Robert Morris, modo de usar

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Alguém transformou o hall do Museu de Serralves num estranho parque infantil fotografias de LARA JACINTO

"Bodyspacemotionthings" convida-nos a escalar a rampas, a rolar dentro de cilindros, a andar sobre rebordos, a subir paredes. Equilíbrio, força, agilidade e saber cair são requisitos. A experiência da obra de um artista fundamental para compreendermos as transformações que a arte conheceu nas últimas décadas. José Marmeleira

Alguém transformou o hall do Museu de Serralves num estranho parque infantil. Sobre um enorme estrado de madeira acoplado a um tronco, dois adolescentes tentam equilibrar-se. Gritam, gargalham até que a estabilidade se lhes escapa, e a madeira bate com estrondo no chão.

Este balancé improvisado, que será objecto da curiosidade e dos movimentos de outros visitantes, integra "Bodyspacemotionthings", de Robert Morris (Kansas City, EUA, 1931). E o seu significado está, exactamente, no seu uso, ou melhor, na sua experiência. Com o esforço, a fadiga, o confronto com a gravidade, enfim, com o corpo.

A instalação, composta por outras peças, ocupa metade da exposição que Serralves dedica ao artista, figura ímpar na história da arte contemporânea. A outra metade reúne filmes e vídeos, a maioria datados de finais da década de 1960 e 70, alguns reconstituídos posteriormente com a colaboração da realizadora Babbette Mangolte.

Nesta retrospectiva não se mostram esculturas seminais do minimalismo e do pós-minimalismo (termos a que o artista foi associado e que até hoje continua a rejeitar), mas encontramos as ideias que Morris matizou em "Notes on Sculpture" 1-3 (1966-7) e "Notes on Sculpture 4 - Beyond Objects" (1969): a experiência do objecto no tempo; a percepção como experiência estética; a ênfase no processo, sublinhando a arte como uma energia que muda a percepção; a consciência do corpo diante da arte.

"Bodyspacemotionthings" convida-nos a escalar a rampas, a rolar dentro de cilindros, a andar sobre rebordos, a subir paredes. Equilíbrio, força, agilidade e saber cair são requisitos. Ryan Roa, co-comissário da exposição e assistente de Robert Morris, dá algumas pistas sobre o modo de usar (as peças). "Não devem ser abordadas com cuidado, mas tão somente abordadas. Os espectadores não devem recear danificá-las. Se alguma se estragar, pode ser arranjada. São esculturas temporárias, criadas no museu ou numa carpintaria, não existirão para lá da exposição".

O material de que são feitas não é o mais respeitável: madeira banal, mas resistente. Que o digam os espectadores que em 1971, na Tate de Londres, experimentaram pela primeira vez o trabalho, numa destemida prova de interacção com arte, O entusiasmo provocou feridos e destruiu a maioria das esculturas participativas, obrigando ao encerramento da exposição. Da segunda vez (também na Tate), como agora no Porto, a instituição museológica antecipou a possibilidade do caos. "Há um elemento de controlo, colocámos avisos dirigidos às pessoas. Não queremos que interajam de forma descuidada, mas com movimentos controlados para que não se magoem. Quando foi apresentada pela primeira vez, este tipo de arte não era muito popular, as pessoas e a instituição não estavam preparadas. Ninguém sabia como o público se ia comportar. E as coisas ficaram fora de controlo"

As coisas mudam com o tempo

Ver "Bodyspacemotionthings" é como assistir a uma coreografia de gestos e movimentos onde os espectadores são performers. Dois filmes revelam esse encontro físico entre o indivíduo e os objectos: "Neo-classic", de 1971, onde vemos o artista, um assistente e uma modelo nua a activarem as esculturas participativas. E "Slow Motion" (1969), que regista em câmara lenta o choque de um homem musculado contra uma porta de vidro. Não há estilhaços, apenas a carne espalmar-se contra uma superfície.

A exploração das capacidades físicas levam-nos a interrogar o interesse de Robert Morris pelo movimento do corpo humano. "Se olharmos para a história da arte americana nos anos 60, vemos os artistas as responderem à energia, à fisicalidade da "action-painting" e a romperem na direcção da acção, do movimento, da coreografia. Ele foi um desses artistas. Fez parte da Judson Dance Theatre ao lado da Yvonne Rainer e realizou várias performances relacionadas com objectos. Por exemplo em "Two Columns" [escultura apresentada numa performance no Living Theater, em Nova Iorque, em 1961], onde implicava os conceitos de verticalidade e queda. Era uma obra composta por duas colunas de madeira, à escala humana, que a dada a altura eram derrubadas. A queda introduzia a ideia de tempo e duração na escultura e integrava o corpo nessa acção".

Ao tempo associava-se a memória de um processo. Ryan Roa lembra outro trabalho de 1961: "Box with the Sound of its Own Making. "Foi uma das primeiras peças produzidas em Nova Iorque. Construiu um caixa de nogueira e gravou o processo de construção, com os sons do serrote e do martelo, no interior da caixa. Há uma ideia de memória, que chega como vestígio de uma acção e que remete para a ideia de dança, de movimento. Para coisas que se transformarem enquanto o tempo passa, para uma ligação entre tempo e a acção".

Tal dimensão teatral repete-se nos filmes apresentados em Serralves, como "Site", onde a figura reclinada de uma mulher nua (remetendo para "Olympia", de Édouard Manet) é revelada e depois tapada pela coreografia de um homem com uma placa de contraplacado. Ou em "Waterman Switch" e "Waterman Switch Revisited": um escultórico casal (originalmente interpretado por Morris e Yvonne Rainer) dança ao som de Verdi sobre uma pista de madeira que uma mulher acabou de construir. Nunca chegam a cair, estes bailarinos nus, mas no fim o homem despeja uma ampola de mercúrio sobre a parceira e, antes de desaparecer ouvimo-lo dizer, citando Leonardo da Vinci: "With time, everything changes".

Consciência do espaço

Os dois filmes (como também "Site", "Arizona" e "21.3") foram reconstituídos em 1993, no âmbito de um retrospectiva no Museu Guggenheim, a partir de performances documentadas na década de 1960. Em "Waterman Switch Revisited", através de close-ups, vemos pormenores da acção a que os primeiros espectadores não tiveram acesso. E em "Site", o homem não é Robert Morris (como na primeira versão), mas um trabalhador da construção civil (acentuando assim inesperadas leituras políticas).

Outros filmes permanecem nas suas versões originais. Em "Gas Station" (1969), um ecrã duplo exibe a actividade de uma estação de serviço: homens atestam os depósitos, examinam os motores, carros passam, peões seguem pelos passeios. A situação, filmada pelo artista a partir de um quarto de um hotel, parece repetir-se num e noutro ecrã (no primeiro, através de close-ups e panorâmica, no segundo num plano fixo) até que nos apercebemos da assimetria temporal das imagens e da arbitrariedade entre os dois planos. E torna-nos consciente da presença de um dispositivo que produz imagens.

"É uma obra que comenta e critica o "medium" do filme", concorda o comissário. "A câmara torna-se visível, a imagem revela-a, inclusive como forma de vigilância. E podemos ver isso também em "Mirror". Ele está a segurar um espelho e vemos um operador de câmara a tenta enquadrar a imagem reflectida. Mas são também trabalhos que mostram pessoas em interacção com os objectos, sejam um espelho ou um automóvel"

Em "Wisconsin" (1970), filmado na sequência de uma residência que o artista dirigiu na Universidade daquele estado norte-americano, assistimos a outra coreografia. Grupos de estudantes marcham e rolam na neve. Um grupo tenta arrastar o outro pelo chão até que explodem bombas de fumo e todos dispersam. O contexto político e social deste trabalho é relativamente conhecido: os motins estudantis nos campus universitários dos EUA, as manifestações contra a guerra do Vietname, os festivais de Woodstock e Altamont. Dois grupos opostos em choque no espaço, coisas em movimento em contacto com outras coisas em movimento.

E a exposição reflecte esta asserção. "Ele gosta que as pessoas vejam várias imagens ao mesmo tempo. Sem estarem separadas, sem cortinas. Não nos concentramos num assunto ou nos conceitos, o som de um trabalho leva a outro. Tornamo-nos mais conscientes do espaço e menos da autonomia das coisas", diz-nos, Ryan Roa. E podemos reivindicar a nossa soberania como autores e performers, acrescentamos nós.

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