Sofi Oksanen e o poder curativo da arte

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A finlandesa Sofi Oksanen ganhou, em 2010, com "Purga", grande parte dos mais importantes prémios literários europeus TONI HARKONEN

A trágica realidade emocional e política da Estónia no século XX, o papel das mulheres nos movimentos de resistência, as influências literárias, "o poder curativo da Arte", e o mais que se segue. A propósito de "Purga", romance e peça de teatro que está em exibição em Lisboa. José Riço Direitinho

A finlandesa Sofi Oksanen (n. 1977) ganhou, em 2010, com "Purga", grande parte dos mais importantes prémios literários europeus a começar pelo "Prix Femina" para o melhor romance estrangeiro publicado em França; recebeu ainda o Prémio Europeu do Melhor Romance do Ano e o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico (para o melhor romance publicado nos países nórdicos). Mas antes de ser um romance, "Purga" começou por ser uma peça de teatro. A história da Estónia (Oksanen é descendente de mãe estónia, que emigrou para a Finlândia na década de 70) em luta pela independência é-nos contada através de duas mulheres, a anciã Aliide, que vive numa zona remota do país, e a jovem Zara, que conseguiu escapar ao tráfico de escravas sexuais pela máfia russa. A peça "Purga" encontra-se actualmente em cena no Teatro Aberto, com encenação de João Lourenço.

O Ípsilon falou com a autora sobre a trágica realidade emocional e política da Estónia no século XX, o papel das mulheres nos movimentos de resistência, as influências literárias, "o poder curativo da Arte", e o mais que se segue.

Como é que surgiu a ideia para a "Purga"?

Ouvi muitas lendas acerca dos "Irmãos da Floresta" [movimento de resistência armada à ocupação soviética dos Estados Bálticos, surgido logo após a II Guerra Mundial e que durou até meados da década de 50], mas todas elas eram histórias sobre homens e nunca sobre mulheres, embora a ajuda essencial para esse movimento fosse feita tendo por base as explorações agrícolas (ou seja, as mulheres): o apoio médico, a comida, as roupas etc. Assim, as mulheres revelaram-se cruciais para a Resistência e essa é a razão pela qual foram sobretudo mulheres e crianças que foram levadas para a Sibéria durante a deportação massiva de 1949 - o poder soviético queria parar a actividade dos "Irmãos da Floresta", e só o conseguiria fazer se atingisse a base do apoio, as mulheres e as crianças. E isso resultou. Para além disso, queria escrever sobre o modo como a violência sexual pode ser usada como arma de guerra - e que é a arma mais barata usada durante toda a História da guerra da Humanidade, ela consegue partir a coluna vertebral de toda a comunidade - e sobre as suas consequências em relação às escolhas que fazemos na vida e a parte psicológica.

Mas a acção decorre também na actualidade, com o tema do tráfico de mulheres pela máfia russa surgida logo após o desmembramento da União Soviética...

Interessam-me as relações de poder, as estruturas de poder. E também as diferentes maneiras de reagir a uma situação traumática. Depois da Guerra dos Balcãs, tornou-se óbvio que o mundo não mudou assim tanto - até mesmo na Europa foi possível, nos anos 90, ter campos de concentração para violações. Isso não deveria ter sido possível, mas foi. Então, como é que poderemos ter a certeza de que isso não tornará a acontecer? A arte dá-nos a possibilidade de descrever os indivíduos, não apenas como números, como as notícias o fazem, ou até mesmo os livros de História. A mente humana não é feita de modo a permitir-nos sentir compaixão e compreensão em relação a milhões de mortes humanas. Mas consegue fazer-nos sentir compaixão, empatia, e identificação com indivíduos, mesmo que eles sejam personagens ficcionais que vêm de um mundo completamente diferente do teu. Através deste tipo de experiência, conseguimos aprender muitas coisas sobre mundos e experiências diferentes, mas sobretudo compreender as pessoas que vêm de um mundo totalmente estranho. Desse modo, temos a possibilidade de diminuir a xenofobia e até mesmo o racismo. Também é importante a compreensão da experiência de uma vítima. Esse é o poder curativo da arte.

"Purga" surgiu primeiro como uma peça de teatro. Porquê?

Eu estudei dramaturgia em Helsínquia. O mundo do teatro não me era estranho. E, não sei bem porquê, decidi escrever uma peça. A teatralidade reside, contudo, no facto da reacção universal a uma experiência traumática ser a de evitar olhar as pessoas nos olhos. Quero dizer, as vítimas tentam agir de um modo tal, e o mais naturalmente possível, tentando evitar que olhem para elas, tentam tornar-se invisíveis, ou seja, através da teatralidade eu tento tornar visível a causa do trauma. Foi uma experiência. Sempre me interessaram as diferentes maneiras de reagir a uma situação traumática.

Como eram, nos tempos da URSS, as relações entre a Finlândia e a Estónia?

Muito complexas, e isto sobretudo devido à atmosfera política na Finlândia, em que, por exemplo, oficialmente, não era possível admitir, ou reconhecer, a existência de refugiados estónios. Depois do fim da II Guerra Mundial, a Finlândia entregou todos os refugiados estónios à URSS, por isso os estónios tiveram que fugir para a Suécia e para outros países que não tivessem esse pacto de devolução de refugiados. Por causa disto, a Estónia tinha muitas comunidades de refugiados em outros países; eles tinham escolas estónias, liceus estónios, editoras estónias e etc., mas não na Finlândia, embora esse fosse o país para onde era mais fácil ir, do ponto de vista geográfico. Depois, havia ainda o pacto de comércio bilateral entre a URSS e a Finlândia, que também teve forte impacto. (A Finlândia e a Índia eram os dois únicos países que não pertenciam ao Bloco de Leste e com os quais a União Soviética tinha acordos bilaterais comerciais). Isso tinha um enorme impacto na economia finlandesa, mas também no clima político. Por exemplo, "O Arquipélago de Gulag", do Solzenitsin, não foi publicado na Finlândia por causa desse acordo de comércio, embora tivesse sido publicado em todos os países ocidentais. Esse tipo de política também influenciou a maneira como a História era ensinada nas escolas: de uma maneira que fosse aceitável para a União Soviética e isso, como é óbvio, tinha pouco a ver com a realidade. Eu vivi tudo isso na escola finlandesa, quando era criança.

Mas apesar de tudo, a Finlândia também funcionava como uma janela para o mundo ocidental...

Sim, com os seus canais de televisão. Conseguia-se ver a televisão finlandesa na costa da Estónia. Obviamente, o KGB tentava interferir nas emissões mas as pessoas, assim que o KGB apreendia as antenas que tinham, encontravam sempre maneira de fazer outras a partir de termómetros, etc. As pessoas nos movimentos "underground" eram activas de maneiras diferentes. Por exemplo, os poemas de Eerik Rummo que eu usei em "Purga", foram introduzidos na Finlândia pelo poeta Väinö Kirstinä. Durante o período soviético, Rummo era um poeta dissidente e tinha medo que os seus manuscritos fossem destruídos pelo KGB, por isso Väinö Kirstinä contrabandeou-os debaixo da sua T-Shirt e levou-os para um lugar seguro. Mas as bebidas alcoólicas sempre foram "a cola mais importante" entre a Finlândia e a Estónia. Quando saiu a lei contra as bebidas alcoólicas na Finlândia, eles passaram a beber álcool contrabandeado da Estónia. Mesmo durante a ocupação soviética, as bebidas alcoólicas eram muito mais baratas.

Com a sua ascendência estónia, ouviu muitas histórias dos tempos da União Soviética?

Sempre ouvi mais histórias na Estónia do que na Finlândia, apesar de ter nascido na Finlândia. Mas há sobretudo uma que sempre retive. A de uns familiares que ainda conheci, uma mãe e filha pequena. Um dia, encontraram no jardim um homem que lhes pediu ajuda e que fugia das forças russas. Elas não se atreveram a deixá-lo ali assim e recolheram-no, chegando a construir para ele um lugar para o esconderem dentro de casa. Mas alguém na aldeia o viu e informou a polícia, que veio e levou a rapariga para interrogar. Quando ela voltou do interrogatório, parecia estar bem fisicamente, mas a verdade é que nunca mais falou. Isso sempre me atormentou: o que era preciso fazer para que alguém deixasse de falar? Sempre ouvi histórias de pessoas que tinham escondido outras, por vezes durante anos.

Quais foram as suas influências literárias?

Todos os livros que li tiveram em mim alguma influência, mesmo aqueles que são maus. Mas influenciaram-me sobretudo as obras de Duras, Djuna Barnes, Solzenitsin, Jean Rhys, as irmãs Brontë, Aino Kallas, para nomear poucos. Também gosto muito de Kenzuo Ishiguro e de Sarah Waters.

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