CNT cometeu muitos erros, dos quais resultou o assassínio de Younis. Uns dizem que o general foi morto por forças de Khadafi; outros que foi vítima de combatentes desiludidos. Eu aguardo os resultados de uma investigação que está a ser conduzida.

Como avalia a colaboração da oposição com a NATO? E, em particular, as declarações (sob anonimato) de alguns responsáveis da Aliança de que uma vitória dos rebeldes criará um "cenário catastrófico" de vazio de poder porque eles "não estão preparados para governar"?

A NATO está na Líbia para fornecer apoio aéreo [mais de 7000 ataques contabilizados até ao momento] e reduzir a capacidade de o regime bombardear cidades e civis. A batalha no terreno é da responsabilidade dos combatentes pela liberdade. A NATO abre caminho aos combatentes da revolução e retira qualquer vantagem ou superioridade às forças de Khadafi - é só isso o que os combatentes pela liberdade querem. Sobre a alegada desconfiança da NATO em relação aos lideres do CNT, o que sei é que, no início da revolução, havia preocupação por parte dos aliados americanos e europeus de que alguns membros da oposição estivessem ligados à Al-Qaeda. Depois de várias visitas a Bengazi e reuniões com dirigentes do CNT, creio que esses receios já se tenham dissipado. Se nos referirmos às preocupações dos EUA e aliados de que o CNT não tem experiência e duvida da capacidade deste poder gerir o país na sequência da queda de Khadafi, então posso dizer que essas preocupações são legítimas. Mas, mesmo neste caso, pensemos no que aconteceu na Europa de Leste após o colapso do comunismo. A Polónia e a Checoslováquia tinham dois presidentes: um era líder de um movimento sindical [Lech Walesa, do Solidariedade], o outro era um poeta e académico [Vaclav Havel] sem experiência em política. Estes dois países têm percorrido desde então um longo percurso.

Depois da queda de Khadafi alguém poderá emergir como líder de um governo de transição ou haverá uma direcção colectiva?

O CNT [que está a preparar um roteiro prevendo eleições num prazo de oito meses após a queda do regime, de modo a garantir a manutenção do apoio militar ocidental, que dura há quatro meses, e de uma maciça assistência financeira internacional] vai continuar a liderar no período de transição. Na Líbia, a maioria da população apoia este Conselho. Há unidade suficiente, porque as pessoas sentem que esta é a oportunidade de ouro, pela qual sempre ansiaram, para resgatarem o seu país.

O que distingue a revolução líbia de outras no mundo árabe, sobretudo na Síria de Bashar al-Assad, onde potências estrangeiras se mostram relutantes em intervir (excepto com sanções) apesar de centenas de mortes diárias de civis, incluindo crianças, e onde a população rejeitou essa ingerência externa?

A Líbia não tinha partidos políticos ou sociedade civil porque tudo isso foi banido pelo ditador. A sublevação foi espontânea, desorganizada, mas também foi uma revolta para recuperar a liberdade e a dignidade, pelas quais o povo estava disposto a morrer. A Tunísia e o Egipto tinham partidos políticos e sociedade civil, ainda que marginalizada pelos respectivos regimes. A Síria é muito parecida com a Líbia.

Até agora, a oposição síria tenta passar a imagem de um conflito de civis contra o gigantesco exército dos Assad, mas não sei por quanto tempo mais as pessoas vão resistir a não usar armas. A oposição síria preocupa-se com uma intervenção estrangeira porque, estrategicamente, a Síria é mais importante para o Ocidente do que a Líbia, sobretudo devido ao papel que a Síria tem desempenhado no conflito com Israel e devido às suas relações com o Irão.

Os sírios querem ver-se livres da ditadura mas apoiam a posição de Bashar face a Israel, e temem que uma intervenção exterior possa mudar o rumo do conflito com Israel. Quanto à hesitação de as potências estrangeiras interferirem na Síria é sinal de recursos limitados. Os Estados Unidos e os seus aliados europeus já se envolveram demasiado no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e em muitos outros países pelo mundo. Acrescentemos a isto a recessão mundial que dura há três anos e a falta de vontade de investir mais dinheiro nestes conflitos a que se opõem os cidadãos americanos e europeus, e ainda como estas intervenções podem afectar tentativas de reeleição.

A Líbia conseguirá entrar num processo democrático pacífico, como está a acontecer na Tunísia, e de justiça, como vemos no Egipto, onde o ex-Presidente Hosni Mubarak e a sua família compareceram perante um tribunal com o povo a assistir?

Sim, acredito que a Líbia conseguirá paz e justiça. No entanto, muito dependerá do que o CNT fizer e disser. O Conselho de Transição tem de aconselhar as pessoas a acalmarem-se; tem de garantir que os antigos dirigentes contra os quais há acusações serão julgados. Será importante que o CNT assegure que ninguém pode ajustar contas com as suas próprias mãos.

E Khadafi? Terá o mesmo destino do tunisino Ben-Ali, que se refugiou no luxo da Arábia Saudita, ou o de Mubarak, que não escapou à humilhação pessoal de um julgamento público?

Com base no que entendo da personalidade e pensamento do ditador, creio que ele vai, muito provavelmente, fugir do país, assim que pressentir que perdeu Trípoli. Não temos a certeza de que ele ainda esteja na capital. Pessoalmente, desconfio que já não esteja em Trípoli e que apenas aguarde o resultado da batalha final. Assim que souber que perdeu a cidade, fugirá via Argélia ou Chade, e daqui encontrará outro país, em África, que não seja membro do Tribunal Criminal Internacional e onde possa ficar. Se for capturado, será durante a sua tentativa de fuga da Líbia.

Como define o legado de Khadafi?

Ele foi um ditador brutal, que se serviu apenas a si próprio. Um homem excêntrico que acreditava ser um presente que Deus ofereceu ao povo. Sairá de cena como um dos piores ditadores da história moderna.

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