O antimulticulturalismo falhou

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Quando eu era miúdo, havia três possibilidades na minha família: ser-se católico, comunista ou protestante. Muitos eram católicos, mas na maior parte pouco católicos. O comunismo era comum naquelas paragens do Ribatejo e talvez nascesse de raízes mais antigas. O protestantismo era a única coisa bastante recente (anos 60) e nada bem aceite no início.

Hoje, quando a família se junta, há gente de outros países e continentes, de outras cores de pele, e não só de outras igrejas mas de outras religiões não-cristãs (ou nenhuma). Quer isso dizer que a família está mais multicultural? Depende do que queremos dizer. Distinguirei aqui quatro possibilidades dessa palavra.

Há dois tipos de referência à multiculturalidade. Uma referência descritiva é aquilo que acabei de fazer e não implica aprovação ou reprovação. Muita gente fica zangada quando dizemos que a sociedade está mais multicultural, mas dizê-lo é o mesmo que dizer que ela está mais urbanizada. É descrever um facto; recusá-lo não o mudaria.

Outra referência é a prescritiva, e aqui sim há uma recomendação de quem acha que a sociedade deve compreender e acolher essa multiculturalidade, ou que acolhê-la bem é melhor do que acolhê-la mal. Esta referência prescritiva, embora possa parecer uma consequência natural da descritiva, não é aceite por muita gente, que a chama de multiculturalismo.

Também o multiculturalismo, para simplificar mesmo muito, vem em dois sabores principais.

A um deles chamarei "compartimental"; é vincadamente conservador. Trata-se da ideia de que cada cultura é um compartimento estanque, quase imutável, e que não devemos interferir com o que se passa lá dentro.

Outro é o multiculturalismo a que chamarei "extenso", e que é essencialmente cosmopolita. Trata-se da ideia de que cada cultura é recombinável com as outras, e depois declinada de forma diferente por cada indivíduo, o que faz dela potencialmente infinita. Neste sentido, é da natureza da cultura humana trazer em si todas as culturas possíveis. A nossa cultura depende do que fizermos dela, ao combinar identidades (na minha família havia comunistas católicos) ou inventá-las (um tio chateou-se com tanta briga e - história verdadeira - resmungou um dia "eu cá não sou protestante nem católico: sou alcoólico"). A interferência é inevitável e, se for para potenciar a liberdade de cada um recriar a sua cultura, desejável.

Nos últimos anos tem sido moda, principalmente entre os políticos, proclamar que o multiculturalismo falhou. Mas estes políticos nunca dizem que multiculturalismo falhou. O descritivo? Seria quase como dizer que o termómetro falhou. O prescritivo? Se sim, não basta dizê-lo, há que dar alternativas e só aparecem duas possibilidades: assimilar completamente todas as diferenças, a todo o custo, mesmo quando não há qualquer benefício; ou excluir qualquer diferença, o que no fundo significa aceitar a compartimentação das culturas.

Se porventura o multiculturalismo falhou, então o antimulticulturalismo nem chegou a estar perto de acertar. Ou começa por negar a realidade, ou recusa explicar o que fazer com essa realidade. Se o faz, ou acaba por cair nos mesmos resultados excludentes que pretendia recusar, ou então cai num discurso inconsequente (e ainda bem: para quem o leva às últimas consequências, esse discurso torna-se acrimonioso e mesmo violento).

Estes políticos falharam já em tanta coisa - na economia, no emprego, na Europa, numa visão de futuro para toda a sociedade - que o antimulticulturalismo deles só lhes serve para não falhar numa coisa: como manobra de distração.

Deputado independente ao Parlamento Europeu (http://twitter.com/ruitavares): a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

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