Os videojogos são arte e por isso podem ser violentos?

O Supremo Tribunal americano recusou-se a proibir a violência nos videojogos, em nome da liberdade de expressão. Há quem diga que a medida responsabilizará os criadores

Por fim, o personagem principal captura o homem que assassinou brutalmente a sua mulher e a filha. Numa cena, o assassino está preso a uma mesa de tortura, depois de lhe ter sido injectada uma droga paralisante, que o impede de mexer-se, mas não de sentir dor. Depois, o protagonista dá-lhe uma injecção de adrenalina, para que não desmaie. Em seguida, corta-lhe as pálpebras, para que não possa fechar os olhos e seja obrigado a assistir à sua própria tortura num espelho pendurado no tecto. O assassino acaba por ser completamente mutilado.

Este é o género de cena que costuma exacerbar as vozes que frequentemente se erguem contra a violência nos videojogos e contra o efeito que produz nos jogadores, especialmente nos mais novos. Mas, na verdade, esta cena não é de um jogo - faz parte do filme Um Cidadão Exemplar, que esteve no ano passado nas salas de cinema e foi classificado como sendo para maiores de 16 anos.

Um Cidadão Exemplar nem sequer é um filme particularmente violento - pelo menos se comparado com outros, cujo conceito é precisamente explorar várias formas de tortura, um género que levou os críticos de cinema americano, há alguns anos, a falarem numa espécie de pornografia, torture porn. Entre os mais conhecidos filmes do género, estão os vários capítulos da bem-sucedida saga Saw, onde, entre cenas várias de tortura, os personagens têm de se automutilar. Num destes filmes, o cartaz é uma mão decepada e ensanguentada - o tipo de imagem que provavelmente causaria ultraje na capa de um videojogo.

Foi com base nesta liberdade de que o cinema goza - e que se estende a outras artes, como literatura ou o teatro - que o Supremo Tribunal norte-americano decidiu, em finais de Junho,que o estado da Califórnia não poderia aprovar uma lei destinada a impedir a venda de videojogos violentos a menores de 18 anos.

Os jogos violentos estavam definidos como sendo aqueles "em que o leque de opções ao dispor do jogador inclui matar, desmembrar ou assaltar sexualmente uma figura humana", de uma forma que fosse "obviamente ofensiva", que fomentasse "interesses mórbidos e desviantes" e que não tivesse "um valor literário, artístico, político ou científico sério". Os lojistas que não cumprissem teriam de pagar mil dólares de multa. Mas a lei foi chumbada e os jogos passaram a estar protegidos pela primeira emenda da Constituição dos EUA, que, entre outros direitos, protege a liberdade de expressão.

"Tal como os livros protegidos, as peças [de teatro] e os filmes, os videojogos comunicam ideias - e mesmo mensagens sociais - através de muitos dispositivos literários conhecidos (como personagens, diálogos, enredo e música) e através de características distintivas do meio (como a interacção do jogador com o mundo virtual)", lê-se na decisão. "Isso é suficiente para conseguir a protecção da primeira emenda."

Debate antigo

Periodicamente, o debate sobre a violência nos videojogos e as respectivas consequências vêm a lume. Recentemente, na sequência do massacre na Noruega, algumas lojas naquele país decidiram suspender a venda de alguns títulos inspirados em temas bélicos. Mas a decisão da justiça americana não podia ser outra, defende o presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, Nelson Zagalo. "O resultado do processo que agora terminou na Califórnia era expectável, o contrário seria um escândalo", diz. Zagalo, que é também professor na Universidade do Minho, observa que "nos últimos tempos, apesar de todas as tentativas de descredibilização, os EUA tornaram-se num dos maiores apoiantes" dos videojogos - por exemplo, ao conceder-lhes recentemente o estatuto de arte, permitindo que os produtores concorram a apoios estatais para produções artísticas.

Os EUA não são caso único: já em meados de 2008 o Governo alemão decidira, após longo debate, que a federação de videojogos nacional deveria ser integrada no organismo responsável pela gestão da vida cultural da Alemanha.

O debate sobre se os videojogos podem ser expressão artística é antigo. No ano passado, o veterano crítico de cinema americano Roger Ebert, vencedor de um Pulitzer, escreveu um polémico artigo intitulado Os videojogos nunca poderão ser arte. Ebert argumenta: "Ninguém, dentro ou fora do meio, foi alguma vez capaz de apontar um jogo merecedor de ser comparado com os grandes poetas, cineastas ou novelistas. Eu tendo a pensar na arte como a criação de um artista." Após muitas reacções inflamadas, Ebert acabou por afirmar que não devia ter escrito o artigo, embora não tanto pelos contra-argumentos com que foi confrontado, mas por desconhecer a realidade dos videojogos.

Agora, com a decisão judicial norte-americana, os jogos sobem de nível. E os apoiantes deste género de entretenimento são brindados com uma vitória importante. "É agora lei nos Estados Unidos que os videojogos são arte", escreveu o especialista em videojogos do TheNew York Times, Seth Schiesel. "É lei que os videojogos são uma forma de expressão e interacção criativa, intelectual e emocional, tão fundamentalmente humana como outra qualquer [...] Agora, os videojogos - por muito vulgares, crus e nojentos que possam muitas vezes ser - foram finalmente reconhecidos como um elemento valioso da nossa cultura."

Zagalo vê como natural a relutância em considerar os videojogos como um produto cultural ou artístico. "A resistência não foi maior do que aquela que houve com o cinema, que durante anos foi considerado como mero espectáculo de entretenimento de massas, incapaz de comunicar ideias com suficiente profundidade, ou incapaz de comunicar uma visão, uma ideia de um autor sobre o mundo."

Foi só em 1952, quase seis décadas após a primeira exibição pública de um filme pelos irmãos Lumière, que o cinema passou a gozar da protecção da primeira emenda à Constituição americana. O mundo dos videojogos surgiu em finais de década de 1940 (numas versões) ou em finais de 1950 (noutras), em jogos muito simples, criados em laboratório e que usavam a tecnologia das televisões e não de computadores.Feitas as contas, a liberdade de expressão nos jogos demorou entre 60 e 70 anos a ter protecção constitucional nos EUA.

Atropelar grávidas

A violência nos videojogos é muito diversificada. Por exemplo, Carmageddon (1997), um jogo de corridas, premiava os jogadores se estes atropelassem pessoas, incluindo grávidas, crianças e idosos. Foi banido em alguns países, noutros, as figuras humanas foram substituídas por animais ou zombies.

Outro caso famoso é o da série Grand Theft Auto, um dos franchises de maior sucesso da história, cujas várias versões estão disponíveis para computador e todo o tipo de consolas. GTA, a sigla por que o jogo se tornou conhecido, coloca o jogador no papel de um criminoso e conquistou muitos adeptos pela grande liberdade permitida: entre muitas outras acções, é possível assaltar bancos, roubar carros, disparar sobre polícias, recorrer aos serviços de prostitutas e, eventualmente, matá-las a seguir.

O Supremo Tribunal dos EUA não afirmou na sua decisão que estes jogos são apropriados para menores - apesar de um dos argumentos ser que até os contos infantis têm personagens que morrem de forma violenta. O que os juízes disseram é que cabe aos encarregados de educação decidir o que os filhos podem comprar. E, para isso, os jogos são acompanhados por uma classificação etária.

Tal como nos EUA, na Europa está também em vigor um sistema de classificação por idades. O Pan-European Game Information (PEGI) foi criado para uniformizar a classificação nos países europeus. É o sistema que vigora também em Portugal. Embora não seja obrigatório, a maioria dos criadores de jogos submete-os à classificação PEGI, que analisa vários factores: entre outros, representações de violência, linguagem obscena, nudez ou referências sexuais, referências a uso de drogas, incentivo a apostas ou referências a discriminação, de género ou etnia, por exemplo. Tal como acontece no cinema em Portugal, e em parte dos estados americanos, estas classificações etárias são indicativas e não proibições.

Ver os jogos como arte ou cultura não quer dizer que estes não possam ter efeitos negativos, sublinha ao P2 Bruce D. Bartholow, investigador da Universidade do Missouri, nos EUA, e especialista no efeito de videojogos violentos. "É claro que os videojogos podem ser considerados artísticos sob várias perspectivas, mas isso nada tem a ver com poderem, ou não, ser nocivos."

Parte da investigação de Bartholow implica fazer experiências para determinar o efeito de exposição a imagens violentas, nomeadamente de jogos, em jovens. Uma experiência típica passa por colocar um grupo a jogar um jogo com elementos de violência e depois medir a propensão para comportamentos agressivos. A investigação da equipa de Bartholow mostra que os jogos fomentam - embora não em todas as pessoas e não da mesma forma em todos os que são afectados - comportamentos mais violentos.

Num ambiente de laboratório, a agressividade mede-se pela predisposição para uma pessoa deixar outra ser sujeita a ruídos incómodos ou ingerir comida muito picante - em tempos, os indivíduos testados podiam dar choques eléctricos a outros. Na vida real, este comportamento violento potenciado pelos jogos não significa pegar numa arma e fazer um massacre numa escola - uma das teorias sobre o massacre de Columbine coloca a responsabilidade nos videojogos de que os dois jovens responsáveis pelo tiroteio eram adeptos. Em vez disso, as pessoas podem apenas conduzir de forma mais agressiva ou serem mais rudes numa conversa. "A ideia principal é que a exposição a qualquer tipo de violência tem o potencial de provocar respostas hostis, pelo menos durante algum tempo", refere o académico.

Mais responsabilidade

Os jogos, porém, têm uma diferença em relação aos restantes formatos: são interactivos. As experiências de Bartholow indicam que crianças que ficam a ver jogar são menos afectadas do que aquelas que jogam. Em parte, isto acontece porque os jogos tendem a recompensar a agressividade. Um exemplo clássico são os jogos em que é preciso matar inimigos para passar de nível - quantos mais forem mortos, maior a pontuação.

Têm, por outro lado, uma atenuante face à televisão ou aos filmes: a violência é menos real, uma vez que são imagens em computador, semelhantes a desenhos animados e longe dos efeitos de uma produção de Hollywood feita com actores de carne e osso. O investigador nota que os jogos violentos parecem ter mais impacto do que um filme, mas frisa que "poucos estudos fizeram explicitamente uma comparação entre os efeitos de jogos e os efeitos da televisão ou dos filmes".

Já o site do PEGI nota não estarem absolutamente provados os efeitos dos jogos: "As pesquisas sobre o impacto dos videojogos têm focado essencialmente a violência. Têm sido publicados numerosos estudos, mas até hoje não existem provas de que jogar videojogos violentos provoca aumento duradouro ou a longo prazo da agressividade ou da violência nos jogadores".

Por seu lado, Nelson Zagalo nota que a decisão da justiça americana vem colocar mais responsabilidades sobre os criadores: "Não é porque os videojogos ganharam o estatuto de arte que podem agora fazer e dizer o que quiserem. Aliás, muito pelo contrário: esta medida só fará com que os criadores de videojogos se sintam responsáveis pelas ideias que comunicam. É que agora fica consagrado na lei americana, não só que eles têm direito à liberdade de expressão como arte, mas também que eles são uma forma fundamental de expressão e de criação de envolvimento emocional e cognitivo com os seus jogadores."

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