Uma vida de tropeções até à queda final

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Desde o início que Amy Winehouse não sabia, ou não queria, jogar o jogo da fama Kieran Doherty/Reuters

Agora que aconteceu é fácil dizer que não foi uma surpresa, mas acaba por ser sempre. A cantora britânica Amy Winehouse, tão conhecida pela voz e música como pelo alvoroço mediático causado pelos escândalos dos últimos anos, foi encontrada morta, ontem, em sua casa. Pouco depois das 16h, a polícia foi chamada ao seu apartamento de Camden, no Norte de Londres, pelos serviços de emergência médica, que decretaram o óbito. À hora do fecho da edição ainda não eram conhecidas as causas da morte.

Amy Winehouse apareceu em público pela última vez na quarta-feira, convidada no concerto de Dionne Bromfield, em Londres. Recentemente havia cancelado a digressão de Verão, incluindo um concerto para 4 de Agosto no Festival Sudoeste, em Portugal. As anulações seguiram-se a várias actuações erráticas, sinal inequívoco que os problemas com álcool e drogas não foram resolvidos. Um porta-voz da cantora disse na altura que o seu regresso só se efectuaria "quando recuperasse totalmente."

O músico e produtor inglês Mark Ronson, que trabalhou com ela no álbum que a catapultou para a fama, Back To Black (2006), disse ontem que era a sua "alma gémea musical" e "como uma irmã" e afirmou que ontem foi "um dos dias mais tristes" da sua vida, enquanto o Rolling Stones Ronnie Wood lhe dedicou um concerto e exprimiu que era uma "perda triste, de uma amiga com quem passei bons momentos."

Em 2007 reflectíamos nestas páginas, depois de termos assistido a um concerto em Londres, que a sua digressão parecia a dos Sex Pistols trinta anos antes, de tal forma todos os dias surgiam novas polémicas. Escrevíamos que só esperávamos que a digressão não acabasse como terminou a dos Pistols, com a morte de Sid Vicious, com quem foi muitas vezes comparada. Não aconteceu então, mas dir-se-ia que tinha o destino traçado.

Em 2003, quando lançou o primeiro álbum, Frank, poucos poderiam prever que iria ser assim. Antes, aos 16 anos, fez uma audição bem-sucedida para entrar para a Jovem Orquestra Nacional de Jazz e aos 19 foi descoberta pela agência de talentos de Simon Fuller, obreiro do sucesso das Spice Girls. Nessa altura foi arrumada, de forma apressada, na prateleira dos cantores adolescentes que então irrompiam (de Norah Jones a Joss Stone), apelando a um público maduro. O facto de não ser negra, nem americana, nem ter tido uma vida sofrida fez duvidar dela quem se rege pelos estereótipos da música soul. Mas quem evitasse juízos apressados percebia que Amy era muito mais do que uma sonoridade plastificada com uma voz adolescente por cima. Apesar de ter apenas 19 anos já era uma cantora de corpo e alma.

A sua voz soul tão depressa parecia falar de forma clara, como a seguir parecia transformar-se em mais um instrumento. Em Portugal poucos lhe ligaram nessa altura, mas mais de 100 mil almas no resto do mundo compraram um exemplar de Frank. Depois, quando se pensava que iria desfrutar do êxito, remeteu-se ao silêncio. Eram raras as entrevistas. E quando as havia era sempre lacónica ou desarmantemente sincera.

Desde o começo que era evidente que não sabia, ou não queria, jogar ao jogo da fama. Não era, definitivamente, Madonna. Não fazia questão em parecer. Limitava-se a ser. Era uma jovem londrina, na casa dos 20, igual a tantas outras, que gostava de beber uns copos e jogar bilhar em pubs de má fama, em Camden, onde sempre habitou, quando deixou a casa do pai taxista e da mãe farmacêutica. Foi num desses locais que conheceu, em 2005, Blake Fielder-Civil, futuro marido. Diz-se que foi amor à primeira vista, ou à primeira bebida, como escreveram os jornais que, em 2005, já se interessavam por ela.

O que é certo é que mudou com essa relação. Primeiro, o exterior, tatuando-se. Depois, o interior, tornando-se mais temperamental e grosseira. Até os gostos musicais mudaram um pouco. Do jazz e hip-hop que ouvia na infância e adolescência (de Sarah Vaughan a Mos Def), passou para a pop dos anos 60 e grupos femininos como as The Ronettes ou Shangri-Las.

A relação com Blake

Depois da saída de Frank, durante dois anos não compôs. A relação com Blake passou por altos e baixos. A partir de determinada altura, só baixos. Ele deixou-a nessa fase - apesar das aproximações e afastamentos se terem sucedido depois também - e ela resolveu então criar um novo álbum, por catarse.


Quando Back To Black saiu, em 2006, o sucesso foi imediato. As canções possuíam uma áurea grandiosa, respirando a exuberância da pop dos anos 60 e a inspiração da soul. E depois havia a voz, imperial, como se a jovem dos vintes fosse uma cinquentona de clubes de jazz. O álbum viria a ganhar seis Grammy, tornando-se num dos maiores sucessos de vendas da década de 2000.

Com o sucesso veio o descontrolo, com altos e baixos ainda mais pronunciados. A glória aproximava-se, mas eram as clínicas de desintoxicação que a esperavam, com brigas com o marido pelo meio, concertos cancelados, idas à prisão, histórias de álcool e drogas e a mãe a acusar a indústria do entretenimento de pressão: "Esta não é a Amy que conheço. É como se a sua vida se tivesse tornado numa actuação. Penso que não vai aguentar".

Existiu quem achasse que o seu comportamento não era mais do que uma estratégia para fazer incidir sobre si as atenções. Maneira de não largar as primeiras páginas dos jornais e revistas. Mas não. Parecia ser antes alguém que personificava a dificuldade em encontrar um equilíbrio entre a expressão artística e a exposição pública, num contexto extremamente competitivo como o da pop.

Nos anos seguintes, todos tinham qualquer coisa a dizer sobre ela. A família fazia apelos para a deixarem. O manager dizia que ela não fazia nada para deixar o álcool. O compositor Andrew Lloyd Webber comparou os seus dramas a lendas do jazz como Ella Fitzgerald. Até o departamento antidroga das Nações Unidas censurou o seu comportamento.

I said no, no, no

Mas talvez quem tenha expresso o desejo da maioria foi uma sua ex-professora que disse que "gostava que ela fosse uma lenda enquanto viva e não depois de morta." E no meio deste turbilhão o que fazia ela? Continuava a beber. Chorava em público. E cantava em Rehab a recusa - I said no, no, no - em frequentar clínicas de reabilitação, apesar de se ter tornado assídua depois de 2007.


Vimo-la por três vezes em palco. Em duas dessas ocasiões, em Londres, apresentou-se num misto de gravidade emocional e vulnerabilidade extrema. Passava rapidamente dos trejeitos quase infantis para o alheamento. E, no entanto, aquela figura meio cómica, solitária, exalava vigor quando estava na posse de todas as suas faculdades. Nesses momentos toda a gente se esquecia das controvérsias, focando-se naquele vozeirão, saído daquele corpo que parecia pedir desculpa por existir em frente à multidão.

Em 2008 veio a Portugal, ao festival Rock In Rio, precedida pelos escândalos, e, como aconteceu em muitos outros locais, defraudou a maior parte do público, perdendo a voz por vezes e parecendo alheada noutros momentos. Como então escrevemos, parecia acima de tudo "acossada", sem saber gerir o que se passava à sua volta. Mas de "decadente" a "embuste", os epítetos sucederam-se, mediados também por quem a protegia - como acontece com as figuras trágicas - e via nela apenas alguém "frágil" e "autêntica".

Um dos seus biógrafos, Newkey-Burden, é capaz de se ter aproximado da verdade quando declarou que "quanto mais ela crescia e se tornava popular, mas queríamos que ela caísse." Ou seja, apreciamos canonizar e idealizar as estrelas, mas também gostamos de destinos traçados e de quedas lá do alto. Conforta-nos saber que, afinal, estrelas como Amy são falíveis. Como nós.

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