Joaquim Sapinho nas ondas da alma

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Joaquim Sapinho diz que coloca a câmara e espera que as coisas aconteçam LUÍS RAMOS/ PÚBLICO

Levar o corpo aos limites, numa prancha de surf no Guincho ou na cela de um convento na serra de Sintra - "Deste lado da ressurreição" procura nos espaços, nos rostos e nos corpos os movimentos da alma. Alexandra Prado Coelho

Deste lado

da ressurreição

Festival de Toronto

de 8 a 18 de Setembro, secção Visions

É um filme de onde as palavras foram desaparecendo. Ficaram só frases soltas, murmúrios. O resto é tomado pela natureza - o som das ondas e do vento do Guincho, a luz a desenhar as imagens, a força de coisas que estão para lá daquilo que conseguimos nomear.

"Deste lado da ressurreição", de Joaquim Sapinho, que o realizador apresentará em Toronto (de 8 a 18 de Setembro) e que ainda não tem data marcada para a estreia em Portugal, nasceu da praia do Guincho e do Convento dos Capuchos, em Sintra. O que Sapinho filma é o diálogo entre estes espaços, através da história de um surfista que entra para um convento, numa dolorosa procura de si mesmo e da forma de regressar aos outros.

"O silêncio é muito imposto pelos sítios. No Guincho não se consegue falar muito, porque há muito vento, muito barulho do mar, e as pessoas relacionam-se muito fisicamente. E no alto da serra de Sintra uma pessoa sente necessidade de se calar", explica Sapinho.

De se calar e de recuar. Todo o seu trabalho como realizador tem a ver com esse movimento de recuo, diz. "Como filmar o surf e toda a violência do mar, e por outro lado, como filmar a vida num convento, dando ordens ou instruções? É impossível. Tudo no filme obrigava-me a essa disciplina de esperar. É como se a partir de certa altura eu tivesse aceite que o filme tinha uma maneira de ser filmado e que eu só estava ali para fazer o que o filme dissesse."

Há um rapaz, Rafael, surfista (Pedro Sousa), uma rapariga (Joana Barata) irmã dele, uma mãe (Sofia Grillo), uma casa na cidade, uma caravana ao pé do mar, uma cela num convento. "A ligação do filme é a história de dois irmãos, e o que se passa entre dois irmãos não é de uma natureza comunicável por signos pré-estabelecidos. É como se o filme fosse ganhando essa ressonância em que tudo reverbera mas não através de uma linguagem codificada à partida, reverbera através da luz, do vento, do calor, do frio, dos arrepios, e das próprias esperas - as personagens estão sempre a desencontrar-se e a esperar umas pelas outras, e a embaterem. Isso não se resolvia pedindo desculpa ou pegando no telemóvel. Tinham que encontrar maneiras de estar juntas que nenhum guião poderia determinar."

Como acontece geralmente na produção dos filmes de Sapinho, a filmagem exigiu muito tempo. O tempo para que as coisas que não se escrevem num guião possam acontecer. Há uma cena em que vemos apenas, durante um tempo que parece suspenso, o rosto de um frade, iluminado. "Um sentimento de transcendência só pode ser vivido através do rosto", diz o realizador. "Há uma dádiva das pessoas que se filma. São pessoas que se entregaram completamente ao filme, e ficaram nuas nos planos."

É uma forma de chegar às coisas e às pessoas, diz, que tem muito a ver com o realizador António Reis ("Jaime", "Trás-os-Montes"). "O cinema do António Reis absorve aquilo que é filmado. O que interessa é o que está a acontecer em frente da câmara. Eu estou ali só para registar. A questão é saber se consigo que nesse plano de um rosto fiquem registados os movimentos da alma". Há coisas que estão fora do plano - a luz, Deus, o interior da alma. "Eu ponho a câmara e espero que essas coisas se encontrem. Se não se encontram, agradeço na mesma e volto no dia seguinte."

É, também para ele, enquanto realizador, um processo de aprendizagem. De perceber que quanto mais ele recuar, mais as coisas poderão existir. "Mas eu preciso de tempo para recuar. Uma pessoa tem sempre a tendência para se impor, para se colocar à frente da câmara através de outras projecções."

O que fazer ao corpo

O filme parte dessa vontade de filmar a violência do Guincho, praia que desde a infância fascinou Sapinho, e o convento onde uma vez, há muitos anos, entrou, saltando o muro. "Foi uma experiência perturbadora, porque no momento em que chego ao claustro cai uma nuvem que faz desaparecer tudo. Podiam aparecer ali umas pessoas com uns capuzes pontiagudos. O filme nasce também desta visão tão estranha." O que Sapinho faz é colocar esses monges (franciscanos, chamados arrábidos por escolherem sítios especiais como a Arrábida ou a Serra de Sintra para viverem numa entrega total à natureza) no espaço que é o deles, e que os actores começaram a habitar com toda a naturalidade.

Mas as filmagens no convento - que incluem as cenas de mortificação de Rafael, por um caminho de busca interior que procura nos limites do sofrimento físico uma resposta - acabaram por ser mais fáceis, depois dos meses passados no Guincho. "O Pedro estava com medo, mas depois sentiu-se em casa, o Guincho já o tinha treinado. A violência do surf é muito próxima da dos místicos."

No Guincho, Sapinho "tinha um "cameraman" que era uma pessoa muito corajosa e ia para o mar nas situações mais violentas, filmava debaixo de água, por cima de água, quando as ondas rebentavam". Filmaram durante meses. Pararam quando chegaram aos limites. "Parei de filmar quando o Pedro disse "não filmamos mais porque eu vou morrer"."

Não é fácil encontrar pessoas disponíveis para fazer um filme assim. O realizador parte para um projecto com "a promessa de encontrar uma personagem, uma possibilidade de filme, um filme futuro". Há uma "terra prometida do filme", que ele habita. E os outros? "Se calhar o meu cinema é com pessoas muito novas por elas poderem acreditar na terra prometida de um filme. O pacto é: eu quero fazer um filme. Tu queres fazer um filme? A partir desse momento começa-se a acreditar a dois ou a três que se está a fazer um filme."

E o que quis filmar desta vez foi a história de um renascimento. De um rapaz desenraizado que procura uma forma de voltar a saber fazer pequenos gestos. Não é a história de um milagre. É, diz Sapinho, um filme feito no mundo de hoje, em que as pessoas não sabem o que fazer com o corpo, e por isso "gastam-no, testam-no até aos limites".

Porque já não há palavras ou explicações. "As nossas explicações são sempre para não fazer o gesto de abraçar o outro, de estar com o outro, de ser responsável pelo outro. Precisávamos de explicações que nos levassem a agir na direcção da responsabilidade pelo outro. Mas o nosso trabalho é sempre o de encontrar explicações para ficarmos descansados. Somos especialistas em evitar as responsabilidades."

E é porque Rafael, o surfista místico, "já não consegue disfarçar a dificuldade de se compreender a si próprio com a possibilidade de comunicar com os outros", que está à procura "de um muro em que possa embater e recomeçar a sua vida".

E esse sofrimento, que é físico, não se filma com palavras. Filma-se com o corpo, as ondas, a corda a bater na pele, o vento, a luz.

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