A Cova do Vapor não é um bairro de lata, é "um tesouro fantástico"

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José Talamba e a mulher, Iria, numa casa "muito invejada"Os caminhos à beira Tejo fazem-se por avenidas estreitas no tamanho mas largas na imaginação, como a dos Milionários ou a "5ª"A festa no antigo restaurante Bugio à Vista (página anterior) serviu para apresentar a maqueta do bairro (em baixo) construída pelo TISA fotos: Miguel Manso

Porque faz mais sentido melhorar um bairro à medida das necessidades do que demoli-lo, dois arquitectos lançaram um projecto para a requalificação da última aldeia piscatória da região de Lisboa

Na Cova do Vapor, uma aldeia piscatória e balnear da Trafaria, em Almada, há uma casa que ajuda a contar a história de um lugar que se foi construindo pela sua gente, desde os anos de 1920. Na casa comunitária do senhor Eduardo, o padeiro, como em toda a povoação, cada divisão, cada acrescento, cada azulejo ajuda a contar uma parte do todo.

Era uma das construções primitivas, em madeira, de quando a Cova do Vapor se chamava Lisboa Praia e ficava onde agora há só mar. Manel da Fruta, pai do senhor Eduardo, ainda salvou muitas casas, às custas de seis juntas de bois, que as puxaram - ora inteiras, ora desmontadas - mais para dentro, à medida que o mar ia vencendo a terra. Acabou por ser levada para onde está hoje. E lá continua - irreconhecível.

"A família foi crescendo e foram construindo [mais divisões] à volta", resume Sofia Esteves, que integra o projecto The Informal School of Architecture (TISA), coordenado pelo arquitecto Filipe Balestra e a sueca Sara Göransson, arquitecta e engenheira do ambiente. Aumentou-se a casa para os filhos, as mulheres dos filhos, para os netos. Depois, as habitações, 13, foram alugadas a outras famílias, apesar de Eduardo ainda lá viver, não fosse esta uma casa comunitária. Partilham o logradouro, no centro, com uma cozinha de quatro fogões.

A Cova do Vapor vai sendo feita, é orgânica, repete Filipe. Como qualquer aldeia. "O tecido urbano é o mesmo que o de Óbidos, Alfama, Costa do Castelo. As aldeias do mundo inteiro seguem o mesmo padrão [de crescimento]."

Sofia Esteves conhece bem aquela casa. Mediu-a, desenhou-a, fez uma maqueta, registou a sua história. O mesmo se fez para cada uma das cerca de 350 casas do aglomerado piscatório. Depois de trabalharem em favelas no Rio de Janeiro, no Brasil, e em Bombaim e Pune, na Índia, Filipe e Sara criaram a TISA, um "projecto social global para valorizar e melhorar aldeias urbanas desprivilegiadas no mundo inteiro com a ajuda de locais", para "oferecer um curso prático e social a pessoas de qualquer idade ou profissão para co-criarem ajustes e estratégias necessárias em comunidades carentes".

Solução para o sofá

Durante três meses estiveram com 50 estudantes de duas escolas profissionais da região Lisboa e com arquitectos, designers, urbanistas e profissionais de outras áreas na Cova do Vapor. Ontem apresentaram os resultados desta fase de "pesquisa intensiva", que será apenas a primeira do trabalho de acupunctura urbana que querem fazer na "última aldeia piscatória da região": "preservar o máximo, melhorar apenas o que precisa de ser melhorado", num processo participativo, em que a comunidade e a Urban Nouveau, plataforma criada pelos dois arquitectos para resolver problemas do dia-a-dia, fazendo uma "ponte entre o formal e o informal, o legal e o ilegal, a cidade e o campo".

O Bugio à Vista, restaurante encerrado, abriu ontem portas para a festa. Foi apresentada uma maqueta de seis por sete metros, em que até ao último dia se encaixaram as casinhas de cartão e de outros materiais, que os estudantes faziam à medida que visitavam cada casa. E ainda será publicado um livro, com o trabalho destes meses que passaram na Cova do Vapor.

"Isto é do melhor que há", diz Filipe, olhando em volta. "É preciso rebocar? É. É preciso pôr uma calçada portuguesa? É. Mas isto melhorado bate qualquer obra de um arquitecto, porque demorou 80 anos a fazer. Ninguém pode desenhar isto."

Na maqueta, vê-se a casa de Rúben Figueiredo, 22 anos, criado pela avó na Cova do Vapor. Pequenina, azul, entalada entre as outras. Falta-lhe o remendo de quando rebentou a parede para enfiar lá um sofá que comprou e não entrava pela porta. Não tem água.

Um dos maiores problemas - além de grande parte das construções serem ilegais, estarem em terrenos alheios e há décadas sob ameaça de demolição com que os moradores já aprenderam a conviver - é a falta de esgotos. A água e a luz há muito chegaram à aldeia, pagas pelos moradores, que vão juntando dinheiro entre todos para o que é preciso, organizados na associação de moradores, que funciona quase como uma junta de freguesia.

O arquitecto já conhecia este lugar de pescadores - praticava surf na praia do Albatroz, famosa pelas ondas -, de gente com ar de personagem de contos de sereias e marinheiros, de peixe abundante e gente que consegue ser feliz com pouco. "Isto é um tesouro fantástico, uma escola de auto-suficiência alimentar", diz Filipe. "Este terreno vale mais como aldeia castiça, que demorou 80 anos a fazer-se, do que limpo", acredita, contra os que acham que a Cova do Vapor é um bairro de lata que devia ser demolido. "Esta comunidade pode tornar-se num destino biológico global."

As casinhas, que parecem de bonecas, num estilo a que chama "neo-manuelino", quase se estorvam umas às outras quando se entra pelos caminhos mais estreitos (há avenidas, como a dos Milionários, pouco mais de um metro de largura). As crianças brincam de fato de banho nestas ruas inventadas. Na próxima semana, algumas começam a ser pavimentadas, com dinheiro doado pelos moradores.

A aldeia não pára. Há obras por todo o lado, apesar de não se poder construir novas casas, até pela falta de espaço, explica o presidente da Associação de Moradores da Cova do Vapor, José Carlos Cleto. Quem ergueu muitas das casas foi o senhor Talambas - como José Talamba é conhecido. Foi aproveitando as sobras dos materiais e fez uma para si, uma das maiores, e "muito invejada", garante. Fez o Convívio também, o espaço onde todos se encontram.

Outra voluntária, Sílvia Ribeiro, pede para entrar na Casa dos Arcos - tem mesmo arcos. A maqueta está quase pronta, mas faltam umas fotografias. Abre-se a porta e entra-se noutro mundo. Toda a Cova do Vapor caberia aqui. Cada parede, cada canto terá dez, vinte, azulejos diferentes, num mosaico de cores e feitios. As escadas para um terraço são de um autocarro da Carris de dois andares. Em cada canto há um segredo. Veja-se atrás de uma porta: um buraco para a maçaneta, outro para a chave. "Assim não estorva ninguém."

"Os melhores arquitectos ficam conhecidos por um pormenor destes. Eu mostro dez, 15 aqui!", assegura Filipe Balestra. Porque se perdeu o medo da auto-construção, as casas vão crescendo, adaptando-se às necessidades. Não é como estar enchouriçado num apartamento de uma torre de 20 andares, em habitações todasiguais.

José Talamba tem a melhor vista, numa torre de arcos, de azulejo de xadrez preto e branco quando vista de fora. "Luxo é comer com talheres de prata ou ter uma janela com vista para o mar?", pergunta o arquitecto, com as mãos sujas de sardinhas no Chaves, o único restaurante do lugar. "E poder comer peixe fresco todos os dias", acrescenta Sara Göransson. "Queremos que as pessoas vejam o nosso trabalho e pensem."

Para muitos a Cova do Vapor não passa de um bairro de lata. A Câmara de Almada não revela pormenores dos planos para esta aldeia onde o Tejo se faz ao mar. Em 2007, o Instituto da Água chumbou um projecto que previa a demolição para construir unidades hoteleiras, habitação (de alta e baixa densidade), comércio, serviços e um campo de golfe. Fonte da autarquia disse apenas que o plano de pormenor está em elaboração.

José Carlos tem a alma dos que ergueram este lugar de pescadores, por isso repete o que diziam os antigos: "Um dia talvez tenhamos de sair daqui. Mas isso é quando o mar nos empurrar." A convicção parece inquebrável - até pelo mar.

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