A política da Orfeu era a utopia

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Arnaldo Trindade não ficou com nenhum disco da editora a que dedicou três décadas de vida: "O maior orgulho foi ter-se conseguido fazer. Tudo o que nasce morre, e nós morremos no zénite"

A Orfeu gravou poetas como Miguel Torga, acolheu depois a música de José Afonso ou Adriano Correia de Oliveira e deu duas senhas a uma revolução. "Éramos consultores de uma ideia nova", diz o fundador, Arnaldo Trindade. Trés décadas depois, a Orfeu está de volta. Mário Lopes

Um rapaz de 18 anos põe-se a caminho de Miramar, em Vila Nova de Gaia, para falar com um vulto da poesia famoso pela reserva e pelo temperamento difícil. O rapaz não se intimida. Bate à porta e explica-lhe ao que vai. Quer gravá-lo a dizer a sua poesia. O "mais difícil" dos poetas, Miguel Torga, recebe-o e ouve-o. "Os poetas são muitas vezes mal interpretados pelos "diseurs", porque interpretam teatralmente e perde-se o intimismo dos poemas", argumenta. Mostra-lhe discos de Jean Cocteau para reforçar a argumentação. O rapaz sai da casa de Miramar com um prémio que impressiona. A sua recém-formada editora, a Orfeu, seria lançada com Torga por Torga. "Quando criámos a secção de discos, fui falar obviamente com o mais difícil. É assim que se deve fazer, não é?", lança Arnaldo Trindade, hoje com 77 anos.

Foi precisamente essa ambição e essa força de vontade que nos conduziu, numa tarde de Verão de 2011, a uma casa na Foz portuense. Porque primeiro foi Torga, e, como quem "tinha Torga tinha tudo", chegaram à Orfeu depois dele José Régio, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro ou Ferreira de Castro. Porque depois, quando à poesia se juntou a música, chegou a ele um homem chamado José Afonso, "proscrito" no meio editorial pelos problemas com a censura (a autocensura das rádios e editoras, e censura a oficial do Estado), à procura de casa que o acolhesse. "Era tão maravilhoso, certamente político, mas tão inteligente", que Trindade não hesitou. Em 1968, José Afonso gravou o seu primeiro disco para a Orfeu. "E quem tinha o Zeca Afonso tinha tudo".

Foi na Orfeu que José Afonso gravou o melhor da sua obra, foi na Orfeu que Adriano Correia de Oliveira lançou todos os seus discos, ali ouvimos a estreia de Vitorino, o "Pano Cru" e o "Campolide" de Sérgio Godinho, o "Blackground" do Duo Ouro Negro.

Eis-nos então, 43 anos depois de "Cantares do Andarilho", a ser recebidos numa casa da Foz por um homem enérgico e jovial chamado Arnaldo Trindade. Contador de histórias contagiante, tem um misto de fleuma inglesa e descontracção portuense. Um cavalheiro que, na companhia de um charuto e de arquivos seleccionados, nos conduzirá durante várias horas pela história inacreditável dessa Orfeu de poetas e músicos, de designers e empreendedores diversos, que, de pequena editora independente anexa a loja de electrodomésticos, na Rua de Santa Catarina, em frente ao Majestic, se tornaria um aglutinador e instigador de várias revoluções: estéticas, tecnológicas e de mercado. Tudo seguindo uma política explicada nestes termos simples: "A minha linha era a beleza e a qualidade. Coisas que merecessem a pena ser gravadas. Sempre o melhor". Ele que nunca dirá "eu", privilegia sempre o "nós", definirá assim a Orfeu: "Éramos consultores de uma ideia nova". Ele que, aqui sim, utiliza o eu, era o "catalisador num ambiente fervilhante".

À primeira vida da Orfeu, entre as décadas de 50 e 80, segue-se agora um renascimento. Na recta final de 2010, voltámos a encontrá-la nas lojas (ver caixa). Com Arnaldo Trindade, porém, é pela primeira história da Orfeu que viajamos.

Ver mais longe

Filho de um comerciante solidamente implantado no coração do Porto, Arnaldo Trindade cresceu num ambiente especial. No final dos anos 50, o pós-guerra e um "espírito anti-establishment" criou na Invicta um período de renascimento artístico. Foi criado o Cineclube do Porto, onde Arnaldo Trindade ia todos os domingos, às 11h, ver os filmes que não passavam em exibição comercial: "o neo-realismo italiano, o romantismo francês". Surge também o Teatro Experimental do Porto, de que será um dos fundadores. Havia ainda a escola de Belas Artes e pintores como Isolino Vaz, que seriam depois "resgatados" para trabalhar na Orfeu. Arnaldo Trindade estava no centro de todas estas movimentações. "Ia jantar todas as segundas ao Escondidinho com o Manoel de Oliveira, o José Régio, o Alberto Serpa, o António Lopes Ribeiro", conta. Eram tertúlias organizadas pelo director do jornal "O Primeiro de Janeiro", Manuel Pinto de Azevedo, "onde se discutia tudo": as artes, a política, a vida. Todos contra o regime do Estado Novo, assegura. "Penso que ninguém era do regime naquela altura. Talvez os chamados tachistas... Mas francamente, com o espírito de renovação que havia, quem é que queria ser retrógrado?" Certamente que não Arnaldo Trindade.

Ele que viajava todos os anos até aos EUA para um mês de férias, que conhecia Londres e Paris, tinha muito mundo. Via mais longe: "A grande vantagem de viver em Portugal é que conseguíamos ver o bom e o mau do futuro". Quando o seu pai morre prematuramente e Arnaldo Trindade se vê obrigado a trocar o percurso na engenharia pelo comando dos destinos da empresa de venda de electrodomésticos, começa a aplicar o que lhe mostrava esse futuro àquilo que tinha à sua volta. Portugal, década de 1950.

Grava músicos jazz a viver no Porto e aproveita a passagem de nomes famosos pelas salas da cidade para os registar - aconteceu com Los Paraguayos, por exemplo. Grava-os com as melhores condições que a tecnologia lhe podia então oferecer - um gravador Ampex de quatro pistas -, e contrata fotógrafos e designers para assegurar a qualidade do grafismo das edições.

Tem visão de negócio: para estimular a compra de discos, viaja até França e encomenda milhares de gira-discos; depois lança uma promoção: na compra de dez fonogramas, oferecia um desses aparelhos. Tem "espírito de missão": "Tínhamos a loja de electrodomésticos e isso dava-nos o suporte financeiro. A Orfeu era a minha forma de intervir e a minha paixão. Só foi possível fazê-la em termos de paixão, porque não havia lógica comercial". Assim atraiu os melhores.

Levou Miguel Torga aos primeiros "estúdios" da Orfeu. Numa das cabines da loja, depois da meia-noite para que não houvesse ruído a corromper o silêncio necessário, o autor de "Bichos" leu "Ode à Poesia". Ao ouvir a sua própria voz, emocionou-se de tal forma que a mulher, Andrée Cabrée, teve de o reanimar com uma injecção de coramina.

Depois dos poetas e prosadores, Arnaldo Trindade gravou músicos jazz e bandas portuenses, alargou o âmbito da acção assegurando contratos de distribuição com editoras como a inglesa Pye Records, a americana Tamla Motown ou a Vogue francesa - o que lhe permitiu trazer ao Porto Françoise Hardy, entre outros.

Um espírito familiar

A chegada da Orfeu à história da música portuguesa começa a ganhar contornos de definitiva grandeza quando António Portugal, guitarrista imprescindível na renovação da "canção de Coimbra", e Rui Pato, violista que entre muita actividade acompanhou José Afonso no seu percurso discográfico inicial, alertam Arnaldo Trindade para um cantor extraordinário que surgia em Coimbra. "O grande passo foi quando conheci o Adriano Correia de Oliveira", acentua. Com o cantor de "Trovas do vento que passa", que até à morte aos 40 anos, em 1982, registaria toda a sua obra na editora, anunciava-se a chegada à Orfeu de uma geração que renovaria profundamente a música portuguesa enquanto se assumia como barricada de resistência ao fascismo. Adriano trouxe José Niza - "disse-me que era indispensável, que o contratasse ao preço que pudesse" -, que se tornou peça fulcral da editora, ao lado de José Calvário, enquanto músico, produtor e compositor. E entretanto José Afonso bateu à porta.

A Orfeu diversificou-se e, para dar o passo em frente, assegurou a viabilidade financeira com bandas como o Conjunto António Mafra, "populares mas muito distantes do popularucho que havia na altura", garantindo assim a distribuição junto das comunidades emigrantes portuguesas.

Paralelamente, Arnaldo Trindade organizava em 1969 a primeira convenção da Indústria Discográfica em Portugal, atraindo a atenção da revista "Billboard", por exemplo, ao trazer a Ofir representantes de todo o mundo e bandas como os Foundations, os Status Quo ou os Long John Baldry, onde tocava um pianista louro então chamado Reginald Dwight (hoje conhecemo-lo como Elton John).

Arnaldo Trindade dirigia a Orfeu como empresa disciplinada - "sem precisar de impor nada" -, mas com um espírito familiar, dado ao improviso a um grau recomendável de excentricidade: após a vitória de Sandie Shaw na Eurovisão, com "Puppet on a string", montou uma caravana de seis carros para viajar até Paris, carregá-los de EP e regressar antes que a Valentim de Carvalho os tivesse nas lojas.

Revolução a caminho

José Afonso. Arnaldo Trindade mostra-nos uma dedicatória: "Adversariamente, mas com admiração, José Afonso". Afonso, tal como Adriano Correia de Oliveira, tal como muitos dos autores editados por Arnaldo Trindade, defendia a esquerda revolucionária. Trindade, por sua vez, tinha em mente "uma ideia democrática americana" - hoje, confessa, não sabe como se há-de definir. Estavam, porém, do mesmo lado da barricada. Claramente: "Era preciso ir mais à frente para conseguir mudar o sistema, para conseguir a utopia que sempre defendi, tal como Zeca Afonso, de uma sociedade mais igualitária. A nossa política era a utopia".

Era. Arnaldo Trindade que, enquanto editor, era responsável perante a PIDE pelas edições, assumia essa responsabilidade sem constrangimentos. Até porque, apesar de "em momentos mais complicados" ter de correr a esconder os discos debaixo da cama dos filhos, o seu "único disco proibido" foi, conta, "Je t"aime, moi non plus", de Serge Gainsbourg e Jane Birkin - apareceu o oficial da PIDE e apreendeu-o, mas não sem antes reservar "três ou quatro para si".

Era uma utopia? Sim, repetimos. Arnaldo Trindade não olhava a custos. José Afonso e Adriano Correia de Oliveira tinham generoso salário mensal, com obrigação de gravar um novo álbum a intervalos regulares. Os músicos ambicionavam o melhor e era o melhor que a Orfeu lhes oferecia. "Numa altura tínhamos o Zeca a gravar no Chateau Herouville [nos Strawberry Studios, onde haviam gravado antes, por exemplo, os Rolling Stones], com o José Mário Branco a produzir; o Adriano em Londres na Pye Records; o [José] Cid na Vogue, em Paris".

"Cantigas do Maio" (álbum de 1971 de José Afonso, onde encontramos "Grândola vila morena" ou "Canto da Primavera") custou "um milhão de contos", impressiona-nos. "Mas é o melhor disco português de sempre", sorri, orgulhoso. E isso, claro, é para ele o mais importante.

Quando se preparava para editar "Operário Em Construção", LP de 1972 em que Mário Viegas, acompanhado de José Calvário (compositor e orquestrador residente da Orfeu), José Luís Tinoco e José Niza, interpreta poesia de Vinicius de Moraes, Bertold Brecht ou Manuel Alegre, vários amigos avisaram-no que "estava louco", que era uma imprudência. "Mas não gravo porquê?, isto é tão bonito", retorquiu. E gravou, e editou.

Dois anos depois, o 25 de Abril foi anunciado com "E depois do adeus" e "Grândola vila morena". Curiosa coincidência: duas gravações da Orfeu.

Na sua história, além de todos os anteriormente referidos, está a epopeia em rock sinfónico de José Cid, "10.000 Anos Entre Vénus e Marte", ou canções vitoriosas no Festival da Canção - "E depois do adeus", "Festa da vida", por Carlos Mendes, ou "Madrugada" por Duarte Mendes. Fica uma história ainda por redescobrir, a dos poetas que foram a primeira paixão de Arnaldo Trindade.

Quando encerrou a Orfeu, não sentiu qualquer angústia, qualquer saudade. Não tem nenhum disco da editora a que dedicou três décadas de vida. Tem livros e dedicatórias: "Arnaldo Trindade, a quem tanto deve tanta poesia", assinado: Ary dos Santos.

Interessam-lhe as memórias e passá-las a quem o procurar. "O maior orgulho foi ter-se conseguido fazer", diz. "Tudo o que nasce morre, e nós morremos no zénite". E agora renasceram.

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