Viagem pelo país surreal da toponímia (I)

Ao longo de nove séculos de história, Portugal conheceu incontáveis episódios, albergou personagens únicas e adoptou referências geográficas. Todas essas influências fazem da toponímia um mergulho num mundo quase surreal. Perpescoço, Quinta do Peixe Carne, Foros da Pouca Sorte, Labreca do Bisca, Pés Escaldados, Monte da Fome Negra, Deixa o Resto, Papa Toucinho, Totenique Rachado... Apertem os cintos!

Portugal. A nação com fronteiras definidas mais antiga da Europa. O nome vem-lhe da cidade do Porto, dizem uns. Ou da localidade de Cale (agora Vila Nova de Gaia), afiançam outros. Só nos faltava mais esta para inflamar a rivalidade entre as duas urbes da foz do Douro... Bom, talvez para evitar confusões deste tipo, os portugueses deram por si a puxar pela imaginação para que os nomes das suas terras não se confundissem com quaisquer outros. Nem sempre correu bem, mas este esforço de séculos brindou-nos com uma toponímia onde abundam pérolas inacreditáveis de sentido poético, rigor histórico e justas homenagens. Mas também brejeirices e disparates para todos os gostos.

Tomando como base de trabalho a base de dados do Reportório Toponímico de Portugal, compilado pelos Serviços Cartográficos do Exército, é possível mergulhar no alucinante universo dos nomes das terras portuguesas. Não é missão que se enfrente de ânimo leve: mesmo reduzindo a gigantesca lista apenas a povoamentos, ainda ficam quase 170 mil entradas. Só no território do continente...

A tarefa apresenta-se ciclópica. Abrir a letra "B" e apanhar logo pela frente com uma lista que começa em Babais e prossegue com Babau, Babe, Babeito de Baixo, Babeito de Cima, Babô de Baixo, Babô de Cima, Babosa, Baçal, Bacalhoa é o tipo de embate frontal que pode levar a nossa alma a levitar por cima do corpo, antecipando uma misericordiosa morte. Mas há que resistir e seguir em frente. Sem pressas, que a viagem é longa e recheada de peripécias.

Para começar, saudemos os portugueses que pensaram no seu próximo e nos tempos de austeridade que haveriam de chegar. Os magnânimos habitantes de Co, Cô, Mó, Pó, Sa, Sá, Sé, Tó, Ul e Uz pensaram mais nos outros do quem si mesmos ao optarem por nomes curtos. E, com este exemplo de modéstia, garantiram um lugar, se não na história, pelo menos nos parágrafos iniciais deste texto.

Um grande bem-haja também para todos os que se esforçaram por imitá-los mas fraquejaram sobre a meta. Há dezenas de localidades portuguesas cujo nome se escreve com três letrinhas apenas - entre as quais, claro, Mãe. E Mãe há só uma, como diz o velho adágio popular, enquanto o Pai aparece associado às mais estranhas companhias: há o Pai Cabeça, o Pai das Donas (nome vagamente susceptível de despertar suspeitas de proxenetismo), o Pai do Vento, o Pai Moço, o Pai Torto ou o Pai Avô (e aqui assola-nos o fantasma do incesto!).

Nomes grandes...

Adiante. Infelizmente, os portugueses são mais dados à prosápia do que ao bom senso, mais adeptos da grandiloquência do que da síntese, mais virados para a poesia do que para a prosa. (E são também mestres do desenrascanço, mas essa parte há-de vir lá mais para a frente.) Ou seja - para não cair no pecado de falar muito sem dizer nada -, a toponímia portuguesa é particularmente generosa em nomes complexos e extensos.

Sempre que pensamos em terras com nomes compridos, há logo algumas que nos vêm à memória: Figueira de Castelo Rodrigo, Freixo de Espada à Cinta (este, além de comprido, é também muito visual...), Vila Real de Santo António. Mas quem as baptizou faz figura de aprendiz de feiticeiro perante portentos como Moinho do Casito da Vinha Pinheiro, Monte Cabeceiras de Vale de Zorras, Monte da Sobreira Formosa de Baixo, Monte do Formozil de São Cristóvão, Monte do Outeirinho da Casa Branca, Monte do Ribeiro dos Frades de Cima, Monte do Ribeiro dos Frades do Meio, Monte Novo da Portela das Colmeias, Monte Novo da Senhora da Conceição, Quinta da Tapada Nova do Pucarinho, Quinta de Nossa Senhora da Boa Nova, Quinta do Ferragial Junto à Caeira, Quinta Nossa Senhora da Conceição.

A contabilidade do Word devolve-nos uma cifra impressionante: todos estes nomes têm 29 caracteres, sem espaços. Mas ainda não chegámos ao limite. A Quinta Santo Antão da Alverenheira chega aos 30 caracteres, a Quinta de Nossa Senhora do Monte Sião só pára nos 31, o Monte Santo António Chafariz d"El-Rei chega aos 33. Notável e imbatível. A não ser que... e lá está ele, o vencedor mistério, a localidade que vergou os abnegados topógrafos do Exército! Quase escondido na multidão de "montes" aparece o Mte da Mal. Dos P. De Guiz. Brancos. Mesmo nesta versão decepadadíssima, são 28 caracteres e oito palavras. Qual será a identidade secreta desta superlocalidade? Aceita-se ajuda.

O Monte Novo da Água de Todo o Ano também tem oito palavras, juntando-se, assim, ao rol de candidatos ao nome mais complexo da nossa toponímia. Mas, apesar da riqueza da sua mensagem, não tem hipóteses neste campo, quando confrontado com o Monte do António Que Manda a Mãe...

... e grandes nomes

Quem seria a mãe do António e por que razão ia (onde, quando, porquê?) no lugar do filho é daqueles mistérios que valeria a pena desvendar. Mas, enquanto não o fazemos, resta-nos constatar que esta estranha relação familiar é apenas um dos dramas que se adivinham nas referências toponímicas do país.

Que estranho fenómeno paranormal indicia o Monte do Chora Cascas? Que mistério se esconde na Quinta do Homem Morto? O Casal do Mau Vizinho é um nome justo ou é fruto da má-língua? E Deixa o Resto? Rabo de Toureiro? Cai Logo? Afoga Asnos?! Cega Gatos de Baixo?!! Já topónimos como Inteiro Quente, Mesinha de Pé, Voz de Cadela ou Ângulo Quarenta têm todo o ar de estarem codificados...

Será caso para desabafar: Nunca Pensei. Pois Pudera... É que estes exercícios de furtividade não passam incólumes perante uma análise mais cuidada. Porque a regra é os nomes falarem por si: A Ver o Mar, Folga Em Palha, Já Se Fez, Já Se Vê, Monte do Cai para Trás, Castelo de Ladrões, Quinta do Alça-a-Perna, Água de Todo o Ano, Barranco do Cai Logo, Foros da Pouca Sorte.

Nalguns casos, no entanto, o esforço para ser o mais explícito possível revelou-se redundante. Explica-se tanto que ninguém percebe nada. É o caso, por exemplo, de Quinta do Peixe Carne - tipicamente um nome que não é carne nem peixe. Também poderíamos falar de Perna de Trás... o quê?! Ou de Monte da Água Boa Velha. Em que ficamos? É boa? É velha? Velha e boa é que não - isso, se tudo correr bem, acontece é com o vinho, porque o vinho é uma coisa maravilhosa, mas a água, em sendo pura e cristalina... o vinho é muito melhor.

Perdão, mas a boca estava a ficar seca. Prosseguindo: por que diabo há tanta Lagoa e nenhuma tem nome de peixe? Só pode ser para despistar. É como encontrar uma Orca na serra da Gardunha... Outros casos de aparente contrasenso são Sub-Arriba, Alto de Baixo, Casa Nova de A-da-Velha, Fonte Seca, Património dos Pobres (este só pode ser a gozar com quem trabalha!). Também não se percebe o que queriam os habitantes de Évora de Alcobaça dizer com este nome... Ou então Quinta do A de Junho. Que estranhas substâncias consumiu a população local antes de se decidir por este topónimo? A de Junho?! Onde é que eles viram um "a" em Junho?!

Para evitar más leituras, os habitantes de Entre Ambos-os-Rios, de Casa Velha Velha e de Casal de Dois explicaram-se bem. Até de mais, ao ponto de se tornarem redundantes. Também se consegue perceber Linda-a-Pastora, mas Linda-a-Velha já custa a engolir... Bom, pelo menos está bem escrito, o que, infelizmente, não se pode dizer de muitas outras localidades portuguesas. Ó gentes de Casa do Rapasinho, Ceguintes, Centinela, Capitosa, Limãos, Monte dos Liões, Paraizo, Vale do Assucar, Brosque, Casal do Previlégio, Vardadeiros, Caniçal Simeiro, atenção à ortografia!

Falhanços de marketing

Há casos mais graves do que outros. Imaginemos um habitante de Escalada: se não perceber o aviso da tabuleta de Alavancha pode dar-se uma tragédia! E depois há os erros que até se desculpam pelas boas intenções que encerram. Que culpa têm os habitantes de Sarabagos de estarem dodos gonsdibados guando hobedagearam o dosso Dobel?

Um bom topónimo pode ser, nos dias que correm, um forte trunfo de marketing. Entre comprar casa no Casal da Tranquilidade ou em Fonte do Mijo, diga lá o leitor, para que lado se inclina? Pois. Por que raio haveria um local de se chamar Campo de Víboras? Caneco, o velho desabafo "no campo é que se está bem" não se aplicava certamente a estas paragens! Ou então Cova da Onça - ninguém quer dormir num sítio destes. É um pouco como ir jantar ao Monte da Fome Negra...

Alma Daninha, Baiúca, Bota Fora, Brejo dos Gatunos, Cadela Morta, Casal Mau Tempo, Chiqueiro, Dominga Feia, Enforcados, Estragadinho, Favela, Figueiras Podres de São João. Ó malta, que treta de ideias foram estas?! Uma moça apresenta-se numa entrevista de emprego e diz que é da Foz do Vale das Porcas? Totalmente inaceitável. Um jovem casadoiro fica a saber que a sogra é de Inveja, ou de Má Vontade, ou de Maçada. É preciso um grande amor para resistir a estes oráculos de Miséria, Pouca Sorte, Mau Caminho...

A estranha atracção do abismo levou mesmo a exageros inacreditáveis. Se queriam ser negativistas, os habitantes de Triste Feia não poderiam ter ficado só com uma das opções? E, de todas as maleitas que afectam o corpo humano, não havia uma mais, digamos, agradável do que Mioma? Não dá mesmo para perceber, a não ser que a decisão fosse optar pela primeira palavra ou expressão que nos viesse à cabeça ao olhar para a localidade - e aí percebem-se Mau Tempo, Passa Frio, Pedaço Mau, Pindérico, Pocilga, Sujeira. Talvez até Rebenta Boi, mas isto já nos levava para um cenário de filme de série B (e o cinema está guardado lá mais para a frente).

Esqueçamos por momentos o processo de baptismo da localidade e pensemos, antes, na forma como as pessoas se juntaram ali. Que estranho apelo teriam sítios que depois vieram a chamar-se Águas Mortas, Alperchina Pobre, Quinta da Morte, Quinta do Veneno, Terra Ruim, Vale Morto, Vinhas Mortas? Terá sido apenas um Mau Ano? Ou os desamparados povoadores foram iludidos e deram consigo no Casal dos Barretes?

Poesia à solta

Felizmente, para cada terra horrivelmente triste e sombria parece haver várias onde a alma se ilumina e a vida promete alegrias sem fim. Colinas Verdes, Ervas Tenras, Céu, Nuvens, Perfume. Nem é preciso descrever a paisagem destas belas localidades, onde só não encontra o Amor, a Cortesia, a Honra, os Sonhos ou a Sorte quem não estiver mesmo para aí virado.

É perfeito estar no Monte Boa Ideia e viver no Paraíso, nestes Sete Céus onde Está Tudo Bem, numa eterna Primavera, Sempre Verde. Interessado? Procure no mapa Fonte dos Amores, Horta da Boa Vida, Maravilha de Baixo (também há de Cima e do Meio), Penedo da Meditação, Penedo da Saudade, Quinta do Bom Gosto, Quinta do Cantinho do Céu, Tapada das Águas de Verão, Vale Paraíso, Vale Risonho, Vila Alegre.

Que raio, a vida não há-de ser só urbanizações com nomes começados por Varandas ou Terraços... E isto sem insulto para Varanda do Pilatos, uma terra a sério, a quem só mesmo Jerusalém do Romeu pode fazer sombra.

E todos estes nomes revelam que a população se esforçou para passar a sua mensagem. Esforçou-se e conseguiu alcançar esse nirvana da civilização que é o consenso - condóminos de todo o mundo, vocês sabem do que eu estou a falar! Quantas vezes se torna impossível dar o mais pequeno passo que seja em frente, porque cada um tem a sua ideia e acha sempre que ela é melhor que a dos outros... Infelizmente, a nossa toponímia reflecte alguns desses becos sem saída.

Bodabeleira. Isso mesmo: Bodabeleira. Alguém no seu perfeito juízo e livre de influências psicotrópicas se lembraria de uma coisa assim? Não, claro que não. O que há-de ter sucedido é que, na impossibilidade de se chegar a um consenso, os habitantes decidiram aglutinar uma sílaba de cada uma das propostas. E foi também assim que surgiram placas onde estão estampados nomes como Calarebado, Marambalha, Meligioso, Penabeice, Saquinibaque, Trelacosinha.

Lamentavelmente, noutros - muitos - casos nem sequer o caos explica as decisões toponímicas tomadas por gerações e gerações de portugueses. De nomes que parecem oriundos de galáxias distantes a outros orgulhosamente impronunciáveis, Portugal está cheio de terras com nomes impróprios para consumo. E de alusões ao sexo. Bom, é disso que falaremos no próximo sábado.

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