Para Sérgio Carolino, esta geringonça é uma paixão

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Fernando Veludo/NFACTOS

É um dos grande instrumentistas portugueses, com carreira também firmada no estrangeiro. Sérgio Carolino, tubista residente da Orquestra Sinfónica do Porto, está na origem do desenvolvimento em Portugal do interesse por um instrumento que, apesar da sua dimensão, ocupa um lugar discreto nas orquestras e bandas. Mas nas mãos deste músico a tuba ganha protagonismo de solista. Na Casa da Música, estreou-se uma peça expressamente escrita para si. Esta semana está a tocar em Tóquio.

Não podia haver maior contraste com aquilo que é a imagem convencional de um concerto de uma orquestra sinfónica: o maestro envergava uma camisa azul florida em estilo art nouveau; a seu lado, um músico vestido com uma camisa bordeaux, daquelas normalmente usadas pelos elementos do Remix Ensemble, tocava a solo um instrumento que costuma ficar arrumado no canto mais discreto da formação orquestral. A tuba.

Aconteceu na noite de 6 de Maio, no Porto, na Sala Suggia da Casa da Música, e era a estreia mundial de um concerto composto por Paulo Perfeito para aquele instrumento, Impermanentia. O solista em causa é Sérgio Carolino (n. Alcobaça, 1973), tido como o mais virtuoso tubista português da actualidade e um músico de elite a nível internacional. "O Sérgio é indiscutivelmente um dos cinco maiores tocadores de tuba no mundo", assegurava Markus Lindberg, o famoso trombonista sueco que a Casa da Música tinha convidado para dirigir a Orquestra Sinfónica do Porto (OSPCM) nesse primeiro concerto de Maio.

Paulo Perfeito tinha explicado à Pública, no final do ensaio na manhã da estreia, que tinha composto Impermanentia expressamente para Sérgio Carolino, músico que admira e com quem trabalha desde 2005. "Tenho dúvidas de que houvesse muitos tubistas no planeta que fossem capazes de interpretar esta peça como o Sérgio o faz; ele é como um atleta de alta competição", acrescentou o compositor, já no final do concerto, não escondendo a sua felicidade pelo sucesso da estreia. Era a primeira vez que Paulo Perfeito compunha uma obra para esse "bicho" que é uma orquestra sinfónica. As outras peças que tinha já escrito para Carolino eram destinadas às várias pequenas formações com que ele tem construído a sua carreira ecléctica. "Normalmente, eu só componho para a tuba nas mãos do Sérgio - e faço questão de dizer isto -, porque nelas, este é um instrumento surpreendente", reforça Paulo Perfeito.

A mesma opinião tem António Victorino d"Almeida, autor duma composição escrita para Sérgio Carolino, igualmente estreada pela OSPCM na Sala Suggia, em 2006 (e entretanto editada em disco). "Escrevi a peça para um grande tubista, e ele correspondeu totalmente àquilo que eu tinha sonhado quando a compus", diz o maestro e compositor. Também ele vê em Carolino "um músico de elite mundial, não só em termos técnicos mas também interpretativos".

José Duarte conhece a performance do tubista em formações jazzísticas e, em 2004, considerou-o mesmo o Músico Revelação do Ano, pelo disco do trio TGB [Tuba, Guitarra & Bateria], editado pela Clean Feed. "Ele cumpre as exigências de um grande músico: sabe improvisar, tem balanço e pratica um instrumento que é raríssimo ouvir no jazz, apesar de ele ter sido muito típico nas origens em New Orleans", diz o crítico e autor do programa Cinco Minutos de Jazz.

Sérgio Carolino convive bem com estes elogios e com a imagem de músico virtuoso reconhecido tanto em Portugal como lá fora - esta semana, por exemplo, encontra-se em Tóquio, como professor convidado do 17.º Festival da Academia Internacional Yamaha; no próximo dia 5 de Agosto vai fazer um recital a solo na capital japonesa com a pianista Mari Nakamura, com um programa exclusivamente preenchido com música portuguesa para tuba e piano, que encomendou aos compositores Jorge Salgueiro, Telmo Marques, Francisco Loreto e Filipe Melo.

O tubista diz, contudo, que não tem de assumir a responsabilidade do virtuoso. "Tenho é que dar o meu melhor e continuar a fazer aquilo de que gosto, que é tocar tuba e tentar passar uma boa imagem do instrumento às pessoas e aos jovens", acrescenta Carolino, que em 2002 ingressou no elenco do Orquestra do Porto. Uma decisão que considerou marcante para a sua carreira, depois de antes ter passado pela Metropolitana de Lisboa.

"Vir para a Orquestra do Porto foi importante para mim. E a Casa da Música é um projecto especial e único no panorama internacional. É já a segunda vez que toco aqui a solo um concerto para tuba - é algo que é muito difícil ver-se noutras instituições. Aqui recebem estas propostas sempre de braços abertos", diz Carolino sobre o seu trabalho na OSPCM. E destaca também a importância que para o seu amigo Paulo Perfeito teve o ter podido finalmente ver estreada uma obra composta para tuba e orquestra sinfónica, e assim conquistar "um lugar de destaque na cena da composição em Portugal, algo que ele já merecia".

Sobre Impermanentia, o tubista diz que se trata de uma das obras "mais difíceis" que tocou até agora. "É uma peça muito física, que explora todos os registos da tuba, do mais grave ao mais agudo. É preciso conhecer outros estilos de música e outras linguagens para se conseguir interpretá-la de acordo com aquilo que o compositor quer", acrescenta Carolino, referindo a influência que a composição denota da música de Olivier Messiaen, de quem, aliás, Paulo Perfeito se afirma um devedor.

Uma tuba chamada Lúcifer

No concerto na Casa da Música, Carolino tocou numa tuba Yamaha - ele que é o único tubista europeu com contrato assinado com este famoso construtor japonês de instrumentos musicais (mais conhecido pelas motas). "Trabalho muito com a Yamaha no desenvolvimento destes instrumentos", diz o músico, para quem a marca japonesa construiu mesmo um protótipo. "Só existem duas tubas do género no mundo, eu estou a experimentá-la e vou-lhes dizendo o que acho que é preciso melhorar", acrescenta Carolino, explicando que são sempre instrumentos feitos à mão e que não permitem grande comercialização nem negócio; a marca japonesa aposta neles apenas para manter a tradição neste domínio da música.

Ser um Artista Internacional Yamaha, para além do prestígio e do acesso a instrumentos personalizados, tem como vantagens materiais apenas o apoio que a marca dá à realização de viagens para a participação em festivais e a direcção de master-classes por todo o mundo, algo que faz parte do quotidiano do músico português.

Mas o instrumento de que Carolino mais gosta de falar é do seu Lusofone Lúcifer - o nome é patente sua -, uma tuba de grandes dimensões que foi construída expressamente para si por dois luthiers [criadores de instrumentos de cordas] norte-americanos. Depois de ter visto a tuba de um músico inglês amigo reconvertida a partir de um velho jazzofone, Carolino quis também apostar num instrumento do género. Conheceu um fabricante de Filadélfia, Tim Sullivan, que, com Harold Hartman, reinventou uma tuba baixo totalmente feita à mão, e que é exemplar único. "Mandaram-me esta peça incrível!" E Carolino mostra orgulhosamente uma tuba do seu tamanho, e bem diferente da Yamaha que normalmente usa nos concertos da Orquestra do Porto. "É um instrumento único, que foi construído com peças e partes de metal de tubas antigas, dos anos 1950 e 60, das marcas King e Conn, que continuam a ser muito procuradas pelos músicos." Decidiu chamar-lhe "Lúcifer" por achar que esta tuba "tem um som terrífico, algo diabólico, e que vibra de uma forma incrível" por causa da liga metálica antiga de que é feito. E acrescenta que "a tuba é uma paixão. Quem a toca sente isso. É tanta a vibração, o som pode ser tão bonito e tão caloroso que as pessoas não precisam de fazer muitos sons. Conseguir um já deixa uma pessoa satisfeita, num instrumento destes".

Uma aventura em Genebra

Como é que Sérgio Carolino, que se afirma "um músico autodidacta", escolheu ser tocador de tuba? O músico revela que o seu primeiro sonho de infância, em Alcobaça, foi o ténis. Mas, porque o jeito não abundava, acabou por seguir as pisadas do avô Fernando e ingressar na banda da terra. Tinha 11 anos, deram-lhe um fagote para as mãos, e depois uma trompete, mas daí não saíram grandes sons. Acabou por sair-se melhor no manejo de um contrabaixo que estava encostado a um canto na sala de ensaios. "Como eu já sabia as posições, dominei logo o som e gostei muito da sonoridade." Estava encontrada a sua vocação. Apostou em ir aprender no Conservatório de Lisboa, para onde viajava muitas vezes à boleia. Como, nessa altura, não havia professor de tuba na escola da capital, foi parar às classes de trombone e trompete. Até que acabou a estudar tuba, como os seus colegas Ilídio Massacote e Pedro Florindo, com o professor António Lage, da Ópera do Teatro São Carlos.

Mas o grande salto na sua formação viria, depois de cumprido o serviço militar, com a decisão de "ir à aventura" para Genebra, aproveitando a circunstância de o pai ser emigrante em França e estar a trabalhar perto da fronteira suíça. "Fui conhecer o professor Pierre Pilloud, da Orquestra Suisse Romande, e como sabia que a poucos quilómetros dali, em Lausanne, estava o professor Roger Bobo" - o virtuoso americano da tuba e patrono de um prémio internacional, que Sérgio Carolino viria depois a conquistar por duas vezes, em 2008 e 2010 -, "pensei que com uma cajadada matava dois coelhos, aprendia com duas pessoas fantásticas", recorda.

Assim foi. Diplomou-se no Conservatório de Genebra, e quando se preparava para ficar por lá a fazer o mestrado em performance de tuba, surgiu a notícia de audições para a Metropolitana de Lisboa. Regressou e conquistou o lugar, onde ficaria entre 1997-2001. "Eu sentia que tinha de fazer alguma coisa para ajudar o país, nesta área", diz, a justificar a decisão de regressar a Portugal, quando muitos músicos portugueses da sua geração procuravam no estrangeiro as oportunidades que não encontravam no país.

Não se arrependeu de ter regressado. "Acho que foi uma boa opção", diz. E, "modéstia à parte", reivindica a sua quota de responsabilidade na afirmação de uma nova geração de tubistas portugueses, que vão dando cartas tanto aquém como além-fronteiras, onde têm ganho prémios e conquistado lugares em formações prestigiadas. "Sim, fui o principal impulsionador disto tudo, em vários aspectos. Se calhar, porque sou totalmente apaixonado e meio lunático", realça Carolino, que continua a casar a profissão de música com a de professor de tuba e de música de câmara na Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo (ESMAE), no Porto, além de dirigir frequentes master-classes em Portugal e por todo o mundo - na agenda do mês de Maio, tinha marcados vários concertos (e cursos) com o European Tuba Trio, de que foi fundador, em várias cidades de França, e mais para a frente tem previstas deslocações à Finlândia, Japão, Colômbia e Estados Unidos.

"Preciso de tocar Mahler"

"A tuba é uma paixão", repete Carolino, mas que precisa de muito trabalho, esforço, técnica, repetição... "Temos de saber como produzir o mesmo som todos os dias. Eu não acredito no talento, acredito é em muito trabalho físico e mental. Isso é 99 por cento. E o um por cento do talento, esse, só aparece com a adrenalina do concerto", reclama o tubista, para quem nada substitui a experiência do palco. Daí a decisão de, sempre que possível, gravar as actuações ao vivo para a edição dos muitos discos que já conta no seu currículo - assim aconteceu também com a execução da peça Impermanentia, que foi gravada tanto no ensaio final como no concerto da estreia, a pensar na futura edição em disco.

A carreira de Sérgio Carolino conta já mais de duas centenas de peças compostas expressamente para si por compositores portugueses e estrangeiros, contando-se, entre aqueles, e para além dos já citados Paulo Perfeito e António Victorino d"Almeida, os nomes de Eurico Carrapatoso, António Pinho Vargas, Bernardo Sassetti ou Carlos Azevedo.

A discografia também já vai próxima das duas dezenas de títulos, desde que no ano 2000 editou o primeiro dos seus inúmeros projectos musicais - TGB (com Mário Delgado e Alexandre Frazão). Em nome próprio, lançou o primeiro disco, Steel aLive, em 2008, e trabalha agora numa nova gravação com o mesmo projecto. Pelo meio, têm-se sucedido as bandas, com designações tão inesperadas como 2tUBAS & friends, How Low Can You Go?, TUBIC, Tu B"Horn, TUBAB, ou Estardalhaço da Geringonça e The Postcard Brass Band, onde dá livre expressão à sonoridade jazzística do seu Lusofone Lúcifer. Mesmo se não se vê como um músico de jazz - "Considero-me sobretudo um improvisador, alguém que consegue inserir-se num projecto, perceber a linguagem, o fraseado... Uma vez classificaram-me como "um músico camaleónico", e eu gostei da expressão. Tenho essa capacidade de me adaptar a diferentes projectos."

Mas Carolino continua a privilegiar também o seu trabalho na Orquestra Sinfónica do Porto. "Permite-me tocar a música de grandes compositores; eu preciso de tocar Shostakovich e Mahler, e na Casa da Música temos tido a sorte de fazer grandes programas, de poder arriscar."

Sempre com a tuba, não propriamente a tiracolo, já que a dimensão do instrumento não permite essa agilidade, mas numa relação de grande fisicalidade com ela.

Qual é o sexo da tuba, a propósito? "É um instrumento um bocado híbrido; à partida, pensa-se que é masculino, por causa da sua sonoridade física e robusta. Mas também tem algo de feminino, delicado, macio, muito sensível e com muitos harmónicos." Carolino acrescenta que já lhe disseram uma vez, que, quando está a tocar, parece que agarra a tuba como quem envolve e acaricia o corpo de uma mulher. "É um bocado surreal, mas não deixa de fazer sentido."

sergio.andrade@publico.pt

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