Todos lhe chamam seu

O pastel de bacalhau provoca polémica. O Norte reivindica-o. Lisboa também. É demasiado popular. Atravessa fronteiras geográficas e classes sociais. Está em todas as tascas. E também nos restaurantes de luxo

Estávamos sem saber por onde começar a investigar a história do pastel de bacalhau. Já tínhamos tido, numa passagem pelo Norte, um pratinho de deliciosos bolinhos de bacalhau colocado à frente, enquanto o nosso anfitrião nos lançava a provocação: "Veja lá se consegue comer uns como estes lá em Lisboa..."

Mas o problema é que no concurso para a escolha das sete maravilhas da gastronomia portuguesa, em que o pastel de bacalhau é um dos 21 finalistas, ele aparece como sendo de Lisboa. O caso é polémico, percebemos rapidamente, mas, apesar de tudo, tentámos respeitar as regras e colocar o pastel em Lisboa. E, de repente, surgiram duas ajudas inesperadas - ambas involuntárias.

A primeira veio (mais uma vez) de Miguel Esteves Cardoso. Numa das crónicas do livro Em Portugal não Se Come mal há uma em que MEC fala daquilo a que chama a "Gastronomia Underground Portuguesa", as pequenas cumplicidades que nos dão acesso a coisas que acreditamos serem especiais. E conta como uma vez, no Gambrinus, em Lisboa, lhe disseram que não tinham cozido à portuguesa - "Não podemos, doutor - senão toda a gente queria..." "[Mas temos] especialmente para si... dois pastéis de bacalhau que, devidamente indoutrinados, escondemos dos demais comensais com o véu do guardanapo, com aquela culpabilidade que multiplica a delícia das coisas."

E pronto, tínhamos aí a desculpa para bater à porta do Gambrinus e perguntar como é que fazem pastéis de bacalhau num restaurante de luxo. Às dez da manhã, quando na Rua das Portas de Santo Antão os restaurantes começavam a preparar as esplanadas, e nas tasquinhas já havia pastéis de bacalhau prontos, entrámos no prédio estreitinho pela porta de madeira e vidro, olhando de relance para as cinco estrelas, percorremos o labiríntico espaço interior, por entre as paredes com painéis de madeira e vitrais, voltámos a sair para o exterior, e lá fomos dar ao escritório do gerente Dário Afonso. Minutos depois tínhamos ao pé de nós o chefe Carlos Oliveira, que trazia na mão a receita dos pastéis de bacalhau do Gambrinus.

Fritura rápida

Não é que seja um segredo - é basicamente a receita tradicional de pastéis de bacalhau (levam noz moscada, o que nem todos os cozinheiros põem). O que é especial é a forma como o bacalhau é esmagado juntamente com a cebola e o alho num almofariz (em vez de ser no habitual pano grosso que depois é batido).

Descemos à cozinha, seguindo o chefe. Por detrás da porta de ferro trabalhado da garrafeira aparece o objecto, uma peça enorme, em mármore, que, calcula Dário Afonso, poderá estar no restaurante desde os anos de 1940 (tal como a receita).

O outro pormenor que, explica o chefe, torna os pastéis particularmente cremosos é o facto de o puré de batata ser passado por um peneiro de malha fina. E, por fim, a fritura em óleo, a 180 graus, muito rápida, quase entrada por saída, para não ficarem embebidos em gordura. No Gambrinus os pastéis de bacalhau são ligeiramente mais pequenos, porque são enrolados com uma colher de sobremesa, o que faz com que fritem mais rapidamente.

Há sempre alguma coisa que faz a diferença e que permite dizer: "Não há cozido hoje, mas temos aqui só para si..." Porém, o que a visita ao Gambrinus comprovou foi que o pastel de bacalhau é uma das tradições gastronómicas portuguesas mais democraticamente espalhadas, desde a tasca da esquina ao restaurante de luxo. E - entra agora a segunda ajuda involuntária - é uma tradição antiga.

No site de Virgílio Gomes há uma crónica sobre os pastéis de bacalhau na qual o crítico gastronómico explica que o pastel nasce com a batata e (na opinião dele) entra em decadência por causa da batata (ou seja, pelo excesso de batata). Esta terá chegado a Portugal em 1760, mas só em 1798 é que a rainha D. Maria I publica um incentivo à produção de batata nos Açores, enquanto no continente, conta Virgílio Gomes, a Academia das Ciências entrega a medalha de ouro a D. Teresa de Sousa Maciel pela sua produção de batata. Será o filho desta, o visconde de Vilarinho de São Romão, quem publica em 1841 na Arte do Cozinheiro e do Copeiro a primeira receita do pastel de bacalhau, embora, segundo o crítico, fosse mais próxima das pataniscas.

A história continua, com receitas a surgirem com pequenas variações - com o nome "pastelinhos fritos de bacalhau à holandeza" em 1876, em Arte de Cozinha de João da Mata (que tinham a particularidade de terem queijo ralado), e como "bacalhau em bolos enfolados" no Tratado de Cozinha e de Copa de Carlos Bento da Maia (1904), onde se aconselha a fritura em azeite.

Tudo isto são pormenores que dariam para horas de debate apaixonado entre especialistas. No seu livro Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria de Lurdes Modesto coloca a receita dos "bolinhos de bacalhau deliciosos" no Entre Douro e Minho, e inclui um cálice de vinho do Porto; Alfredo Saramago em Cozinha de Lisboa e Seu Termo aconselha a separar as gemas e a juntar as claras batidas em castelo e coloca na capa a foto dos pastéis de bacalhau. Mas, polémicas à parte, a verdade é que qualquer português reconhece um frito feito de bacalhau, batata e salsa picada quando vê um - pouco importa que esteja no Norte ou no Sul, pouco importa que lhe chame bolinho ou pastel.

Amanhã: queijo da Serra

e alheira de Mirandela

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