Ele continua a gostar de caminhar

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fotos: Miguel Manso

Steve Paxton não é apenas um dos históricos da dança. Aos 72 anos, o coreógrafo, que foi um dos mais influentes da sua geração, continua a fazer-nos pensar no corpo que se move e no que o move

No começo falou devagar, com uma voz funda, enrouquecida. Se fechássemos os olhos, podíamos imaginar que era Johnny Cash, mito da música norte-americana, que estava ali a falar dos edifícios de Lisboa. Steve Paxton, bailarino e coreógrafo, tem em comum com Cash os Estados Unidos rurais - um nasceu no Arizona, o outro no Arkansas - e uma certa maneira de se demorar nas palavras.

"A mente pode viajar dentro do corpo", disse Paxton depois de guiar o público que na quarta-feira ao fim da tarde esgotou o Pequeno Auditório da Culturgest, em Lisboa, numa experiência saída das aulas de Ciências que lhe ensinou muita coisa. Se metermos uma mão num recipiente com água quente, outra num com água fria, e em seguida mergulharmos as duas, em simultâneo, num terceiro com água tépida teremos a sensação de que a água morna está ao mesmo tempo fria e quente. "As nossas mãos contam-nos histórias completamente diferentes", concluiu o coreógrafo, figura de referência da dança - e do pensamento da dança - pós-moderna e contemporânea. "Foi esta experiência que me levou à minha dança, que é toda baseada nos sentidos."

Durante hora e meia, Steve Paxton, de 72 anos, falou da sua carreira, que começou no final dos anos 50, e de alguns dos momentos e das pessoas que mais a marcaram. A convite do CEM - Centro Em Movimento, recordou a equipa de ginástica do liceu, o trabalho com os coreógrafos José Limón (1908-1972) e Merce Cunningham (1919-2009), os anos de risco e de grande entusiasmo do Judson Dance Theater e da Grand Union, os primeiros trabalhos com a técnica que criou - contacto-improvisação - e que se recusou a registar porque, explicou mais tarde, "seria como pôr um copyright no spaghetti".

Cunningham, o mestre

Foram muitas as vezes em que Paxton trocou os papéis pelo seu próprio corpo para ilustrar uma ideia, um conceito. De T-shirt e calças de fato de treino, parecia pronto para uma das suas aulas e foi fácil ver que gosta de ensinar. Naquele palco, parecia menos reservado do que o habitual, mas com a mesma capacidade de surpreender e de se deixar maravilhar pelas coisas simples.

Foi no último ano do liceu, contou, que se interessou pela ginástica. De início não entrou para a equipa da escola, mas não desistiu e praticava todos os dias à hora do almoço. Foi aí que o treinador lhe sugeriu que estudasse dança para moldar o corpo.

Depois de uma breve passagem pela universidade, onde "tudo era desinteressante", Paxton foi para Nova Iorque e estudou com Limón e Cunningham, chegando a fazer parte das suas companhias (na do coreógrafo mexicano dançou em 1959 e na do norte-americano entre 1961 e 1964). Eram muito diferentes, diz. Limón criava peças em que era evidente uma preocupação social, Cunningham não queria "falar" enquanto dançava.

"Cunningham não era totalmente lógico ou racional, e isso impressionou-me muito nos primeiros oito ou nove meses", admitiu. "E quando dançava era absolutamente extraordinário, tinha um salto fantástico, era o tipo de animal que procuramos na dança, um leão. Não era completamente humano quando dançava... Era assustador."

Limpo, preciso, tudo o que um bailarino procura no coreógrafo que o dirige. "Dizia-nos exactamente o que fazer e o que não fazer. Só não sabíamos para onde íamos." Com Cunningham, acrescentaria já na fase em que aceitou responder a algumas perguntas, os bailarinos tinham a versão mais nua, mais despojada do seu próprio corpo. "Ah, e adorava que ele mandasse em mim... E eu gosto muito pouco que mandem em mim."

Um simples passo

Foi ainda quando trabalhava com Cunningham que Paxton fundou, com outros nomes fundamentais da dança americana - Trisha Brown, Lucinda Childs e Yvonne Rainer, entre outros - o Judson Theater (1962), laboratório onde nasceu uma nova linguagem (ou linguagens), uma espécie de manifesto em que se defendia a entrada dos movimentos quotidianos no vocabulário coreográfico, por mais simples e repetitivos que fossem. "Toda a gente dançava naquela altura, havia arabesques a mais em Nova Iorque", disse, percorrendo em seguida o centro do palco, caminhando apenas. "Tudo o que se pode ver na dança pode encontra-se num simples passo - toda a estrutura [do corpo] está envolvida."

Nos anos 70, a sua dança baseava-se em acções simples como estar de pé, sentar-se, andar. Foi a partir dela que criou a técnica de contacto-improvisação, que se traduz no diálogo entre dois corpos em movimento que se tocam e, nesse toque em que procuram instintivamente o equilíbrio, criam algo. "É assim um bocadinho como abraçar, como lutar..."

Com o contacto-improvisação Paxton marcou para sempre a forma de trabalhar em dança, propondo-se ir mais longe numa nova técnica que começou a desenvolver nos anos 80 - Material for the Spine - e que ilustrou com um vídeo, para explicar que é preciso pensar nos nossos braços como membros que partem da pélvis e não do ombro, e que é urgente contrariar o "terrorismo das cadeiras", com artes marciais ou a cultivar a terra, como ele.

"O movimento que fazemos todos os dias molda-nos", alertou o criador de peças seminais como Proxy, Transit, Afternoon ou Physical Things, antes de se perder nas Goldberg Variations. É que Bach, tal como ele, era um fantástico improvisador.

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