O cão mais velho de Portugal foi descoberto... numa gaveta de museu

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O esqueleto descoberto em Junho último, nos concheiros do Sado, que se supõe ter a mesma idade do cão encontrado em Muge no final do século XIX. Este cão do Sado estava numa sepultura específica para o seu enterramento, com as patas recolhidas junto ao corpo Filipe Arruda

Devia ter o tamanho do cão-de-água português, embora ainda não existissem raças. Confundir-se-ia com o lobo, do qual descende? Teria pêlo castanho? Durante 120 anos, o seu esqueleto, com 8000 anos já confirmados por datação, passou despercebido, até dois cientistas se aperceberem do seu valor. Este Junho, outra equipa encontrou outro cão que se supõe ter a mesma idade. O ADN pode agora dar pistas sobre domesticação do cão na Península Ibérica.

Podemos imaginá-lo deitado com o focinho no chão, sentado à entrada da cabana dos seus donos. Ao entardecer, a lareira na rua, que tanto afugenta os animais como conforta durante as noites frescas de fim de Verão, já crepita, à espera que o grupo de homens regresse da caça. Magoado numa pata, desta vez não pôde acompanhá-los em mais uma correria atrás dos coelhos ou, mais destemidamente, de um veado ou javali. Até o grupo surgir carregado de caça pelo vale adentro da ribeira de Muge, tirando-o daquela pasmaceira, perde-se a pensar como seria a sua vida, se não se tivesse tornado o melhor amigo do homem, enquanto vai salivando pelo quinhão de carne que vai calhar-lhe.

A história bem podia ter-se passado há 8000 anos, tantos quantos se confirmou ter o esqueleto do cão mais antigo do território português. Tal como existiram as cabanas, nas margens da ribeira de Muge, afluente do Tejo. Foi nelas, entre há 8000 e 9000 anos, que se instalaram comunidades humanas durante parte do ano ou mesmo o ano inteiro.

Eram os últimos caçadores-recolectores em território português. Enquanto noutras regiões vizinhas, como as serras de Aire e Candeeiros, as comunidades já se tinham sedentarizado há vários séculos e tiravam da agricultura o sustento, nas margens da ribeira de Muge ainda se estabeleciam populações que mantinham um estilo de vida nómada. Ou, ficando lá em permanência, não praticavam a agricultura, nem a domesticação, à excepção do cão. Limitavam-se a retirar da natureza os recursos.

Caçavam de facto coelhos, veados, javalis, a que se juntavam lebres, aves ou auroques, os antepassados selvagens, e já extintos, das vacas domésticas. A ribeira de Muge, abundante em peixe e marisco, como berbigão, lamejinha e caranguejo-verde, era o chamariz das populações à região e garantia de alimento farto. Naqueles tempos, o estuário do Tejo era mais recuado do que hoje, pelo que a água salobra chegava até Muge, originando uma riqueza de marisco.

Sabemos tudo isto porque aquelas populações humanas deixaram-nos os seus vestígios, que constituem uma estação arqueológica com fama mundial: os concheiros de Muge, no concelho de Salvaterra de Magos.

Como o nome diz, são amontoados de conchas. Mas além de lixeiras com os restos da alimentação humana, ossos de animais incluídos, nos concheiros os caçadores-recolectores enterravam os seus mortos. Escavaram-se 300 esqueletos, guardados no Museu Geológico, em Lisboa, e no Museu de História Natural da Faculdade de Ciências do Porto. A nível mundial, é das mais colecções antropológicas mais importantes do Mesolítico, período entre o Paleolítico e o Neolítico, que na Península Ibérica começou há 10 mil anos e acabou há seis mil.

Numa sala das traseiras

Ora foi nesses depósitos, formando colinas artificiais, que apareceu o esqueleto de um cão. O primeiro concheiro tinha sido descoberto em 1863 por Carlos Ribeiro, pioneiro da geologia portuguesa, durante prospecções na região, entre 1860 e 1865, pela então Comissão Geológica de Portugal e que permitiu identificar outros cinco sítios.

Porém, o cão ficou esquecido mais de um século. Se alguém se apercebeu do seu valor, não o escreveu. O registo sobre o esqueleto quase completo resume-se praticamente a uma etiqueta: "Quarta escavação, 20 metros Este da estaca mais alta do cabesso [sic], quatro metros de fundo. Mugem 1880." Portanto, a 20 metros da parte mais alta de um dos concheiros de Muge (ou Mugem, como era igualmente conhecida a localidade), designado por Cabeço da Arruda, e a quatro metros de profundidade lá estava o esqueleto.

Assim que descobriu os concheiros, Carlos Ribeiro, director da Comissão Geológica, apercebeu-se da sua importância e relacionou-os com sítios arqueológicos idênticos na Dinamarca. Esta descoberta, entre outras, alcançou projecção mundial, o que possibilitou que Lisboa acolhesse, em 1880, a IX Sessão do Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica. O programa incluía visitas de campo aos concheiros de Muge, pelo que as escavações de 1880 pretendiam deixar à vista esqueletos humanos. "O cão terá sido encontrado nessa altura. Só que Carlos Ribeiro não o refere em lado nenhum", conta a zooarqueóloga Cleia Detry, do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.

Até os caminhos de Cleia Detry se cruzarem com o esqueleto do cão de Muge teriam de passar exactamente 120 anos. Foi em 2000, quando estudava a fauna terrestre destas acumulações para o trabalho final da licenciatura em Biologia, que juntava a Zoologia com a Arqueologia. O conservador do Museu Geológico à época, José Brandão, quis mostrar-lhe uma certa gaveta numa sala das traseiras. "Disse-me: "Acho que este material pertence aos concheiros de Muge." Olhámos para a etiqueta, que de facto dizia Mugem", recorda.

"Não tínhamos a certeza de que era cão. Antes de haver raças, na época romana [entre o século II a.C. e o V d.C.], o lobo e o cão eram muito parecidos. Nos ossos, o cão só se distinguia do lobo por ser mais pequeno. Pelo menos, seria lobo."

O arqueólogo João Luís Cardoso, da Universidade Aberta, orientador do trabalho final de licenciatura de Cleia Detry, defendia a hipótese do cão. Enviaram pedaços de osso para datação directa por radiocarbono nos Estados Unidos, que concluíram que o esqueleto tinha entre 7850 a 8010 anos. "Era claramente do Mesolítico", diz João Luís Cardoso. E, numa série de medições aos ossos, confirmaram que era um cão.

Mas ainda iria demorar até esta descoberta sair do anonimato. "Demos a primeira notícia do cão de Muge no livro Pré-História de Portugal, de que fui autor, editado pela Verbo em 2002", conta o arqueólogo. Só depois de Cleia Detry acabar o doutoramento, de novo orientada João Luís Cardoso, é que o cão concentrou as atenções de ambos. A dupla publicou esse estudo na revista Journal of Archaeological Science, em Novembro. Tinham-se passado dez anos desde a descoberta na gaveta do museu.

O cão mais antigo de Portugal, confirmado como tal, é agora uma das 27 maravilhas do Museu Geológico em Lisboa, assinalada com uma placa numerada. Os visitantes procuram-no? "Um cão numa vitrina é estranho. Mas muita gente não se apercebe de que é o primeiro cão doméstico em associação com o homem no nosso território", diz um dos funcionários, José Anacleto.

Que aspecto teria? Pelos ossos, sabe-se que era do tamanho do cão-de-água português, com cerca de meio metro de altura até aos ombros, embora ainda não houvesse raças. "Em termos de aspecto, nada nos diz que não era muito parecido com o lobo, com algumas diferenças na cor do pêlo", diz Cleia Detry. "Seria um cão mais com aspecto de rafeiro, de pêlo castanho."

Os cães do Sado

Nestes anos todos, encontraram-se outros cães antigos. A descoberta mais recente, em Junho último, ocorreu em escavações noutros concheiros - os do estuário do Sado -, por uma equipa luso-espanhola dirigida por Mariana Diniz, também do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, e Pablo Arias, da Universidade da Cantábria. É o projecto Sado Meso, que pelo segundo ano fez escavações nos concheiros do Sado, já escavados nas décadas de 1950 e 1980.

Pensa-se que este cão possa ser contemporâneo do cão de Muge, mas só no final deste ano deverá haver resultados da datação por radiocarbono, num laboratório da Universidade de Oxford, no Reino Unido. "Temos algumas datações para os concheiros, ainda que não directamente para o cão. Mas como estava coberto pelos concheiros, esperamos que tenha a mesma idade dos concheiros, que ronda os 8500 anos", diz Mariana Diniz.

Foi encontrado no concheiro de Poças de S. Bento, em Alcácer do Sal, ocupado por grupos humanos, que, tal como em Muge, viviam da caça e da recolecção. Mais: estava numa sepultura específica para o seu enterramento. "Tinha as patas recolhidas junto ao corpo", realça Mariana Diniz. "O cão de Muge provém de uma escavação do século XIX, não sabemos se fazia parte de uma lixeira. Tem a antiguidade garantida, mas não sabemos o contexto da deposição daquele cão, ao contrário do nosso, em que podemos afirmar que foi objecto de uma deposição intencional", acrescenta aquela arqueóloga.

Se o cão do Sado tiver mesmo oito mil anos, então a sua sepultura será a mais antiga da Península Ibérica que foi documentada numa escavação, que teve, entre outros, a participação de investigadores do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar). Os ossos deste cão, retirados num bloco ainda parcialmente por escavar, estão no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa. "Está fechado numa caixa, que parece a Arca da Aliança do Indiana Jones, revestido por espuma sintética." Aí, irá escavar-se o resto e a sua morfologia estudada por Cleia Detry e por outro zooarqueólogo, Simon Davis, do Igespar.

Mesmo sem documentação sobre o enterramento intencional do cão de Muge, as provas, para Cleia Detry e João Luís Cardoso, apontam nesse sentido. "Nos concheiros de Muge, os outros restos de animais estão todos partidos. A medula era comida. O cão é o único animal completo, o que mostra que foi um enterramento. Está como os esqueletos humanos, que aparecem praticamente completos", realça Cleia Detry.

Além disso, o crânio tem cinco orifícios, o que, segundo Cleia Detry e João Luís Cardoso, são sinais de que o animal, vivo ou já morto, esteve envolvido num ritual. Parece assim ter desempenhado um papel simbólico e especial entre as populações de caçadores-recolectores, realçam no seu artigo.

Mariana Diniz concorda na tese da sepultura, até certo ponto: "Faz sentido que o cão de Muge também tenha sido enterrado. Sendo elevadíssima a probabilidade de um acto simbólico, não é possível demonstrá-lo e a ciência também se faz de coisas que se demonstram."

João Luís Cardoso contrapõe, comentando o anúncio da descoberta do cão do Sado: "Pode não ser a sepultura mais antiga. Até haver uma datação por carbono 14, todo o cuidado é pouco."

A juntar a este há ainda outro cão antigo do Sado. Em 1986, o arqueólogo José Morais Arnaud descobriu parte de um esqueleto ainda articulado no concheiro do Cabeço das Amoreiras.

Há alguns meses, no âmbito do projecto Sado Meso, esse cão, que está igualmente no Museu Nacional de Arqueologia, foi datado na Universidade de Oxford: é mais novo do que se pensava, sendo do século V d.C., já do período romano tardio.

Têm-se encontrado ainda outros restos de cão, mas são peças isoladas, recolhidas, entre outros locais, nos concheiros de Muge.

Tanto o cão de Muge como os dois do Sado estão ser alvo de uma busca de ADN, para se esclarecer como foi a domesticação deste animal.

Primeira domesticação

O cão terá sido a primeira espécie domesticada, há pelo menos 15 mil anos. Ao invés da vaca ou ovelha, a alimentação humana não terá estado entre os motivos desta domesticação. "Pode ter sido domesticado para ajudar na caça, na defesa contra outros carnívoros e como animal de companhia", diz Cleia Detry.

Sabe-se que o cão (Canis familiaris) descende do lobo (Canis lupus), o que foi confirmado por estudos genéticos de lobos e raças de cães (há mais de 400 no mundo). Ao ser reproduzido em cativeiro durante gerações, o lobo tornou-se mais dócil e desenvolveu traços morfológicos diferentes dos seus antepassados selvagens.

Quando Carlos Ribeiro descobriu os concheiros de Muge, o lobo não era considerado o antepassado do cão. "No século XIX, punha-se a hipótese de o cão ser uma espécie selvagem", explica Cleia Detry, dizendo que se especulava também que podia descender do chacal.

A nível mundial, o osso mais antigo de um cão, já morfologicamente diferente do lobo, tem 14 mil anos. É uma mandíbula encontrada numa gruta em Oberkassel, na Alemanha.

Mas onde e quando surgiu o cão doméstico? Se alguns estudos genéticos apontam o Leste da Ásia há 15 mil anos, outros indicam o Sudeste da China há 16 mil anos. Também tem sido mencionado o Médio Oriente. Em conjunto, estes resultados sugerem que várias populações de lobos podem ter sido domesticadas em diferentes locais ao mesmo tempo, referem Cleia Detry e João Luís Cardoso no artigo científico.

Na Península Ibérica, o cão de Muge e os cães do Sado podem dar um contributo e ajudar a perceber se, por exemplo, o cão foi domesticado localmente, ou se já chegou assim à região. Para tal, amostras ósseas dos três cães já chegaram às mãos de Elisabete Pires e Catarina Ginja, ambas do Instituto Nacional de Recursos Biológicos e da Faculdade de Ciências de Lisboa, que estão aprender técnicas de extracção e de análise de ADN antigo num laboratório de paleogenética da Ecole Normale Supérieure de Lyon. A sua ideia é criar um laboratório destes em Portugal, para estudar a história dos animais domésticos.

Até agora, falharam as quatro tentativas de obter ADN de uma costela do cão de Muge. Elisabete Pires espera que possa extrair-se de um dos dentes da mandíbula. No caso dos cães do Sado, já tem ADN do que foi encontrado em 1986 e tenta obtê-lo do que se descobriu este ano.

Todos estes ADN, explica Elisabete Pires, serão comparados com o ADN do lobo-ibérico (Canis lupus signatus), uma subespécie só da Península Ibérica. "Será que o homem usou esta subespécie de lobo para criar algum cão que seja único da Península Ibérica?", questiona a investigadora, referindo que se farão comparações com o ADN de cães antigos de outras partes do mundo.

Além de uma resposta a esta questão, o ADN dos cães antigos de Portugal permitir-nos-á saber a cor do seus pêlos. Para já, o decano é o cão de Muge e, se se obtiverem genes seus, será mais fácil imaginá-lo para lá dos ossos, quem sabe se de pêlo castanho e ar rafeiro, à espera dos donos, enquanto saliva por um naco de carne.

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